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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.45 no.76 São Paulo July/Dec. 2023  Epub Aug 16, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v45n76.28 

Acontece

HOMO MUSICALIS

Carolina Scoz1 

doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo

1Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP), no qual coordena a atividade Literatura e Psicanálise na companhia de Cláudia Antonelli. É doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e atualmente integra o Comitê Local de Preparação do 29º Congresso Brasileiro de Psicanálise (O Eu com Isso: afetos em emergência), que ocorrerá de 1 a 4 de novembro de 2023, em Campinas, SP (www.congresso.febrapsi.org). Campinas


Não faltou quem tentasse compreender a razão da onipresença de música em todos os lugares habitados por seres humanos. Charles Darwin, William James, Stephen Jay Gould são alguns desses estudiosos. Intrigados com a propensão de nossa espécie a criar e ouvir sons rítmicos, perguntaram-se qual seria o benefício evolutivo oferecido por isso que Oliver Sacks viria a chamar de “musicofilia”. Se não somos como os pássaros que, ao emitirem vocalizações, anunciam o voo sorrateiro de predadores e, em situações menos exasperantes, atraem disputados espécimes para fecundas cópulas, por que insistimos em cantar (alguns frente a milhares de fãs extasiados; a maioria de nós, intimamente, envoltos pelo vapor remanescente da água quente do chuveiro)? E por que cantarolamos aos bebês quando os embalamos para dormir, como se fossem pequeninos filhotes amarfanhados no ninho, se poderíamos tão somente falar com o neonato que trazemos no colo, olhando sua face, e usando mansas palavras de reasseguramento que, mais cedo ou mais tarde, serão parte de seu vocabulário? Por que entoamos cânticos ao redor do morto - ou em sua memória -, se bastaria chorarmos abraçados uns aos outros quando entendemos, num solavanco, que aquela pessoa amada nunca mais estará conosco? Por que Beatles e Bee Gees - ainda hoje? E Nina Simone, em noites insones, e Aretha Franklin, em sábados radiantes? Por que óperas e sinfonias centenárias lotam imensas salas de concerto, de onde espectadores saem atônitos de emoção? Por que Lupicínio Rodrigues, e Tom Jobim, e Chico Buarque, todas as vezes que termina o que imaginávamos ser a maior e última paixão de nossas vidas? Por que modas de viola e hits sertanejos conseguem aglomerar multidões, até mesmo em metrópoles onde quase nada restou do originário passado rural? Por que, nostálgicos de algo que nem sabemos definir, recorremos às canções que ouvíamos ecoar nas cozinhas e quintais de nossas infâncias perdidas? A música é, afinal, um frívolo capricho inventado pelas civilizações ou, em vez disso, é o recurso espontâneo que nos ajuda a viver melhor - talvez, a aumentar nossa longevidade, e bem por isso constitui um impulso filogenético cujas inúmeras expressões são orquestradas pela cultura onde acontecem?

A considerar a quantidade de escritos psicanalíticos recentes voltados à musicalidade (Goldberg & Rather, 2022; Grier, 2019; Nagel, 2012, entre muitos outros), não parece arriscado dizer que a psicanálise ensaia uma resposta aos evolucionistas: há de ter sido vantajoso para a humanidade a invenção de uma comunicação mais eficiente que o mero pronunciar monotônico de palavras extraídas de nosso restrito léxico idiomático. Não foi à toa que a composição melódica surgiu, essa combinação de sons capaz de extrapolar os recursos oferecidos pelos melhores dicionários.

Ao ouvir uma música, compreendemos o sentimento alheio. Ao criá-la com nosso corpo, fazemo-nos compreender pelo outro. Dizemos o que não conseguiríamos, animais essencialmente afásicos que somos, como definiu Pontalis (1991). Mas dizemos, sobretudo, o que pulsava fora do acesso de nossa própria consciência, essa tremulante luz que o ego faz incidir sobre a imensidão do psiquismo. Dizemos, numa linguagem universal, o que nunca poderíamos formular com precisão se tentássemos explicar-nos ao outro. Tanto quanto os sonhos, todas as formas de arte têm esse alcance extraordinário: tornam menos ensimesmados quem cria e quem recebe. Atenuam, mesmo que efemeramente, nossa profunda, crônica solidão.

Mozart, por exemplo, compôs a Sonata n. 8 para piano em A menor K. 310, após o funeral de sua mãe, o fez numa tonalidade que utilizou raras vezes em toda sua vasta obra e quase sempre em concisas execuções. Nessa partitura, escrita em 1778, a música começa abruptamente, sem uma abertura magistral e delicada. Ouvimos um sentimento de urgência, algo que não pode esperar um prelúdio. Ouvimos, também, a insistência de sons repetidos, como o lamento dos enlutados. Por isso é uma sonata veloz, que não oferece trégua para nos recuperarmos do jorro de dor. São essas as impressões que sustenta a psicanalista e pianista Julie Nagel (2012), em Melodies of the mind. Quando registra notas musicais nessa exata sequência, Mozart nos transporta para o cerne daquele sofrimento indizível, uma experiência diferente de tudo que ele havia experimentado. Por isso o inusitado tom: para conosco dividir a voragem de afetos sobre a qual não havia narrativa. “Lacrimoso son’io” (Aqui estou a chorar, agora que perdi meu ídolo…), ele viria a compor em 1788, quando morreu seu pai, que o iniciou no piano ainda menino. Aqui uma cantata, não uma sonata - quatro vozes tentando encontrar palavras. De repente, sem que pretendêssemos, estamos irmanados a esse homem de outro século e outro continente, o que vai muito além de uma apreciação estética. Somos impactados pela verdade emocional da obra, não apenas pelo esplendor daquela criação.

Evocando o compositor que o Velho Mundo recebeu de Campinas, encontramos diversas outras ilustrações. Em 1859, o Brasil ainda era um Império, regido por Dom Pedro II. Nesse ano, Antônio Carlos Gomes compôs Quem sabe?, uma das primeiras e mais famosas modinhas de sua autoria. Carlos Gomes era órfão de mãe, que havia sido assassinada. Alguns cogitam que suas músicas - Bela nympha de minh’alma, Anália ingrata, Suspiros d’alma - sejam alusivas a essa mulher ausentada tão precocemente.

“Tão longe de mim distante; Onde irá, onde irá o teu pensamento? …”. Lembramo-nos desses versos (provavelmente desconhecendo que foram escritos pelo jornalista Bittencourt Camargo, amigo de juventude de Carlos Gomes) apenas porque a música concedeu força sentimental ao poema, que já existia rabiscado no papel. Os versos ingênuos emocionam à medida que as notas musicais tocam nossos ouvidos. Nada mais, então, é preciso: captamos que alguém sofre a agonia de uma separação. Estamos juntos no território da nostalgia, porque aqueles sons fizeram voltar à superfície as nossas próprias experiências de rupturas, os finais dolorosos que nunca são plenamente elaborados (e não será porque identificamo-nos com os agudos desesperados de Fosca, essa personagem nascida da imaginação ultrarromântica do artista campineiro, que a perdoamos quando comete desvarios para aprisionar seu amado e, por fim, escolhe o suicídio a vê-lo apaixonado por outra mulher? Haverá em nós, encarnada, uma latente “dimensão Fosca” que a soprano incita e consola?).

Por sorte, nem sempre é trágico o afeto ao qual musicalmente nos conectamos. Carlos Gomes, aliás, logo após desembarcar na Itália para prosseguir seus estudos, compôs Se sa minga (Nada se sabe) e Al chiaro di luna (Sob o clarão da lua), canções que se tornaram muito populares na Europa - obras de “grandeza melódica e curiosa melancolia” (Coli, 2003). Ouve-se algum tanto de pesar, mas embalado em ternura e mansidão - aquela tristeza esperançosa que todos sentimos vez ou outra.

Foi ele, também, quem deu vida às páginas de O guarani, de José de Alencar, fazendo ressoar na voz de Cecília, a moça portuguesa trazida ao Brasil Colônia em meio à comitiva de seu pai, o êxtase que só conhecem aqueles bem-afortunados que já se apaixonaram. “C’era una volta un principe” (Era uma vez um príncipe) não é mesmo como toca a orquestra dentro de nós quando estamos deliciosamente iludidos de que encontramos um par amoroso - nossa parte faltante, nossa salvação e proteção?

E foi esse brasileiro emigrado para a Itália quem extraiu das cordas e sopros, em “Alvorada”, interlúdio suavíssimo da ópera Lo schiavo, os sons harmônicos da natureza: pássaros despertando em revoada, brisa mansa flanando entre árvores, riachos desenhando a floresta de azul cintilante. Ao ouvir o ecoar paulatino dos barulhos matinais, respiramos entre um ato e outro dessa tensa ópera abolicionista, como se descansássemos um pouco antes de seguir defendendo princípios humanitários fundamentais que ainda encontram tenaz resistência.

E foi ele quem nos encorajou em sua Grande valsa da bravura - uns poucos minutos que têm o efeito daquelas conversas tão necessárias para irmos em frente quando estamos paralisados, seja por cansaço ou confusão. Ode à pulsão de vida, poderíamos reinventar seu título, celebração do ímpeto criativo que eclode até mesmo nas circunstâncias mais difíceis.

Identificação mútua: o afeto do músico e o afeto do ouvinte. Conexão imediata - e impensada. Não demora até que somos muitos ouvintes emocionados, lado a lado, num estado de mente compartilhado. Pensávamos que aquilo fosse uma apresentação para entreter, ou um agradável som ambiente, e vejam só o que fez conosco… Chegamos mais perto, despretensiosos, e não é que súbitas emoções se levantaram dentro de cada um, ao mesmo tempo?

Durante o próximo Congresso Brasileiro de Psicanálise, em vários momentos, estaremos reunidos em torno da música, esse fascinante idioma planetário. Preparamos uma recepção sinfônico-sertaneja a ocorrer durante a abertura oficial das atividades, na quarta-feira, dia 1 de novembro, celebrando a diversidade de nossas raízes. O coquetel de boas-vindas, a seguir, derramará um pouco de choro, não o amedrontado, nem o pungente, mas o chorinho brasileiro da alegre gratidão. Cavaquinho, bandolim, trompete e pandeiro - e todos nós, cantando a sorte dos encontros que voltaram a ser próximos. Nos intervalos de working-parties, conferências, sessões de painéis ou mesas- -redondas, haverá no coffee-break um colega psicanalista que oferecerá a nós seu talento ao piano (se você desejar, toque livremente - é seu presente fraterno para a enorme comunidade de psicanalistas de nosso país). Ao cair da tarde de sexta-feira, um violoncelo se reunirá ao piano, desejando a todos uma noite luminosa e revigorante. Iniciada a sessão de encerramento, no término da programação do sábado, a despedida lírica brindará às atividades científicas de 2023 que, assim esperamos, hão de ser memoráveis para todos.

No raiar desse aguardado novembro, reveremos antigos companheiros e descobriremos novos colegas. Sugeriremos um livro que, há pouco, nos impactou. Anotaremos números de telefone e emails. Contaremos nossas histórias da pandemia, como reaprendemos a atender nossos pacientes distanciados de nossos consultórios, como refizemos nossos laços com a vida quando essa foi, num golpe estarrecedor, ameaçada de tantas maneiras. Como não sucumbimos ao desalento, mesmo incertos sobre quando voltaríamos a conviver fora das telas luminescentes de celulares e computadores, inumanas superfícies de contato com a realidade. Tocaremos obras escritas nesses anos reclusos - páginas que agora poderão voar pelo mundo e pousar em livrarias. É possível acontecer, de repente, um confluir de saudades por alguém que se foi naqueles meses de isolamento tão hostil a nossos rituais de adeus. Uma amizade duradoura também pode nesses dias começar, pelas salas, pelos corredores. Um breve vídeo, uma foto para alegrias futuras. Uma parceria, um artigo, uma coletânea. Um flerte, um romance, um grande amor - quem consegue prever? Música é coisa poderosa…

Sejam todos bem-vindos a Campinas.

Referências

Coli, J. (2003). A paixão segundo a ópera. Perspectiva. [ Links ]

Goldberg, S. H. & Rather, L. (2022). Opera on the couch: music, emotional life, and unconscious aspects of mind. Routledge. [ Links ]

Grier, F. (2019). Musicality in the consulting room. International Journal of Psychoanalysis, 100(5), 827-851. [ Links ]

Nagel, J. J. (2012). Melodies of the mind: connections between psychoanalysis and music. Routledge. [ Links ]

Pontalis, J.-B. (1991). A força de atração. Jorge Zahar. [ Links ]

Sacks, O. (2008). Musicophilia: tales of music and the brain. Vintage Books. [ Links ]

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