Como psicanalista clínica praticante, acredito que a clínica viva é o lugar principal de estímulo para desenvolver minha forma de pensar a psicanálise. Ao longo do meu percurso, as formas de expressão artística tornaram-se parte do meu estilo pessoal, pois compreendo que o acontecer humano, em constante movimento e transformação, não pode ser captado por nenhuma conceituação estática ou rígida. Requer uma linguagem que seja evocativa, e não saturada, não explicativa, mas sim porosa o suficiente para abranger o vazio, o desconhecido e o mistério.
Fixar uma borboleta em um quadro para catalogar sua espécie e descrever meticulosamente suas características não é, em minha opinião, suficiente para capturar a verdade do voo da borboleta e muito menos a essência desse inseto. Lembro-me de uma citação de Bion em que ele comenta o fato de que alguns textos de psicanálise cheiravam a formol; não pareciam referir-se à vida. Bion foi um autor que caminhou em seus escritos, passou de um lugar de busca por precisão matemática para uma linguagem poética e literária, como evidenciado em seus últimos livros (entre 1975 e 1979), e nas Memórias do futuro. Ele trouxe a importância da linguagem poética e a “capacidade negativa”, denominação do poeta Keats para a psicanálise. A capacidade negativa, como uma habilidade para caminhar no desconhecido, na incerteza, nas dúvidas e nos mistérios.
Atualmente, eu me identifico com autores que, na psicanálise, utilizam a vertente estética como referência, tais como Winnicott, Milner, Bollas e Ogden, entre outros. Desde Freud, a teoria psicanalítica tem mantido um diálogo constante com as artes em geral, e os conceitos teóricos têm se adaptado a fim de ganhar mais flexibilidade e admitir trânsitos, oscilações, e caminhos que não são lineares. Um exemplo é Melanie Klein, que, ao definir as posições esquizoparanoide e depressiva, descreveu configurações psíquicas amplas de duas perspectivas de estar no mundo. Bion, ao acrescentar uma flecha de dupla mão entre as duas posições, destacou o caráter de alternância constante entre uma posição e outra, que é fonte de enriquecimento e expansão ao longo da vida. Ao incluir a capacidade de reverie da mãe, deslocou o foco da atenção do mundo interno para o mundo intersubjetivo, o espaço do entre dois.
Acrescentando perspectivas, Winnicott trouxe o ponto de vista do bebê, que ainda não existe enquanto separado da mãe. A tarefa primordial de nossa existência, o caminho da separação, passou a ser examinado de perto, abrindo portas para investigar a área dos fenômenos transicionais, um lugar que não é interno ou externo, dentro ou fora, mas onde a vida acontece. A vida é entendida como criativa, o que implica que cada indivíduo, de forma singular e única, cria seu próprio modo de estar no mundo, inventando o mundo que está lá para ser criado. Esse é o paradoxo winnicottiano.
Como o poeta Manoel de Barros brilhantemente sintetizou, “tudo que não invento é falso”. Na minha perspectiva clínica, procuro oferecer um espaço em que a invenção do self possa ocorrer. É por isso que incluí a palavra “ateliê” no título deste artigo: um lugar de fazer, de ofício, de troca, de aprendizado, de descoberta e de experimentação de linguagens. É um lugar de liberdade, em que o self pode se desenvolver e se reinventar.
Desde os primórdios da humanidade, o ser humano busca imprimir sua marca pessoal no mundo, por meio da exteriorização de elementos de sua interioridade. As pinturas rupestres, por exemplo, nos fascinam e nos permitem uma viagem imaginativa através do tempo, conectando-nos com nosso passado e com um anseio fundamental de deixar uma inscrição no mundo, um reconhecimento do humano em nós e nos outros. Visitar cavernas e expor-se às pinturas ancestrais pode gerar uma experiência emocional de mistério, que provoca reverência e toca em lugares de silêncio dentro de nós. É por meio da descoberta de linguagens possíveis que o indivíduo é capaz de dominar suas próprias experiências traumáticas e inquietações, buscando assim significados e sentido para o existir no mundo.
Voltando a Bion (1978/2000), em um seminário realizado em Paris em 1978, ele utilizou a metáfora do ateliê para falar do consultório do analista e afirmou que um grande número de analistas não sabia que tipo de artistas eles eram. Indagado sobre o que aconteceria se eles não fossem artistas, Bion respondeu de forma provocativa, pondo em questão a própria identidade do analista: “Aí estarão na profissão errada, e não sei para qual serviriam, pois, mesmo que não sejam psicanalistas, eles precisam ser artistas na vida”.
Ele destaca que a beleza, como elemento estético, pode tornar as dores mais suportáveis. Embora citar os mestres seja importante, é fundamental construir um caminho próprio e desenvolver ideias sobre a necessidade de comunicação e expressão emocional, reconhecendo que essa busca implica vulnerabilidade e a preservação de núcleos de segredo. Desde o início da vida, o ser humano depende do olhar acolhedor de outro que o apresente ao mundo e ofereça o ambiente necessário para o amadurecimento e a potencialidade criativa. A área de ilusão é fundamental nesse processo, permitindo a experiência de onipotência básica e despertando a potência de si. O olhar clínico deve enfatizar a criação, manutenção e renovação constante da área de ilusão, do gesto criativo e do campo da transicionalidade.
Nossa tarefa como analistas é lidar com a complexidade da experiência humana, que muitas vezes não pode ser totalmente expressa em palavras. É por isso que buscamos diversas formas de expressão artística para ampliar nosso repertório e encontrar maneiras de acessar áreas obscuras da psique. Cada analista constrói sua própria “caixa de ferramentas clínicas”, que inclui não apenas conhecimentos teóricos e clínicos, mas também suas experiências de vida e suas análises pessoais e supervisões. A análise viva é um processo contínuo de construção e renovação, exigindo que o analista esteja sempre aberto a novas experiências e aprendizados.
Desde o início da vida, o ser humano depende do olhar do outro para se desenvolver e aprender a se relacionar com o mundo. A mãe, por exemplo, interpreta até os mínimos movimentos do bebê, como um sorriso, e oferece significado e sentido para essas interações. Esse diálogo infinito entre mãe e bebê é fundamental para o desenvolvimento da capacidade expressiva, que é essencial para a vida em sociedade.
No entanto, a vida separada também é inevitável e pode trazer dores e angústias. É por isso que a criação na área de transicionalidade é tão importante, pois permite que o indivíduo se conecte com o mundo de forma mais suave e flexível, minimizando as rupturas e colapsos inevitáveis nas relações interpessoais. A objetividade é alcançada por meio da subjetividade em constante construção, e a vida psíquica é nutrida pela teia da intersubjetividade.
Winnicott (1963/1983), em um texto complexo, “Comunicação e não comunicação levando ao estudo de certos opostos”, de forma instigante, disse que convivemos com uma enorme necessidade de ser compreendidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, com uma necessidade igualmente grande de termos preservados nossos núcleos de solidão e de não comunicação. Expor-se é sempre ficar em vulnerabilidade. Ao publicar um texto como esse, eu me ponho em risco…
Eu resolvi avançar um pouco nessa questão tão delicada e que desperta meu interesse. Na clínica, ao entrar na nossa sala, o paciente implicitamente autoriza que possamos invadir sua intimidade, buscando ampliar seu contato consigo mesmo e aumentar recursos para lidar com sua vida de forma mais autônoma. No entanto, estamos conscientes de que vamos entrar em territórios delicados, sensíveis, muitas vezes inflamados e às vezes tão silenciados, que evocam os silêncios dos lugares sagrados. Bollas (1992) nomeou essas experiências o lugar do “conhecido ainda não pensado”. Tanto o analista como o paciente estão em condição de vulnerabilidade, de exposição. O analista se põe em abertura para acolher, ser afetado e tocado nas suas próprias áreas de silêncio e dor. É essa disponibilidade que permite uma experiência de sintonia e compaixão. Dizendo de outra forma, estar em uníssono, em “attunement”.
Os artistas que encontram meios expressivos para áreas mais precoces do psiquismo, e põem à nossa disposição tantas imagens estéticas, visuais, musicais, literárias, transitam o tempo todo por essa condição vulnerável e arriscada. É um lugar muitas vezes dramático. Winnicott diz que, em todos os tipos de artistas, existem essas duas tendências: necessidade urgente de se comunicar e necessidade ainda mais urgente de não ser encontrado. Seria uma alegria estar escondido; mas um desastre não ser encontrado. Implica a necessidade de ser reconhecido, mas não ser exposto. Seria uma necessidade ontológica e universal de ser reconhecido, ao mesmo tempo que, igualmente vital, proteger o nosso cerne incomunicável, que é sagrado.
Sem dúvida, isso faz pensar nos bloqueios, inibições, sintomas e angústias. Por exemplo, o medo de falar em público, as crises psicossomáticas que antecedem performances artísticas, os “brancos” e as crises de pânico em geral - colapsos que impedem o trânsito livre e interceptam o fluir da vida. Como será que esse estado vulnerável que permeia a criação e a comunicação, tão necessária e ao mesmo tempo ameaçadora, encontra formas de expressão na arte?
Escolhi trazer como ilustração um artista que mergulhou fundo na condição dramática da existência.
Mark Rothko (1903-1970), filho de imigrantes judeus que fugiram da Europa devido à perseguição e à Primeira Guerra Mundial, viveu nos Estados Unidos e teve uma carreira importante e bem-sucedida como artista plástico. A condição de judeu e imigrante e a vivência de tempos de guerra, exclusão e crueldade social marcaram fortemente o lugar de onde Rothko se manifestava. Passou por vários estilos de pintura até chegar ao estilo que mais o caracterizou, denominado “expressionismo abstrato”, embora ele próprio não se reconhecesse nesse rótulo.
Não se considerava um pintor abstrato, pois sua intenção era expor todo o drama humano na tela e atingir um nível de comunicação e interação intenso e íntimo com o espectador. Dizia que o fato de as pessoas chorarem ao ver suas telas significava que experimentavam as mesmas emoções que ele próprio experimentava ao pintá-las. Para tanto, mantinha regras bastante rígidas de como suas telas deveriam ser expostas, definindo desde a cor das paredes, a iluminação da sala, a distância e o posicionamento da pessoa em relação à tela. Tudo para propiciar um envolvimento, um mergulho profundo, uma experiência de abertura para um estado meditativo, mas não de descanso. Pelo contrário, queria fazer um convite para penetrar em um universo conturbado e perturbador.
Confesso que as telas monocromáticas poderiam passar despercebidas por mim, mas foi por meio do estudo da arte e do conhecimento sobre o homem Rothko, sua história, seus conflitos e sua intensidade, que pude avaliar a grandeza de sua pintura. Muitas vezes, precisamos de lentes adequadas para poder considerar e apreender formas de comunicação em suas sutilezas. Assim é o trabalho da psicanálise, que amplia nosso olhar e promove alcance e expansão, acrescentando camadas de profundidade, em oposição ao olhar imediatista e superficial. Isso demanda tempo e alta frequência, exposição e abertura para nos deixar afetar.
Aos poucos, pude apreender como, em suas pinturas monocromáticas ou com associações puras entre formas e cores, criavam-se espaços de indeterminação, uma cor quase se dissolvendo na outra, dando uma ilusão de limiares, lugares de transição, portais para o infinito. Esses lugares de passagem remetem à área de ilusão, origem do campo simbólico (Milner, 1952/1991).
A marca idiomática de Rothko foca nesse lugar em que nascem possibilidades de abertura e renovação contínua das linguagens possíveis. Walter Benjamin refere-se aos ritos de passagem, cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade. O limiar alude às zonas de transição, lugares de mudança, como portas, janelas, soleiras, umbrais. Todos os dias, os momentos de adormecer e acordar são ocasiões de passagem, de passar de um estado para entrar em outro. São situações de vulnerabilidade que demandam sustentação. O limiar evoca a morada do sonho. Diferentemente das fronteiras, que delimitam espaços com contornos precisos, o “limiar não só separa dois territórios, mas permite a transição, de duração variável … ele pertence à ordem do espaço, mas também, essencialmente, à do tempo … ele lembra fluxos e contrafluxos, viagens e desejos” (Gagnebin, 2014).
Para Walter Benjamin, os tempos modernos achatam a capacidade de viver experiências liminares, o que se transformaria numa incapacidade de ousar experimentar a intensidade da vida, ou a dor da morte, vivendo na indiferença (Gagnebin, 2014).
Nossos tempos atuais mostram muito bem como a ausência de nuances, uma visão onde ou é isso ou é aquilo, provoca a anestesia da sensibilidade e graves distorções na percepção sensível e empática da realidade.
Para apreciar as obras de Rothko, são necessários tempo e disponibilidade para penetrar nessas zonas de transição. Na clínica, com frequência, encontramos pessoas que temem profundamente os momentos de silêncio. O discurso verbal funciona como evitação fóbica dessas áreas primitivas, que possivelmente remetem a experiências das agonias impensáveis, dos lugares de queda sem fim, dos abismos.
No seu ateliê interno o desafio é encontrar nas imagens poéticas uma linguagem possível para um mundo sem palavras. As pinturas de Rothko nos aproximam desse universo.
A peça de teatro Vermelho, de John Logan, encenada em São Paulo em 2016, com o ator Antônio Fagundes, conta um episódio marcante da vida de Rothko. O pintor recebe uma encomenda para pintar enormes painéis, que seriam colocados num luxuoso restaurante de Nova York, o Four Seasons, situado num igualmente imponente edifício, o Seagram. Seria pago o maior valor já recebido até então para um artista numa obra comissionada. Rothko assume a tarefa, mergulhando num trabalho descomunal de pôr nas telas toda a dimensão existencial da tragédia humana. Praticamente internado num imenso galpão, dedica-se por meses de corpo e alma. Já próximo à entrega do trabalho, é convidado para jantar naquele restaurante com sua mulher e conhecer o local onde ficaria exposta sua obra.
Ocorre que esse momento é desastroso para o pintor. Chocado com o luxo e preço do restaurante, além do lugar elevado em que ficariam os painéis, Rothko explode em fúria e diz que ninguém que pagasse aquele preço por uma refeição poderia ocupar-se em considerar sua pintura. Vive uma ruptura ética e consequente perda de sentido. Instala-se o colapso entre a necessidade de comunicar-se e o desastre de não se ver encontrado, reconhecido. Expor a experiência densa e íntima em um templo voltado ao consumo seria como vender a alma ao diabo. Ele devolve o dinheiro recebido e recusa-se a entregar as telas.
Numa introdução a uma publicação de escritos de Rothko sobre arte, descobertos e publicados após sua morte, seu filho, Christopher, conta que o pai temia o público e precisava desesperadamente dele para dar sentido às suas pinturas. Mesmo depois do sucesso, ele ainda temia que suas pinturas fossem mal-entendidas e finalmente violentadas por espectadores indiferentes. Seu rancor vinha de um sentido de vulnerabilidade, exacerbado por uma reação negativa que poderia vir de fora, mas que existia independentemente da reação externa.
Consta que o episódio do Four Seasons marcou profundamente a vida do artista, acentuando uma depressão já existente, problemas com álcool e cigarro, além de uma condição cardíaca grave, um aneurisma da aorta. Após uma longa negociação de uns dez anos com a Tate Gallery em Londres, as obras foram expostas numa sala especial que segue todas as orientações do pintor. No mesmo dia da inauguração da sala, em 1970, Mark Rothko é encontrado morto no seu ateliê, por suicídio, numa poça vermelha de sangue.
Penso que a obra de Rothko vai ao encontro de uma investigação das camadas mais profundas e silenciosas do eu, que faz pensar nesse núcleo isolado e sem comunicação, mas que, ao mesmo tempo, como diz Winnicott, é o lugar em que nasce o sentido de realidade. Vulnerabilidade e risco se fazem presentes.
Alguns anos antes de sua morte, o artista recebeu uma comissão da Prefeitura de Houston para criar murais para uma capela não confessional. Ele prepara 14 pinturas num projeto conjunto com os arquitetos, de um espaço meditativo. São pinturas escuras de tonalidades negras. A capela foi inaugurada após sua morte e é ponto de encontros internacionais de caráter ecumênico. A realização, ainda que póstuma, desse espaço dedicado ao sagrado converge para a ideia de Winnicott do lugar de preservação do núcleo não comunicável do eu, que deve permanecer preservado ao longo da vida, e ao mesmo tempo é o que estimula a criação e todas as formas de expressão. Winnicott (1963/1983) associa as reclusões místicas a “uma posição em que se pode comunicar secretamente com fenômenos e objetos subjetivos”, em que o afastamento do mundo da realidade compartilhada “é contrabalançado por um ganho no sentimento de se sentir real”.
Considero curioso que Matisse (1869-1954), pintor que foi inspiração para Rothko, no final da vida, já idoso e adoecido, tenha se engajado na construção de uma capela (1947-1951) em Vence, no sul da França. Nessa capela o artista pôs grande intensidade expressiva em desenhos em preto e branco que usam a força de linhas simples num painel sobre o martírio de Cristo, no qual procurou expressar a dor da existência humana e, bem em frente, como um contraponto, grandes e coloridos vitrais cuja força emana da luz. De um lado, a dor; do outro, a luz. Matisse nunca se disse um religioso; para ele, Deus estava na pintura, no ato de criar, ofício de toda uma vida dedicada à arte. Em suas palavras: “Não sei se tenho fé ou não. Talvez eu seja mais budista. O essencial é trabalhar num estado de espírito próximo da prece” (Gilot citado em Matisse, 1972/2007, p. 316).
Minha intenção não é destacar qualquer aspecto religioso, mas, sim, apontar o fato de que encontrei, na obra tardia desses artistas dotados de intuição poética, a criação de espaços que se voltam ao silêncio, um continente para as dores inevitáveis, ao mesmo tempo que promovem expansão aliada ao respeito pelos limites do humano. Em nosso mundo atual, sofremos com a hiperestimulação pelas imagens e sons, os excessos nos invadem, o que torna ainda mais pertinente a necessidade de lugares voltados ao silêncio.
Para Ogden, “a necessidade de não ser encontrado é que parece explicar a natureza inesgotável do que inspira o artista a continuar a criar” (2018).
Os ecos do homem primitivo e as marcas deixadas nas cavernas ressoam em nós, psicanalistas, que, assim como os artistas, temos uma tarefa inesgotável.