Caetano o descreve como um senhor tão bonito, o tambor de todos os ritmos. Já para Gilberto Gil, ele é rei. David Bowie acha que é aquilo que nos muda, mas que não conseguimos enganar. Para Proust, ele é perdido e, para Lacan, lógico. Winnicott considera que dele dependemos para dar continuidade aos processos de maturação. E Cazuza canta que ele não para. Para Aline Bei: “O tempo leva as nossas coisas preferidas no mundo e nos esquece aqui, olhando para a vida sem elas”. Einstein o descreve como relativo, não podendo ser medido exatamente do mesmo modo e por toda parte.
Procuro uma frase para este ensaio. Não há. É possível uma única que descreva sua força imperativa? Ainda que a procuremos, não encontramos nenhuma que seja suficiente - então surge algo que apazigua minha fome de escrita. Talvez o caráter maior do tempo seja este: a insuficiência. Ensaiamos para agarrá-lo, dominá-lo, para compreendê-lo, mas ele vence sempre; a soberania de Cronos é inquestionável.
Tempos doloridos são longos, tempos felizes parecem passar num piscar de olhos, não são contados na dureza dos ponteiros, e sim na fluidez das asas. Voam. No texto “Mal-estar na civilização”, Freud diz que a felicidade é um estado do qual nos damos conta uma vez que esteja no passado.
O tempo do futuro parece distante na juventude. “Temos todo o tempo do mundo, enquanto somos tão jovens”, dizia Renato Russo - mera ilusão. Tal fantasia é necessária para que possamos encontrar alguma urgência de construção. Nossa onipotência da mocidade é essencial (e ao mesmo tempo perigosa), pois nos lança na aventura do viver. Abraçamos as causas com mais intensidade, paixão e ousadia exatamente porque não contamos com os riscos. Ainda somos um pouco ingênuos, e as vivências têm o tempero perigoso (e saboroso) da paixão e da intensidade.
Na música, assim como na vida, o tempo é aquilo que marca a pulsação e o movimento da melodia de uma canção. A dança da existência do homem se desenrola num palco de um espetáculo de duração limitada.
Sem a temporalidade que circunda e limita nossa vida tudo estaria à deriva. Convoco outra vez a Legião Urbana: “O para sempre sempre acaba”.
Nossa permanência se dá no “por enquanto”, e nosso pulsar do coração encerra-se um dia levando consigo nossa história. Simples assim.
Karl Ove Knausgard começa seu livro com um parágrafo inesquecível:
Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida, numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância, que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de acordo de cavalheiros que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável.
Esse movimento vem antes de nosso desejo e racionalidade, é decidido pela natureza. O acontecer humano se dá no tempo e com o tempo. Winnicott diz que o ser humano é uma amostra da natureza humana. Logo, somos comandados pela ação cíclica da natureza e suas estações. A morte seria então parte da saúde, do processo maturacional: só morre quem existiu. Essa existência, portanto, seria nosso acontecer no tempo: a realização final.
Recentemente, ouvindo um podcast, a convidada entrevistada dizia que em vez de perguntarmos a alguém sobre sua idade, o correto seria indagar: quantos tempo você já viveu? Talvez eu dissesse: há quanto tempo a vida anda dentro de você?
Nos partos e nas partidas a janela da temporalidade se abre, conforme escreveu Rosa Monteiro:
Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação, e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade - monumental, ardente e impassível.
Nascimento e morte são movimentos antagônicos, porém, com a mesma trilha sonora tocando de fundo: o ventar do tempo. Só é possível sair do tempo duas vezes: na porta de entrada, e na de saída. Ponto. Não há como negociar nossa submissão à impermanência do existir.
Os minutos perdidos deixam vestígios tanto em nosso interior, quanto corporais. E, embora invisível, o pulsar do tempo se revela dentro e fora de nós, nosso corpo é a tela da passagem do tempo. E há uma beleza na transitoriedade. A vida acontece dentro de nós, mas um dia nossa existência “desacontece”, e a partir daí acontecemos em forma de saudade.
Sigmund Freud, em 1926, aos 70 anos, em sua célebre entrevista “O valor da vida”, parece resignado diante das perdas derivadas do processo de envelhecimento: “Por que, eu devia esperar por algum tipo de privilégio? A idade, com seus visíveis desconfortos, chega para todos. Ela atinge um homem aqui, outro lá. O seu golpe sempre atinge uma parte vital”.
Como psicanalista, tendo a observar a repetição. E em todas as citações da introdução encontro algo em comum: o homem como refém do tempo. Não há como permanecer vivo e não se curvar a sua passagem, a sua velocidade e às transformações decorrentes da sua continuidade. O ritmo do tambor da temporalidade é furioso, e sua passagem veloz anda de mãos dadas com as perdas.
Não há escapatória, quem teima em segurar o tempo inevitavelmente fracassa e vai se desumanizando. Aqui me recordo do personagem Dorian Gray de Oscar Wilde, que faz um trato com o demônio de não envelhecer e passa de belo e poderoso para uma figura monstruosa, eternamente jovial e, por isso, assustadora e repulsiva. (Qualquer semelhança com a realidade das vítimas de harmonização facial não é mera coincidência.) Há algo de demoníaco naqueles que tentam perpetuar a juventude, a qualquer custo, em corpos que naturalmente já são antigos.
Aceitar aquilo que o ponteiro do relógio nos leva, sem nos desinteressarmos pelo presente, talvez seja a única forma de nos mantermos vivos, sem cair nas garras sombrias da melancolia. Aceitar a escassez do tempo e suas dores é talvez a maneira de tentar dominar presente. Embora haja um aspecto do tempo do qual somos cativos, ele também nos liberta, uma vez que nos ajuda a cicatrizar, cria distâncias de vivências dolorosas, nos auxilia a ressignificar, elaborar, sublimar dores. Tempo e transformação são inseparáveis.
Como disse Freud, nosso ego é um precipitado de catexias abandonadas, a identidade é, portanto, marcada pelos objetos que já amamos e que nos amaram. Dentro de nós estão sempre preservados e imunes ao tempo, lá são imortais. Essa seria a revanche possível: A única casa que consegue capturar verdadeiramente o tempo é a memória.
Pensar e escrever sobre o tempo inclui a ausência, a falta e a saudade. E o coro de autores e poetas escolhidos para acompanhar essas linhas nos mostra que a experiência de tentar compreender e capturar esse senhor tão bonito é inesgotável, enquanto estivermos vivos, e nunca é solitária.
E nessa busca e captura, nesse fort-da dos dias que escorregam e desaparecem em direção à noite, seguimos dançando enquanto ainda dá tempo e enquanto nossa existência ainda não anoiteceu.