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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.46 no.77 São Paulo  2024  Epub Sep 20, 2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v46n77.31 

RESENHAS

NO CALOR DAS COISAS CRÔNICAS PSICANALÍTICAS

Vera L. C. Lamanno-Adamo1 

Psicanalista.

1Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP). Campinas

Scoz, Carolina; Antonelli, Claudia. Tao, 2023. p. 216


Essa arte de criar uma fogueira e manter a chama acesa

Quando recebi o livro da Carolina e da Claudia, me chamou a atenção a imagem da capa.

No calor das coisas.

Labaredas ao fundo.

Uma xícara vermelha de café.

Bolachinhas.

Óculos.

Um livro.

Coloquei No calor das coisas ao lado da minha poltrona, no meu consultório. A cada passagem minha por ele, encontrava-o lá, bem ao lado. Entrava e saia, e a bela imagem da capa se insinuava mais e mais. O fogo, a xícara vermelha de café, a chama.

Cada vez que meu olhar se assentava No calor das coisas, as labaredas se destacavam, ficavam cada vez mais em alto-relevo.

Comecei a leitura.

“Testemunha”: este é o título da primeira crônica do livro, escrita pela Carolina. É sobre uma mulher habituada a ler suas crônicas publicadas no Correio Popular de Campinas.

Essa mulher lhe escreveu, entre várias outras coisas, que viveu um amor que ninguém conheceu. Achariam que era louca se falasse dessas coisas! Guardava consigo esse segredo e agora, com 86 anos, precisava falar antes.

Carolina se perguntava: “antes do quê? Antes de se esquecer? Antes de hesitar? Antes de morrer? Antes que todas as lembranças afetivas desapareçam para sempre junto à matéria esvanecida?” (p. 19).

Garantir que alguém testemunhe.

Um ato de fé, diz Carolina: “acreditar que existirá alguém capaz de recolher nossas palavras e aninhá-las no colo manso e salvá-las do fim” (p. 20).

Em seguida, Claudia nos traz “Admirável mundo novo”.

Inicia a escrita com uma referência ao livro de Aldous Huxley e salienta que essa crônica não trata do mundo de Huxley, mas do nosso mesmo, de agora: 2020.

Às vezes, diz Claudia:

gosto de pensar no futuro, mas confesso que me importam menos atualmente as ideias e imagens high-tech - sem desmerecer sua importância - do que saber se haverá espaço para outro ser humano. Ou seja, haverá humanidade num futuro nem tão distante? Haverá natureza, chãos de terra, praias de areia e águas limpas, alimento que erradique a fome, escolas de paredes sólidas e playground para as crianças brincarem e sonharem com os seus futuros? (p. 25)

Nesse momento, sem saber o porquê, imediatamente interrompi a leitura, fechei o livro e voltei a observar a imagem da capa.

O fogo retratado ao fundo tomou toda a cena.

Narrar, buscar testemunhas, testemunhar em chãos de terra, praias de areia e águas limpas.

Não seria isso o que nossos ancestrais faziam ao redor da fogueira, na escuridão das noites quentes e frias?

Há consenso entre os antropólogos em que o domínio do fogo por nossos ancestrais, entre 400 mil e 1 milhão de anos atrás, não teria apenas acelerado nossa evolução, porque afugentava predadores e permitia preparar os alimentos, aumentando sua digestão e proporcionando maior consumo de calorias, entre outros benefícios.

Com as fogueiras acesas, nossos antepassados iluminaram a escuridão noturna e criaram um novo tempo e espaço de convivência, um novo tempo de partilha.

Carolina e Claudia conversam com o leitor ao redor da fogueira. No calor das labaredas trêmulas, nos contam acontecimentos deste nosso Novo/ Velho Mundo, deste Admirável/Abominável Mundo em que vivemos.

Elas nos fazem lembrar, para não esquecermos jamais, o Admirável e o Abominável em nós.

Precisamos de antídotos para nossas descrenças, precisamos, salienta Carolina, ter conosco algo que nos faça acreditar num ímpeto generoso, pronto a ressurgir de sob a crosta de gelo que recobre parte de nossa mente.

Se faz necessária uma “Canção do amor imprevisto” (título de uma das crônicas de Carolina): “esse abrupto e invisível milagre que já salvou tantos” (p. 30).

É preciso diplomacia: essa arte do impossível, diz Claudia:

Uma arte feita de afetos e pensamentos organizados, desejos e interesses próprios, muitas vezes sublimados em direção a uma construção com o outro. Mas, tão somente e antes, a partir da própria conciliação consigo mesmo e com o vislumbre da frustração e da aceitação das necessidades desse outro. A negociação, afinal, abarca sempre esse espectro - um quantum de perda, em prol de um ganho maior, compartilhado. (p. 33)

Negociações ao redor da fogueira, quem sabe.

Nos contam também, do abominável em nós, essa perigosíssima espécie que somos, diz Carolina.

Em “Trompas de Falópio”, Carolina descreve a hedionda Auschwitz.

Já nuas para a inspeção, o médico Joseph Mengele perguntava às mulheres: Está grávida, bonitona?

duas filas dividiam as mulheres. Poucas entendiam se era vantagem ir para a direita ou para a esquerda. Na dúvida, algumas confessavam - talvez supondo ingenuamente que seriam protegidas. Essas morreram na câmara de gás, consideradas inúteis para o trabalho forçado. (p. 44)

No entanto, em meio ao abominável há esperança: “O (sempre) acidental nascimento do amor”.

A aeronave, dessa vez, demorou a subir aos céus, o que o fez notar que a passageira ao lado rabiscava anotações a lápis na autobiografia de Elie Wiesel, um dos raros garotos sobreviventes de campos de extermínio nazista. (p. 45)

Ele pediu para a moça ler para ele em voz alta.

E tudo o que aconteceu depois: a infinita ciranda de enlevo e temor, a liberdade poética com que inventaram palavras, o acúmulo de pequenas desilusões cotidianas, as juras de finais sem volta, os recomeços sedentos de felicidade… (p. 45)

Por sua vez, Claudia nos relembra Muath, o jovem piloto jordaniano de 26 anos que combatia o Estado Islâmico, teve o azar de ver seu avião cair em território inimigo, a Síria. Foi capturado e em seguida enjaulado, em pleno deserto. Diante dos olhos e das câmeras do mundo, Muath foi morto, queimado vivo.

Passados muitos meses, Claudia pode acolher novamente esses fatos em sua mente, para a escrita da crônica: “de cunho limiar entre o particular e o partilhado” (p. 60).

Menos obnubilada, Claudia então considera que ele, o piloto voluntário ao combate contra o radicalismo islâmico, foi quem se viu enjaulado. Como se ele fosse o representante do mal, aprisionado, feito um animal selvagem. Enquanto a selvageria, na realidade, vinha de fora. Parecia haver ali, diz Claudia, uma fronteira, um limite - a jaula -, em que as coisas se inverteram impiedosamente: o horror vinha de fora da jaula.

Ao longo de No calor das coisas o coração espreme, arde, o fogo esquenta, às vezes, quase à beira do insuportável.

No entanto, Claudia e Carolina não são jornalistas dedicadas ao sensacionalismo. Não são jornalistas dedicadas a proclamar notícias altamente impactantes, que cutucam nossas feridas por pertencermos a uma humanidade que é também genocida, filicida, fanática. Noticiários sensacionalistas nos comovem, nos desestabilizam, e então deixamos tudo de lado para nunca mais pensar nisso, pois são cozidos em calor violento que queima, em vez de cozer.

Psicanalistas e escritoras talentosas que são, Carolina e Claudia nos trazem crônicas cozidas em fogo brando e balsâmico. Crônicas escritas com a arte de criar uma fogueira e manter a chama acesa. Essa arte de manter o calor ao pé de uma fogueira, para a conversa continuar mais uma vez e mais uma.

Claudia e Carolina, cada uma ao seu estilo, dão notícias do Admirável e do Abominável, em nós, abrindo espaço para emoções partilhadas, conceitos psicanalíticos, reflexões bem construídas.

Garantem, assim, ao longo de todo o livro, uma fogueira que não se apaga. Uma fogueira que não se consome rapidamente.

Trabalham as palavras com bom manejo de lenhas.

É sabido que o que faz o fogo continuar queimando é o espaço entre as lenhas. Um espaço de respiro.

Muitas lenhas muito próximas apagam as chamas em vez de reavivá-las.

É o espaço, a abertura entre as lenhas, que promove a manutenção das chamas. É a presença e ausência do combustível, a um só tempo, que torna o fogo possível.

Entre tantas e muitas associações e reflexões que as crônicas No calor das coisas me inspiraram, me vi também querendo reler Psicanálise do fogo, de Bachelard (1949/1994). Nesse livro encontro vários sentidos simbólicos ao fogo.

O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece com um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Ele brilha no Paraíso. Abrasa no inferno. É doçura e tortura. Cozinha e apocalipse. É um deus tutelar e terrível. O ser fascinado ouve o apelo da fogueira e é arrebatado. (pp. 11, 12)

O calor, diz Bachelard, é um bem, uma posse, a luz brinca e ri na superfície das coisas, mas só o calor penetra: “… essa necessidade de penetrar, de ir ao interior das coisas, ao interior dos seres, é uma sedução da intuição do calor íntimo. Lá aonde o olhar não chega, aonde a mão não chega, o calor se insinua” (Bachelard, 1949/1994, p. 61).

No calor das coisas não é uma escrita de superfícies, dessas que iluminam e desaparecem. Trata-se de uma escrita que se insinua, que acende o íntimo e o universal. E permanece.

Referência

Bachelard, G. (1994). A psicanálise do fogo. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1949) [ Links ]

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