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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.46 no.77 São Paulo  2024  Epub Sep 20, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v46n77.23 

SBPSP 70 anos

A ORIGEM DA SBPSP: SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS…1 MAS NÃO APENAS2

Paulo Cesar Sandler3 

3Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), São Paulo


Estou aqui na qualidade de membro e filho de um dos primeiros membros de nossa Sociedade, o que proporcionou uma convivência com alguns fundadores e colegas do meu pai. Sou de uma época em que havia “turmas”, similar à época de meu saudoso pai: fazíamos, por quatro anos, cursos do “Instituto”. Tínhamos a Associação dos Candidatos que era chamada, a pedido de D. Virginia Bicudo, de Associação dos Candidatos “Luiz Vizzoni”, um dos candidatos que falecera precocemente, hoje chamada de Associação dos Membros Filiados (amf).

Tanto na minha época como na do meu pai, éramos admitidos após duas entrevistas com membros efetivos, aliadas a um teste de Rorscharch, feito por Marilena Carone, que substituiu uma colega de turma de meu pai, Elza Barra. Além das duas, D. Virginia e D. Elsa, pude conhecer na minha infância e adolescência, quase todos os refundadores - com exceção de um, o Dr. Flávio Rodrigues Dias. Refundadores?

Sim. Nossa Sociedade foi fundada duas vezes: em 1929, pelo Dr. Francisco Franco da Rocha e outros catedráticos da Faculdade de Medicina, dois advogados e um poeta; o secretário era o Dr. Durval Bellegarde Marcondes que a refundou em 1949. A Sociedade sem existir “oficialmente” durante duas décadas e na refundação, autorizada pela ipa, já tinha uma analista didata, Dra. Adheleid Koch. O leitor pode estranhar tantos doutores e donas e coisas assim, tento dar uma ideia, ainda que tosca, de como era o tratamento entre as pessoas, na minha época de “candidato”; era idêntico ao da época de meu pai. Como diziam D. Virginia e D. Adele (que nos manteve saudáveis por meio século): “naquela época, havia respeito”. Devo estar velho, escrevi “minha época” algumas vezes.

Dentre os refundadores, preciso citar o nome do Dr. Darcy de Mendonça Uchoa, pois assim que entrei na faculdade de medicina, testemunhei em seu favor em uma questão legal envolvendo um concurso para a cátedra de psiquiatria, ele não ganhou, mas sempre manifestou sua gratidão e falta de preconceitos.

A esposa Dr. Durval Marcondes, Dna. Erminda, um amor de pessoa, faleceu de câncer após quase meio século de um casamento genuíno, para a enorme tristeza do marido, não tiveram filhos. Dr. Durval casou-se, anos depois, com uma querida colega de “turma”, Lídia de Portugal, professora na usp - que lhe deu uma filha, quando ele estava com mais de 70 anos!

Já com D. Virgínia Bicudo, convivi de modo mais íntimo e prolongado, fazendo supervisão de casos clínicos, trilhando o mesmo caminho de meu pai, que foi seu supervisionando, e que colaborou com ela para editar a Revista Brasileira de Psicanálise e o Jornal de Psicanálise.

Convivi com o Sr. Frank Julian Phillips, submetendo-me a um tipo peculiar de supervisão, ultrapassando o limite de casos clínicos, abrangendo outras vivências que descrevi no pequeno livro In Memoriam, número 3, editado pelo extinto Departamento de Publicações da SBPSP.

Meu pai foi tradutor dos primeiros artigos que o Sr. Philips publicou na Revista Brasileira de Psicanálise, e as duas primeiras conferências que ele deu, ao retornar para São Paulo. Em 1968, o Sr. Philips e sua esposa, D. Margareth, frequentavam a casa de meus pais, ele sempre se mostrou grato pelo convívio com minha mãe e irmã; eu estava muito ocupado como calouro na faculdade de medicina e, de vez em quando, servia como um motorista, pois meu pai não podia dirigir, estava recém-saído de um infarto do miocárdio. De modo muito mais próximo, convivi com uma das primeiras analistas da Sociedade, Judith Seixas Teixeira de Carvalho Andreucci, que assumiu a responsabilidade de me ajudar a levar a cabo minha análise didática. Convivi também com alguns colegas “de turma” de meu pai. Chamavam a si mesmos de “irmãos de análise” de modo bem-humorado e peculiar, demonstrando uma certa leveza no trato dos fenômenos transferenciais. Eram pacientes do Dr. Henrique J. Schlomann, um dos três primeiros analistas didatas em São Paulo. Recordome até hoje da intensa tristeza de meu pai, em 1961, quando o Dr. Schlomann faleceu: tristeza parecida, só vi quando meu avô faleceu. Recordo-me também do sorriso franco de Cléo Lichtenstein Luz, que persiste até hoje. E da gratidão de Cléo, para com meu pai, pelo fato de ela ter encaminhado uma pessoa de sua família para fazer análise com ele. Cléo entrou para a sbbsp poucos anos depois de meu pai, e a admiração sempre foi mútua. Deve ser coisa que herdamos - a amizade ficou para a segunda geração e foi compartilhada com Ester, análise traz isso, casamento em comunhão de amizades!

Breno Lulo Ribeiro era muito brincalhão com as crianças e tinha, junto com Otávio Salles, um Volkswagen com um teto solar “de pano”, como dizíamos. Nós, crianças, podíamos ficar de pé no assoalho e olhar a paisagem por cima do teto, na ponta dos pés. Breno e Otávio compartilhavam com meu pai a mesma atração por automóveis exóticos e raros. Meu pai dizia, esse vai ser o carro do futuro, o que arrancava risadas de meus tios, que achavam que o Fusca se parecia com uma barata. Acredito que minha atração por essas engenhocas foi estimulada por esse trio: meu pai, que sabia regular o motor, Breno e Otávio, este impressionava-me com sua generosidade, misturada com seriedade e animada agitação. Assim como Gecel Szterling, Otávio havia sido amigo de adolescência de meu pai, na cidade de Santos.

Lembro-me até hoje de uma senhora sofisticadíssima que se trajava de modo diverso das minhas tias e da minha mãe. Era irmã da esposa de um primo de meu pai, soube depois que era a esposa do “Dr. Gecel”, como nós, crianças, o chamávamos. Tinha o mesmo nome de duas de minhas tias, Fajga, e, quando criança, por vezes, eu fazia confusão com o nome delas… Aumentou minha admiração quando, anos depois, Fajga foi estudar psicanálise. Tinham três filhas, como todos os que estão lendo esse artigo bem sabem. Foi uma alegria reencontrar Raquel, minha “veterana” na SBPSP (entrou dois anos antes do que eu) e Thais, que entrou três anos depois. Tive a sorte de dirigir a Ide, junto com Raquel, em tempos difíceis, estava para ser extinta.

Fajga, na condição de membro efetivo da SBPSP, proporcionou-me raro convívio. Dirigia a Revista Brasileira de Psicanálise. Havia sido uma de minhas primeiras professoras na obra de Freud, junto com Antonio Sapienza. Aceitou uma crítica que fiz durante uma aula, e citei um artigo da revista. Tinha uma pequena experiência editorial quando dirigiu a Revista de Medicina, do Departamento Científico do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da FMUSP, e trabalhou na Folha de S. Paulo. Eu estava acostumado a escrever artigos científicos em medicina, tinha terminado meu mestrado e dava aulas na Faculdade de Saúde Pública - a mesma na qual Dr. Durval Marcondes, D. Virginia, D. Lygia Amaral e D. Judith haviam trabalhado.

Supus que a Revista precisasse de revisões de livros mais coerentes, menos elogiosas e que fizessem uma crítica científica do conteúdo. Em resposta à minha crítica, Fajga, que a ouviu com a mesma seriedade com que a fiz, falou: “Você pode fazer uma resenha. E vamos ver como fica!”. Fiz muitas, ao longo de três anos, antes de colaborar com a gestão seguinte, de Paulo de Paula e Silva. Não tinha noção disso, mas em retrospecto, foi um percurso que terminou quando dirigi a publicação em um período difícil, havia um tipo de ameaça política de outras sociedades para retirá-la de São Paulo. A Revista Brasileira de Psicanálise tem um significado emocional para mim, impossível de ser descrito, mas posso tentar. Meu pai participou, a convite de Virgínia Bicudo, de boa parte da redação dos primeiros números. Traduziu artigos de Melanie Klein, Frank Philips e outros autores estrangeiros. Era um dos poucos membros da SBPSP que dominava a língua inglesa - um dos muitos assuntos nos quais ele era autodidata. Os artigos de meu pai versavam sobre aplicações pioneiras da psicanálise: em psiquiatria prisional (Sandler, J., 1969) e depois, em função da ditadura instalada no país, na reabilitação de coronariopatas. Foi o primeiro serviço na América do Sul, e meu pai foi entrevistado por alguns periódicos leigos como Veja, Visão e o serviço da BBC para o Brasil.

Seria injustiça não mencionar o nome de José Nabantino Ramos e sua filha, Heloisa Ramos, nossa colega e minha colega “de turma”. Na minha visão, obtida pelos testemunhos orais de D. Virgínia e de meu pai, em conversas comigo, a refundação da Revista, em 1967, só foi possível pelo auxílio inestimável do Dr. Nabantino, um advogado respeitadíssimo em São Paulo, membro “egresso”, como se dizia na época, da SBPSP. Era um dos proprietários da Empresa Folha de S. Paulo. Assumiu de corpo e alma a organização e feitura da Revista, em todos os sentidos: financeiro, de impressão e o modo de coletar os primeiros artigos. Havia sido paciente de Porto Carrero, nos anos 1930. Viajava, contou-me Heloisa, de trem, todas as semanas, para o Rio de Janeiro. Desde 1940 fez parte da segunda leva de pessoas que procuraram a Dra. Adelheid Koch para levar adiante sua análise.

Anos depois, voltei a ter contato com Otávio Salles que havia retornado de Londres, onde vivera por vários anos. Dispôs-se a ir até a casa de meus pais, para fornecer indicações, mapas e orientações sobre Londres e aspectos a respeito da vida entre os ingleses, pois meu pai, aos 58 anos, decidiu morar por lá, para fazer estágio na Clínica Tavistock e frequentar reuniões na Sociedade Britânica de Psicanálise, e supervisões com analistas que conhecera no Brasil, que tinham um contato muito amigável e respeitoso com ele: Betty Joseph, Hans Thorner, Herbert Rosenfeld, Oliver Lyth, Hanna Segal e Wilfred Bion.

Roberto Azevedo também auxiliou meu pai para viajar. Lembro-me também da seriedade do Dr. Helladio Capisano, que trabalhava como o “Professor Pontes”. Junto com Dr. Nelson Poci e Dr. Luiz Miller de Paiva, amigos de meu pai, fizeram um tipo de triunvirato, seguindo a iniciativa do Dr. Pontes, professor de medicina que introduziu o estudo da medicina psicossomática em São Paulo. Atualmente, Yoshiaki Okky, meu colega de turma, prossegue nesse caminho. Lembro-me bem do Dr. Eugenio Mariz de Oliveira Netto, um psiquiatra respeitado; e do Dr. Maurício Levy e sua esposa, D. Célia. Dr. Maurício era colega de consultório de meu pai e adorava música - era sobrinho de compositores famosos, Alexandre e Luiz Levy. Todos eram extremamente afetuosos com as crianças. Parecia-me que os psicanalistas falavam de tudo. E, principalmente, do que realmente “interessava” a nós, crianças. Eles nos procuravam, quando apareciam na casa de meus pais, ou quando íamos até a casa deles. Eram diferentes dos outros adultos, que só falavam com as crianças, quando as crianças os procuravam. E mesmo assim, olhe lá, dependia muito do assunto que levava a criança a procurá-los. Alguns diziam: “Isso não é assunto de criança”, ou “cresça e apareça, vai precisar comer muito feijão para saber o que é isso!”, e coisas similares. De modo muito especial, essa era a atitude da “Tia Virgínia” e da “Regina” (Schnaidermann). Sobre Tia Virgínia, deixei um obituário, descrevendo meu convívio com mais detalhes na série In Memoriam, que decidi publicar, com o apoio de Marcio Giovannetti, por perceber que a Revista Brasileira de Psicanálise não fazia mais os obituários do colegas que faleciam.

Recordo-me muito bem de Isaias Melsohn, de seus filhos, e de Chaim Hamer, que conheci na adolescência. Segundo meu pai, os dois “também eram amantes de Beethoven”. Relacionavam-se com pessoas de “fora da Sociedade de Psicanálise”. Isaias e Regina faziam parte de um grupo que se reunia com Anatol Rosenfeld, que me parecia, na minha época de adolescente, ser pai de todos os intelectuais do mundo. Era um grupo informal, mas que resultou em grupos universitários de estudos, composto pelos outros amigos de meus pais. Estavam sempre juntos. Lembro-me especialmente de Guita e Jacob Guinsburg, que resolveram fundar uma editora que se tornou tradicional, “Perspectiva”, pela altíssima qualidade dos livros. Só os reencontrei muitos anos depois.

Regina era casada com Boris Schnaidermann. Não sei até que ponto os leitores deste artigo sabem que Boris foi o primeiro professor de russo na usp. Teve justo reconhecimento como tradutor e literato. Tenho até hoje o primeiro romance de Boris, autografado e corrigido por ele mesmo; fez questão de levar à casa de meu pai (Guerra em Surdina): o powerpoint de minha apresentação na SBPSP da qual esse texto é um resumo, tem uma citação desse livro. Regina e Boris marcaram o início de minha adolescência e de minhas visões de política. Quando entrei na SBPSP, em 1978, encontramo-nos causalmente. Ao meu ver, Regina ficou emocionada. Meu pai viajara para Londres, de onde nunca retornaria, faleceu em 1979. Pareceu-me que ela temia que isso ocorresse; não falou nada a respeito disso, mas a emoção me parecia ser essa. Disse-me: “Paulinho, vou te dizer uma coisa. Fui paciente de seu pai. Quis ser psicanalista depois disso. Havia um certo medo naquela época para quem não era médico, mas seu pai me estimulou muito, não tinha preconceitos”. Quando a conheci, na infância, Regina era professora de química. O casal tinha dois filhos, Miriam e Carlos. Faziam parte do grupo que se reunia com Anatol Rosenfeld.

Outro colega que também se relacionava com pessoas de “fora da sociedade” era Chaim Hamer, que frequentava um grupo autointitulado de “audiotas”. Ficavam ouvindo compositores clássicos “o tempo todo”, pelo menos na minha imaginação. Entendiam profundamente de aparatos de áudio, como gravadores e toca-discos, daqueles que hoje viraram peças de museu. Que, como tudo na vida, têm retornado ultimamente - basta vivermos algumas décadas que poderemos afiançar a verdade contida na observação daquele que é considerado como pai da moderna ciência: “Toda novidade não passa de esquecimento” (Bacon, 1625b). Hamer apresentou a meu pai três engenheiros de som. Uma atividade quase inexistente por aqui naqueles tempos, a não ser em estações de rádio e tv. Entre eles, uma pessoa que me impressionou sobremaneira: Christos Garakis, que havia sido cozinheiro em um navio mercante, recém-chegado da Grécia. A amizade sincera, apolítica que unia os colegas de meu pai me impressionava. Meu pai me apresentou as obras de Freud, Shakespeare, Goethe e de muitos autores em medicina. Havia uma amizade que incluía ciência e arte e tudo que se liga às duas: a vida. Um dia, apresentei Christos para o filho de uma amiga de meu pai que depois se tornou minha amiga - já falei dela, Cléo. Os dois são amigos até hoje!

Dou esse exemplo para explicar o que tento dizer com o ato de conviver com pessoas “de fora da Sociedade”. Além de pensar que psicanalistas eram pessoas que gostavam de crianças, eu achava que eles não falavam apenas de “coisas de psicanalistas”, como eu via com outros amigos de meu pai que eram médicos, e só falavam de coisas de medicina, ou engenheiros, que só falavam de construção, ou advogados, que só falavam de causas, que eu, quando criança, ouvia “calças”.

Em 1965, meus pais receberam um grupo de colegas. Fui incumbido de tirar fotografias e fazer um filme de 8 mm, meu pai me confiou suas preciosas máquinas. Foi o grupo mais divertido que vi até hoje. Aquele que na época eu chamava de “Dr. Ferrão” ficou imitando um galo que precisava fazer uma declaração de amor para uma pessoa que me parecia ser a maior dama da Sociedade, D. Lygia Amaral. Ela era prima da melhor e mais meiga professora do ginásio estadual onde eu estudava: D. Lia de Almeida Prado, que dava aulas de latim. As duas tinham uma majestade simples, que é difícil, ou talvez impossível de descrever em palavras.

Quando estudante de medicina, perguntei para meu pai onde havia algum hospital onde se faziam anamneses de um modo decente: precisava fazer um estudo estatístico de medicina preventiva, e as anamneses do Hospital das Clínicas eram muito incompletas e mal cuidadas. Ele não hesitou: “Procure o Mario Yahn, ele é diretor do Instituto Aché, são muito sérios”. Quando me formei, Dr. Mario ofereceu-me uma vaga de plantonista e de clínico-geral. Mal saído da adolescência, conheci a sensatez benevolente do Dr. Silvio Barbosa e do Dr. Lothar Sollinger que me proibiu de chamá-lo de doutor, que lá trabalhavam com o Dr. Gecel. Eu não tinha sala para atender e Dr. Gecel cedeu-me a dele, no período da manhã. Tinha conhecido de longe Felix Gimenez que, depois, foi meu primeiro professor na obra de Bion.

E, principalmente, das ações inesperadas e atrevidas de Roberto de Azevedo, que sempre abriu sua casa para que eu e minha irmã pudéssemos usufruir do convívio com seus filhos. Gostaria de descrever as experiências com Roberto, outro que me proibiu de chamá-lo de doutor, mas deixo isso para outra oportunidade. Todos eles estavam na minha primeira festa - a comemoração de meu bar-mitzvah, mas a pessoa que mais me impressionou foi alguém que meu pai e minha mãe fizeram questão absoluta de apresentá-la para mim. Estavam felizes que ela tinha atendido ao convite: “Venha aqui, Paulinho, você vai conhecer a pessoa mais bonita da sociedade! Ela se chama Adele!”.

Chrystos Garakis também fabricou e orientou outros analistas que desejavam, ou precisavam de equipamentos eletrônicos de som. Será que amizade é hereditária? Meu pai já havia falecido, e tive a oportunidade de apresentar o Chrystos para um dos filhos de Cléo Luz. Abriu a possibilidade de trabalho para ele, ficaram amigos, e são amigos até hoje! Chrystos tinha um conhecimento da natureza humana profundo e amoroso; lembro até hoje de alguns comentários que ele fazia sobre os analistas que havia conhecido. Trabalhou como freelance para grandes empresas e até mesmo para o governo federal, pois parecia ser o único que entendia de instalações de som. Foi a primeira pessoa que conheci, que teve a oportunidade de crescer financeiramente sendo dono de uma empresa eletrônica, e que me disse: “De jeito nenhum. Nunca vou ser escravo do dinheiro”, e mudou-se para o Nordeste! Além de pensar que psicanalistas eram pessoas que gostavam de crianças, achava que não ficavam falando apenas de “coisas de psicanalistas”, como eu via com outros amigos de meu pai que eram médicos e só falavam de coisas de medicina. Ou eram engenheiros e só falavam de construção e assim por diante.

Na minha memória, todos diziam gostar muito de arte, mas não sob todas as formas. Poucos, além de Isaías e Chaim, apreciavam música do mesmo modo que meu saudoso pai: uma exceção era o colega de consultório dele, Maurício Levy, cujos dois tios eram compositores notáveis, Alexandre e Luiz, alsacianos de nascimento. Um dia Mauricio Levy veio à casa de meu pai como um disco - LP, de plástico! - de uma “jovem pianista genial” que havia conhecido. Estava gravando as músicas de Alexandre Levy, que poucos conheciam. E tinha um nome que eu nunca tinha visto: Eudóxia de Barros. Trouxe o disco como alguém que traz um tesouro; e era mesmo! Mauricio e sua espoca, Célia, eram gentilíssimos: pediam para minha mãe, que tocava de ouvido, tinha um ritmo impressionante, um sincopado inigualável, tocava tango e chorinhos, de modo parecido com o de uma artista então famosa, que ouvíamos no rádio, Tia Amélia. Minha mãe também tocava a música de Zequinha de Abreu e José Nepomuceno, dava gosto de ver ela conversar com Mauricio Levy.

Quando era adolescente, meus pais receberam um grupo de colegas e foi o grupo de adultos mais divertido que vi até hoje. Um deles, que eu chamava de “Dr. Ferrão” ficou imitando um galo que precisava fazer uma declaração de amor para uma pessoa que me parecia ser a maior dama da Sociedade: D. Ligia Amaral. Havia descoberto, um pouco antes, que D. Ligia era prima da melhor e mais meiga professora que havia conhecido, no ginásio estadual onde estudava: D. Lia de Almeida Prado, que dava aulas de latim. As duas tinham uma majestade simples, que é difícil, ou talvez impossível de descrever em palavras.

Outro analista que me recordo com muita afeição é Paulo Gonzaga de Arruda, ele sempre pedia para minha mãe tocar. É uma pena que hoje em dia ninguém fala dele. Por coincidência, fez, junto com Yutaka Kubo, minha entrevista quando eu quis entrar para o Instituto. Kubo era mais jovem que meu pai, e o tratava com muita deferência. Era um analista de poucas palavras, mas quando falava, falava o que servia, com algum sotaque.

Naquela época havia dois “Paulos Arrudas” em São Paulo. Os dois eram amigos de meu pai; um deles, que se chamava Paulo Vaz de Arruda, era interessadíssimo em psicanálise, e trouxera a técnica do Eletroencefalograma para nossa cidade, introduzindo-a na Faculdade de Medicina e na Penitenciária de Estado, onde ficou amigo de meu pai.

A entrevista com Paulo Gonzaga de Arruda começou de um modo engraçado: era um homenzarrão, alto, bem falante, cabelos grisalhos, e adorava tango. Adele me deu uma ficha com o nome, “Paulo Arruda”, e esperava que quem abrisse a porta seria o eletroencefalografista, que dava aula para o curso Experimental de medicina, onde Ester estudava e eu dava um jeito de assistir umas aulas! Confundi as coisas. Havia acabado de me submeter ao teste de Roscharch, com Marilena Carone, que substituíra Elsa Barra, em vários lugares, e também fazia para os presos na Penitenciária…Paulo Gonzaga de Arruda observou minha surpresa, olho-no-olho, viu minha aflição. Me tratou de um modo tranquilo e afetuoso. Não sei bem como, mas ele percebeu, sem que eu falasse nada: “Ah, o outro Paulo Arruda é mais famoso, você achou que eu era ele!”. Também, para confundir os nomes desse jeito, certamente eu estava muito aflito com a situação de entrevista, e ele dissolveu minha angústia, sem que eu precisasse me explicar. Em retrospecto, estava com medo do desconhecido, e substitui, em fantasia, um Paulo Arruda que eu conhecera mais recentemente com um Paulo Arruda que iria adentrar naquilo que me era desconhecido e temido.

Marcou-me a sensatez benevolente do Dr. Silvio Barbosa e de Lothar Sollinger. Os dois não admitiam serem chamados de “doutor”. Encontrei-os anos depois, na prática de psiquiatria. E de Felix Gimenez, que depois foi meu primeiro professor na obra de Bion. E, principalmente, das ações inesperadas e atrevidas, e às vezes assustadoras, de Roberto de Azevedo. Que sempre abriu sua casa para que eu e minha irmã pudéssemos usufruir do convívio com seus filhos, Robertinho e Dado e sua irmã, e D. Jati, que era tão amorosa como o eram minha mãe e minhas tias.

Todos eles estavam na minha primeira festa: a comemoração de meu bar-mitzvah. Mas a pessoa que mais me impressionou nesse dia foi alguém que meu pai e minha mãe fizeram questão absoluta de apresentá-la para mim. Estavam felizes que ela tinha atendido ao convite: “Venha aqui, Paulinho, você vai conhecer a pessoa mais bonita da sociedade! Ela se chama Adele!”

Era uma época em que congressos de psicanalistas tornavam-se notícias nos dois mais respeitados jornais, O Estado de São Paulo e seu maior competidor entre os leitores da classe média, Folha da Manhã. Na apresentação à SBPSP promovida por Carmen Mion, mostrei fotos dessas reportagens, em PowerPoint. Coisas da época dos dinossauros, quando se escrevia com máquina de escrever, os jornais tinham linotipos, nos quais as “telhas” eram colocadas, as páginas do jornal em liga de alumínio que funcionavam como se fossem grandes carimbos, nas rotativas. As fotos eram reproduzidas por meio de clichês: um monte de pontinhos que hoje em dia, seriam pontões, caso comparados com os pixels das telas dos computadores. Os pontinhos eram impressos, por calor e ácido, em outra liga de alumínio, pregada em um taco de madeira, que era então afixado nas “telhas”. Como trabalhei na Folha de São Paulo, tudo isso faz parte das minhas memórias, pois não só meu pai, mas os colegas dele, aceitaram e me estimularam a trabalhar por lá, coisa que fiz por nove anos.

A psicanálise era muito rara em termos do número de praticantes, e, paradoxalmente, muito mais reconhecida, socialmente. Quase todos os psicanalistas daqueles tempos tinham tido a medicina como formação prévia: meu pai sempre dizia, com o maior orgulho, que a SBPSP se diferenciava de todas as outras, “até mesmo a de Londres, pois não nutria preconceitos e aceitava pessoas sérias e interessadas em psicanálise, não importando sua formação prévia”.

Mais tarde, contou-me que entre os fundadores, e depois, os refundadores e membros, havia advogados, assistentes sociais e psicólogos.

Meu pai era um psicanalista clínico respeitado e bem-sucedido. Falo isso usando apenas um parâmetro: nunca conheci nenhum de seus pacientes. Mas quando ele faleceu, havia pelo menos 30 pessoas que vieram me cumprimentar e disseram: “Fui paciente de seu pai”, e alguns estavam muito emocionados e tristes. Foi professor de psicanálise e psiquiatria em duas escolas. D Virgínia o convidou para lecionar na Santa Casa de Misericórdia, onde havia sido responsável por introduzir o ensino da psicanálise. Depois, ele foi convidado para lecionar Psicologia na Universidade de São Paulo, que na época fazia parte do departamento de pedagogia - reflexos da onipresença de Durval Marcondes. Foi para lá a convite de um dos psiquiatras mais respeitados, Dr. Cícero Christiano de Souza: especialista no método de Rorschach. Meu pai dizia que o departamento de psicologia precisava de professores que tivessem experiência clínica em psiquiatria, e acedeu com alegria, pois adorava o convívio com estudantes. Em torno de 1950 ele conheceu o Dr. Cícero que chefiava o Instituto de Biotipologia Criminal na Penitenciária do Estado de São Paulo, no qual meu pai foi admitido como psiquiatra. Dr. Cícero sabia utilizar as contribuições da psicanálise para a psiquiatria. Introduziu a terapia de grupo para os prisioneiros, conduzido por membros da SBPSP, além de meu pai. Era uma das tentativas que ainda se fazia para dispensar um tratamento humano a essas pessoas. Na década de 1960, meu pai conheceu Arthur Hyatt Williams, que fazia um serviço similar na Inglaterra.

Preciso fazer menção especial ao Dr. Mario Yahn e seu amigo e colega, Dr. Waldemar Cardoso. Os dois estavam entre os primeiros pacientes da Dra. Koch, junto com Durval Marcondes e Virgínia Bicudo. Introduziram-me, sob indicação de meu pai, ao complexo mundo da psiquiatria. Todos eles, junto com meu pai, conheciam bem um homem que chamavam de “Pachecão”, um tipo de autointitulado rei ou ditador dos psiquiatras e psicólogos e médicos forenses. Era um exímio e sagaz político, fez uma proeza nunca vista, nem antes, nem depois: ser catedrático em quatro faculdades públicas. Não gostava nem um pouco de psicanálise. Fez a maior confusão ao mover um processo tão rumoroso quanto inútil contra D. Virginia, “por exercício ilegal da medicina”. Virginia tinha sido aluna dele, na Escola de Sociologia e Política! Era “inimigo de morte” de Durval Marcondes. Perdeu o processo por interferência direta e corajosa do Dr. Yahn. O “Professor Pacheco” parecia gostar de confusão. Criou uma situação muito desagradável com o Dr. Darcy Mendonça Uchoa, um dos fundadores da SBPSP, o que acabou motivando outro processo, mas contra ele mesmo. O Dr. Darcy o substituíra como catedrático na Escola Paulista de Medicina, o que o deixou furioso, como tinha muito poder político na Faculdade de Medicina, conseguiu impedir que o Dr. Darcy o substituísse por lá também. Conheci-o em 1968, logo após ter entrado na Faculdade de Medicina, ele dava, graciosamente, um livro para todos os calouros de medicina, que ele mesmo tinha mandado imprimir, escrito por um obscuro norte-americano, chamado “Psicanálise, a mistificação do século”.

Como ironia do destino, seu primogênito, Antonio Carlos Pacheco e Silva Filho, procurou D. Virginia para fazer análise! Conhecido como “Pachequinho”, tornou-se membro respeitado na SBPSP e mantinha uma relação muito amigável com meu pai. Minha mãe um dia comentou, a respeito dessa situação: “aqui se faz, aqui se paga”. Conheci “Pachequinho” em 1973 e nos reecontramos na SBPSP. Era uma pessoa afável, educadíssimo e muito simpático. Por coincidência, sua esposa, Maria Lucia, foi minha colega de turma na SBPSP.

Já que essa é uma reunião histórica, parece-me oportuno mencionar o nome de alguém que nunca conheci, mas conheci pessoas que o conheceram: Dr. Francisco Franco da Rocha, outro homem sem preconceitos. Ficou famoso, por uns 80 anos, por ter criado o primeiro centro de tratamento humano de pessoas com transtornos de comportamento, que chamou de Hospital do Juqueri. Virou modelo para outros hospícios. Trouxe um novo “método alemão”: colônias agrícolas, ou de laborterapia, para substituir a violência da custódia prisional. Meu pai me contou que ele fez as primeiras traduções das obras de Freud, pois conhecia a língua alemã, e escreveu o primeiro livro sobre psicanálise no Brasil, mantendo correspondência, hoje perdida, com Freud. É uma pena que nenhum de nós iniciou seus estudos de psicanálise com esse livro, um modelo de escrita contendo uma iniciação sobre a teoria e a prática da psicanálise conforme exposta por Freud até 1918 (Franco da Rocha, 1919). Fez um resumo de seu livro para elaborar uma tese, lida com paixão por um então jovem estudante: Durval Marcondes. Essa tese rendeu-lhe a indicação para a cátedra de neuropsiquiatria, por indicação do primeiro diretor da Faculdade de Medicina, o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho. Outro fundador da SBPSP foi Raul Briquet, o primeiro catedrático de obstetrícia e ginecologia; e Pedro de Alcântara, pediatra. Ouvi falar de Franco da Rocha por meu pai e pelos Drs. Mario Yahn, Durval Marcondes e Aníbal Silveira, que com ele conviveram nos anos 1920. Ouvir falar não é um bom método de informação, pode ser fonte de fofocas, mas ao mesmo tempo a “história oral”, quando feita com seriedade, já faz parte do instrumental de historiadores. Conheço um bisneto de Franco da Rocha, que guarda com cuidado fotos e informações dele.

Sob um vértice de observação histórico-científico, foi o genuíno interesse de neuropsiquiatras na obra de Freud, o primeiro método não-custodial para tratamento de pacientes, que introduziu a psicanálise como prática social de utilidade pública. Não é por coincidência que Durval Marcondes encontrou lugar para trabalhar na Faculdade de Saúde Pública da usp, levado por Geraldo de Paula Souza, seu primeiro diretor.

No seu âmago, nossa semente foi científica, para os que supõem que medicina, advocacia e pedagogia podem ser consideradas como disciplinas científicas. Afirmação que pode parecer demasiadamente categórica para pessoas que não favorecem o vértice científico aplicado a qualquer disciplina que se considere: tendência que hoje ficou popular. Alguém defenderia a posição de que pessoas que pratiquem medicina, engenharia ou direito, não possam se dedicar, por vezes de modo profundo a outras disciplinas, incluindo as artísticas? Psicanalistas são, em essência, investigadores transdisciplinares. Muitos dos primeiros analistas fundaram os primeiros serviços para cuidar de doenças específicas em São Paulo. Em gastroenterologia: José Fernandes Pontes, Luiz Miller de Paiva, Francisco Claudio Montenegro Castelo. Em reabilitação em cardiologia: Jayme Sandler, meu pai.

Por herança filogenética (Dayrat, 2003), e movidos instintivamente por necessidade de sobrevivência e pela “urgência de conhecer”, a obra de Freud desenvolveu um, dentre os modos possíveis para efetuarmos aproximações à natureza humana, tal como ela é. E, principalmente, às vicissitudes e sofrimentos que afetam nossa natureza humana.

Na minha maneira de ver, é na ciência e na arte que se busca-se conhecimento e modos de lidar com fatos materiais e imateriais. Pode haver outros, mas os limites de minha ignorância só me autorizam a enumerar esses dois. Bion observou que algo real, hoje denominado de psicanálise, já existia sob forma de um pensamento-sem-pensador (Bion, 1975), esperando que aparecesse um Freud para pensá-la e cunhar seu nome.

Propus no livro Dimensões (Sandler, 2012, p. 492) organizado por uma grande equipe liderada por Plinio Montagna, a diferença entre meritocracia científica (técnica) e meritocracia política. A meritocracia técnica é aquela que funda, inicialmente, os grupos científicos e artísticos. A meritocracia derivada dela, que denomino de meritocracia política ou burocrática, é aquela que organiza o grupo e lhe dá condições materializadas de sobrevivência.

Não falei das lágrimas. Para falar delas, preciso falar de um perigo que sempre nos ronda, a “demasiadamente humana”, como observou Nietzsche, institucionalização política. Durval Bellegarde Marcondes, herdeiro de ingleses, que por sua vez, eram herdeiros de franceses, e herdeiro de portugueses “quatrocentões”, da elite intelectual paulista, era interessado em Freud, eugenia, higiene mental, educação e guerra. É dele a primeira citação de um artigo de Bion, “Neurose de guerra”, de 1942, junto com Virginia Bicudo. Assim que iniciou a prática em psicanálise, aplicou-a à pedagogia. Considero-o como um praticante transdisciplinar que nos deu o exemplo.

O Dr. Marcondes foi alvo de várias violências sociais: perdeu um concurso para a cátedra de psiquiatria porque não tinha o que se chamava de “pistolões”. Em 1968, foi perseguido por estudantes um tanto rancorosos da usp, que diziam que ele seria “de direita”. Relatei há pouco que Virginia (só passei a chamá-la assim em 1980) sofreu a falsa acusação de exercer medicina ilegalmente. Foi salva de ir para a cadeia por Mario Yahn, que assumiu a responsabilidade dos pacientes. O fato ocorreu em sessão pública, em um congresso de higiene mental, em 1954. Meu pai falava disso, emocionado, durante os anos seguintes. Tendência, algo demasiadamente humano da meritocracia política, toda vez que toma o leme de tudo para impor suas tendências da moda política vigente, de direita, de esquerda, de quem perdeu o próprio centro e precisa se filiar a “ismos” e ser um “ista”. Subtrai a qualidade científica. No nosso caso, a qualidade psicanalítica, em tenebrosas transações, como disse o poeta Chico Buarque.

Termino lembrando de algo que Adelheid Koch, analisada por Otto Fenichel, disse algumas vezes: “Há analistas escritores e analistas de divã. Prefiro os analistas de divã”. Essa é a verdadeira origem de nossa sociedade. E me parece ser aquela que pode mantê-la: a experiência clínica em psicanálise.

Psicanálise poderia ser comparada, analogicamente, a uma ave de arribação? Filosofia, hoje em dia, é assunto de físicos, matemáticos e biólogos, coisa que ocorre na mesma extensão em que filosofia, como disciplina acadêmica, passou a desprezar o estudo daquilo que não sabemos bem o que é, mas chamamos, por intuição, de “mente”. E daquilo que todo mundo sabe o que é, pelo menos quando somos crianças, e também por intuição, e que chamamos de “verdade”. Mas, em pelo menos alguns de nós, vamos aprendendo a evitar, por vários modos, apelando para mentiras, evasões e enganos. Freud percebeu com clareza, amplitude e profundidade que há dois princípios do funcionamento psíquico: o princípio do prazer-desprazer e o princípio da realidade. Sob a égide desse segundo princípio, pode ocorrer suor, lágrimas e pode-se sangrar. Não apenas, mas também. Sob a égide do primeiro, só por erro de cálculo ou habilidade.

Será que, ao longo do tempo, e em certas instituições, a meritocracia técnica (ou científica) se guiaria principalmente pelo princípio da realidade, enquanto a meritocracia política, cada vez mais frondosa, se guiaria principalmente pelo princípio do prazer-desprazer? No início, talvez não fosse assim. Mas o teste do tempo se impõe, e nele, observa-se essa situação. Bion aponta o fato, nas dúvidas de São Tiago e São João para com Jesus, em Atenção e Interpretação (Bion, 1970, no capítulo, “O Místico e o Grupo”)

Psicanálise existia, sem esse nome, no âmbito numênico descrito pelos antigos gregos. Tentou pousar no trabalho de filósofos. Que foram vistos, em desprezo, como anti-filosóficos e demasiadamente “psicologizantes” (Locke,1690; Hume, 1748; Berlin, 1977). Faltava-lhes um nutriente. Apareceu em um ninho insuspeito: o renascimento da medicina, que prometia atenção incondicional ao indivíduo, e não apenas à horda e menos ainda, à elite dominante, no que historiadores de ciência e arte denominam, Renascença, Século das Luzes e Movimento Romântico (Sandler, P. C., 2000a, b e c; 2001).

Por falta de métodos e instrumentos minimamente adequados, o ovo da ave de arribação ficou como os bebês prematuros, em incubadeiras ineficientes providas por crenças positivistas de causalidade. Enjaulada na neurologia (Steinberg, 1993) e depois na psiquiatria, finalmente alçou voo até pousar em Freud, que a descobriu por observação clínica, empiricamente verificável.

Espero que vocês, jovens de nossa Sociedade, possam continuar a tratar bem a nossa ave de arribação, a psicanálise.

1 Do famoso discurso de Winston Churchill, ao tomar posse como primeiro ministro para enfrentar a violência da ditadura nazista, em 13 de maio de 1940

2 Palestra proferida na comemoração dos 70 anos da SBPSP.

Referências

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Revisão de Marcia Porto e Heloisa Gurgel

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