Eu, que não imaginava voltar, me vejo caminhando novamente em Jacarandá. Desta vez não me ocorre subir a ladeira, fico na rua comercial, na margem do rio. Vejo meu irmão Antonio e com ele vou à procura de um lugar que venda fondue. Penso vagamente que fondue é uma comida sofisticada demais para ser vendida por aqui. De fato, não encontro. Em uma casa que me parece familiar minha querida Raquel cozinha para mim, como de costume; ela não faz o fondue que eu desejo, em seu lugar me oferece um prato nada convidativo - filetes escuros ressecados e retorcidos, parecidos com as formigas fritas que vi em um prato servido pelo chef do restaurante tailandês do filme de ontem à noite. Antonio parece gostar, eu não aceito. Não sinto fome.
Soube da existência de Antonio, já adulta, quando voltei a meu lugar de origem, procurando traços que talvez existissem das pessoas que me deram a vida. Consegui encontrá-lo e nunca mais ficamos muito tempo longe um do outro.
Foi nessa ocasião que eu quis descer o rio para voltar a Jacarandá e finalmente subir a rua vista do porto. Me contaram que a pequena vila era agora um lugar fantasma. Os habitantes a abandonaram quando o rio secou e uma nova rodovia deixou o lugar fora da rota de comércio. Eu poderia ir até lá de bicicleta pela coroa de areia, me disseram. Resolvi que iria. A casa verde, visível no topo da ladeira, deveria ainda estar lá. Do areal que ocupava o antigo leito do rio, olhei em busca do lugar percorrido tantas noites. De Jacarandá apenas a ponta da torre da igreja sobressaía do matagal que escondeu a cidade.
Eu nunca conheci Jacarandá. Eu já estive mil vezes em Jacarandá.
Na primeira vez que, descendo o rio de barco parei no seu porto, vi no alto da ladeira até onde minha vista alcançava, uma casa verde com um caramanchão ao lado, coberto de buganvília vermelha. Foi essa casa e seu caramanchão a origem de todas as promessas de belezas e maravilhas que eu - a menina que só conhecia casas de paredes feitas de barro mole, preenchendo os quadrados das frágeis ripas de madeira, cobertas com palmas de buriti e chão de terra batida- esperava encontrar em Jacarandá toda vez que a visitava.
A partir daí caminhei por muitas noites em suas ruas, sempre excitada pela expectativa de conhecer a cidade que se espalhava para além do alto da ladeira e a cada vez encontrava uma cidade a ser descoberta.
Eu sabia de onde me vinha a fome de comida, mas nunca soube de onde me veio a fome de beleza. Só sei que, desde que me entendo por gente, a maior parte do meu tempo era consumido em satisfazê-la. Acordava e a busca começava olhando na parede do quarto o jogo de sombras e luzes formando desenhos de linhas que se encontravam ou se afastavam quando as folhas da palmeira, sopradas pela brisa no quintal, se inclinavam para a direita ou para a esquerda. Por vezes tirava a sorte grande de acompanhar a sombra da queda lenta de uma folha do abacateiro ou o voo incerto de uma borboleta. Me vestia apressada para ver as pequenas teias de aranha entre as folhas da grama, brilhando antes que o sol as desfizesse; mas o que de verdade deixava cheia a barriga dos meus olhos era ver os raios do sol, atravessando as gotas d’água capturadas nos fios das grandes teias, brilhando como diamantes; e eu, que nunca pendurei no meu pescoço nenhum fio com medalhinha prateada de Nossa Senhora das Graças, fazia de conta que colhia a teia e a transformava em colar que brilhava sobre o azul do meu vestido de brim ordinário. E assim caçando beleza aqui e ali eu passava o dia. Nos intervalos desaprendia coisas que os adultos ensinavam. Não sei quanto tempo fui caçadora nesse lugar. Sei dos dias de sol e chuva, noites de céu escuro coalhado de estrelas e de procissão de sapos mesmerizados pelo brilho da lua cheia. O tempo em nada se fazia presente nessa sequência de dias e noites de encantamento. Depois de ver a casa verde e seu caramanchão de buganvílias, uma fome nova passou a me inquietar: sentia fome de lugares com casas bonitas em suas ruas.
Um dia alguém me disse que uma casa iria ser construída não muito distante de onde eu vivia. Fiquei em alvoroço. Com certeza seria a primeira das casas que transformariam aquele lugar sem graça em uma cidade tão linda quanto Jacarandá. Fui procurar e encontrei um homem cavando um buraco pequeno.
-É assim que uma casa começa a ser feita, ele me explicou.
Olhando em volta pensei que uma casa bonita não ia combinar com aquele lugar. Na certa a casa seria feita dentro do buraco, e assim seriam as outras. Uma nova cidade com suas casas floridas estava começando naquele buraco. Sentada em um tronco de árvore derrubada comecei a sonhar com minha futura casa - seria amarela com janelas marrons e lindo jardim na frente. As ruas não seriam de barro, e sim cobertas com as pedrinhas redondas e branquinhas, quase translúcidas, iguais às que eu encontrava no leito do riacho e guardava comigo. Eu iria a cada semana vigiar a construção. Voltei na semana seguinte e vi a casa já construída. O barro das paredes ainda estava vermelho e amolecido. As ripas exibiam os veios, parecendo feitas de troncos vivos.
Naquela noite visitei Jacarandá pela primeira vez. Para além da ladeira a rua descia coberta de pedrinhas brancas brilhando com os raios de luz. As casas eram amarelas; todas elas tinham roseiras de cores variadas pendendo dos caramanchões. Caminhei pelas ruas desertas. O silêncio profundo me fez ver que ali ninguém morava. Procurei a saída para voltar ao porto, mas não consegui encontrar.
O tempo começou a existir para mim quando fui dada a uma velha senhora que morava em outra cidade, para ajudá-la em pequenos serviços da casa. Foi então que desci o rio pela segunda vez, passando pelo porto de Jacarandá. Percebi que a beleza do lugar ia além da casa verde com flores vermelhas - no cume de um morro, vi uma igreja branca com o portal azul, ladeada de palmeiras. Tive a impressão que o santuário se espichava para cima, e sua torre magra parecia tocar o céu.
Na nova casa o tempo era marcado pelos domingos - dia de ir à missa com o único vestido bonito que eu ganhei; ele ficava guardado em um armário e só saía para ir à missa de gala. Era feito de tecido transparente estampado com flores miúdas, tinha mangas bufantes e duas fileiras de babados na barra da saia que borboleteavam quando eu caminhava. A velha senhora era severa, não me deixava “vadiar” - como ela dizia - em seu quintal, que tinha muitas árvores e flores.
-Na minha terra aprendi que crianças devem estar sempre ocupadas, pra não pensar bobagens, dizia.
Eu amava o domingo, dia de encontrar a beleza: o vestido, o teto da igreja pintado com cenas coloridas, os altares com enfeites dourados, as cores fortes das vestes dos santos, os castiçais de prata, o turíbulo exalando perfume do incenso ao ser balançado sobre nossas cabeças, a igrejinha dourada, que parecia de brinquedo sobre o altar principal, de onde o padre, com batina de brocado e ouro, retirava um sol resplandecente e por um tempo curto o exibia erguendo as mãos ao trinado de uma campainha, e todos se curvavam olhando para baixo, como se o sol queimasse os olhos que se demorassem naquela visão, o som do órgão, o coro de vozes que me fazia sentir o corpo leve suspenso do chão, arrebatado para o interior de uma beleza absoluta e infinita. Dentro dela eu sumia engolfada por sua grandeza. O êxtase se mesclava à nostalgia e ao anseio de alcançar esse lugar. A felicidade dentro de mim era quase uma dor.
Entre os domingos meus dias eram vividos no automatismo das pequenas tarefas. O alheamento, companheiro antigo, lentamente ganhou espaço ao ponto de não mais escutar quando me chamavam, nem mesmo lembrar o meu nome; não sentindo o gosto da comida, fui perdendo a vontade de comer. Definhava. O cabelo caiu, deixando em seu lugar uma penugem rala. Não podia mais ir à igreja - minha figura esquálida e sem cabelo “assustaria as pessoas”, disse a velha senhora. Nessa época visitei Jacarandá todas as noites. Entrava em igrejas cada vez mais belas, nunca cansava de percorrer as ruas, subir e descer ladeiras. Cortinas transparentes deixavam ver móveis de vidro colorido iluminados no interior das casas. Uma noite vi a igreja que se espichava para cima e resolvi subir na torre que prometia chegar ao céu. Do alto, veria toda a cidade com as casas douradas brilhando, o rio e a mata em torno; me despediria de Jacarandá entrando pelas nuvens até o céu. Quanto mais eu subia, mais o topo da torre se distanciava; quando finalmente a escadaria parecia próxima do fim, os sinos começaram a badalar por eles mesmos e soaram tão fortes, que eu tampei os ouvidos e desci a escada correndo até alcançar o interior da igreja. Nos altares as imagens estavam cobertas com panos pretos, no púlpito um padre caolho me olhava de forma severa pedindo silêncio com o dedo nos lábios. Fugi apavorada. Depois daquele dia não quis mais visitar Jacarandá.
A velha senhora ficou assustada com meu estado, chamou sua filha, uma mulher bem vestida, que me levou de automóvel para outra cidade.
Sou instalada em uma cama em um quarto pequeno e aconchegante; meu corpo sente uma alegria nova quando mãos delicadas o banham em água quente e perfumada e o envolvem em uma toalha macia. Meu nariz é cutucado por um cheiro bom, a língua e a garganta gostam da comida que está sendo posta na boca. O corpo relaxa em um sono tranquilo e duradouro. Abro olhos e vejo duas pessoas - uma pequena e outra de tamanho maior - que me olham com assombro, saem correndo do quarto parecem assustadas. Fecho os olhos sem querer mais abri-los. Depois de algum tempo ouço passos e sinto que alguém segura minha mão e parece falar pra mim. A mão é quente e a voz, doce. Os olhos desobedecem a minha vontade e se abrem; bem de perto, dois olhos estão me vendo - são verdes com rajadinhas amarelas; dá pra ver que tem água brilhando debaixo daquela película transparente. Me vejo dentro dele. O coração bate forte. Descubro que gente também pode ser bonita. A barriga do olho vai ficando cada vez mais cheia da beleza daqueles olhos, da voz suave e da maciez daquela mão. Me entrego.
Glorinha foi meu primeiro amor. Era a filha mais velha do casal que me acolheu. Saía para o colégio de manhã cedo e voltava no meio da tarde quando as outras crianças estavam na escola. Eu ficava feliz porque então ela era só minha. Glorinha estudava para ser professora de crianças. Quando ela estava estudando em casa, eu ficava junto caladinha, mesmo porque não sabia o que falar com ninguém. Depois de um tempo, quando já comia na mesa e meu cabelo começou a crescer, ela resolveu me ensinar a ler e escrever. Ouvi quando ela disse aos pais que eu aprendia fácil e “tinha uma memória fora de série”. Achei que devia ser uma coisa boa, mas não me importava com isso, bom mesmo era ter atenção de Glorinha.
Ganhei vestidos novos, que não vestia só para ir à missa. Glorinha me levava junto com seus irmãos para ver filmes de caubói e de princesas na matinê e até em baile infantil no clube. Sua mãe tinha muitos compromissos, não tinha tempo de me dar atenção, mas mandava as pessoas da casa cuidarem de mim, “porque ela já sofreu muito, e criança nenhuma merece sofrer”. Seus filhos me chamavam baixinho de “cachorrinho da Glorinha”, e eu bem que queria mesmo ser seu cachorrinho só pra ficar sentada no colo dela. Acho que eles tinham ciúmes da atenção que ela me dava e também ficavam com raiva porque eu não queria brincar com eles, preferindo ficar com os livros logo que aprendi a ler. Os livros eram minha tela de cinema: eu enchia de imagens as histórias que lia; não sentia o tempo passar, não sentia fome de beleza, não visitava Jacarandá à noite e nem queria mais ir pro céu quando ouvia o coro da igreja.
Nem sei como aconteceu de um dia sentir um tipo de agonia dentro do peito, que eu não sabia de onde vinha nem o que fazer pra tirar de lá. Só passava quando Glorinha estava junto. Se ela se afastava, ficava ruim de verdade. Eu imaginava que ela podia morrer de doença, de desastre, atropelada ou que alguma coisa poderia impedir que ela voltasse do colégio. Perto da hora que ela ia chegar, eu já estava no portão do jardim esperando, com o coração batendo forte; acordava de noite e abria a porta do seu quarto para ficar segura de que ela estava lá. Ela ouvia a porta ranger e acordava me pedindo com doçura que voltasse pro meu quarto, mas na noite seguinte eu acordava e ia lá de novo. Glorinha, antes pontual, passou a acordar atrasada, sem tempo pra o café da manhã. Mãe e filha chegaram a um acordo: um colchão seria posto no quarto de Glorinha “enquanto durasse aquela fase”. Daí em diante dormi tranquila. Acordava bem cedo, quando Glorinha saía, ia pra meu quarto ler livros. Voltei a dormir na minha cama quando fiquei segura de que Glorinha não iria sumir.
No ano seguinte fui matriculada na escola pública do bairro, no período da tarde. Glorinha agora frequentava muitos cursos depois das aulas do colégio, no começo fiquei triste com essa distância. Sofri mais quando ela começou a passar horas intermináveis ao telefone conversando com as amigas sobre os rapazes e as pequenas intrigas entre elas, mas aos poucos fui me conformando; estudava bastante e fui me sentindo cada vez mais contente de aprender coisas novas na escola e nos livros.
Depois dos muitos dias de frio do inverno, o brilho de um sol forte anunciava o início da primavera. Saí para caminhar no jardim em vez de voltar para ler no quarto, como de costume; queria ver as gotas de orvalho brilhando nas folhas e flores do jardim. A beleza me convidava para uma celebração. Desfrutando da manhã cheguei ao extremo oposto da casa, onde ficava a garagem do carro da fazenda e o ateliê de pintura da mãe de Glorinha. Esse era o único lugar da casa que as crianças não tinham permissão para entrar. Ouvi vozes que pareciam vir de dentro da garagem, que eu sabia estar vazia. Chegando mais perto, percebi que não eram vozes, e sim gemidos e ruídos de respiração arfante. Entre assustada e curiosa achei melhor pisar devagar e olhar o que estaria acontecendo lá dentro antes de correr para avisar as pessoas da casa. A garagem estava escura, e meus olhos vindos da luz do sol mal perceberam no fundo a silhueta de uma mulher que me pareceu ser a mãe de Glorinha, abraçada a um homem parecido com o vizinho italiano que frequentava a casa. Corri assustada sem olhar para trás com a ideia apavorante de ter sido vista. No meu quarto, me joguei na cama cobrindo a cabeça com a colcha. Sabia que nunca deveria ter visto o que vi e que algum castigo terrível cairia sobre mim. Nesse dia não quis almoçar - tinha que selar minha boca, tinha medo de o segredo escapar à minha vigilância.
Depois de tanto tempo, naquela noite visitei Jacarandá. A cidade nunca esteve tão bonita em seu esplendor de brilhos das luzes nas ruas e das fontes luminosas de suas praças, jorrando sem cessar, águas que mudavam de cor a cada momento ao som de uma linda música.
Nos meses que se sucederam à visão da cena proibida, vivi ensimesmada a maior parte do tempo, apenas respondendo ao que me era perguntado. Com a certeza do castigo que estava por vir, esperava angustiada a expulsão do meu paraíso. Glorinha estranhou meu retraimento explicado pela mãe como “questões da pré-adolescência”, mas logo se acostumou com minha nova maneira de estar na família. Essa distância era para mim um alívio - tinha medo de ter vontade de lhe contar meu segredo.
As visitas noturnas em Jacarandá e suas belezas deixaram de existir muito tempo depois, quando me convenci que o esperado castigo não viria.
Penso agora que a estranheza de ter voltado a Jacarandá esta noite, tantos anos depois, me levou à narrativa dessa longa viagem de volta no tempo. As palavras foram se compondo em texto que no final - como se a montagem de peças aleatórias tivesse composto uma cena dotada de sentido - desvelou uma configuração surpreendente que me iluminou com o brilho fulgurante da verdade. Sonhar com Jacarandá, longe de ter sido - como eu pensava - uma fuga dos momentos de sofrimento e frustração, foi, na verdade, a permanência na minha mente da figuração da beleza preconcebida, encontrada e perdida alhures, em um tempo mítico ou real quando ainda não havia imagem ou palavra que a nomeasse. Essa quase memória criou em mim a condição de reconhecer a beleza e impulsionar o tropismo em sua direção, quando a pressentia.
Re-conhecer é já ter conhecido. O encontro é um re-encontro.
Jacarandá na minha vida foi o outro nome do amor e do desfrute pleno da alegria de viver, realizado na fruição estética, na sexualidade, na paixão pela descoberta e pelo conhecimento. No sonho desta noite não precisei subir a ladeira para buscar a beleza - ela está dentro de mim, parte de minha carne e de meu sangue.
Depois de ter vivido na nossa casa a maior parte da sua vida e da minha, Raquel esperou minhas filhas se casarem e voltou há seis meses à sua cidade natal para realizar o sonho de plantar flores em um jardim todo seu. Na mesma época morreu Antonio, o irmão querido.
No sonho de hoje a real Jacarandá me convida a provar da comida amarga da dor da perda sem retorno de pessoas amadas.