Breves apontamentos para uma psicanálise plural
Meu objetivo aqui é refletir sobre uma psicanálise plural na companhia de Amnéris Maroni e, de modo mais específico, de seu livro Vestígios, em que a autora articula a antropologia, a filosofia de Gilbert Simondon, a psicologia analítica de Jung e a psicanálise de Christopher Bollas, instituindo um campo aberto, polifônico e dialógico que acolhe as diferenças. Como ela, funciono em conexões. Por isso, creio, seu livro foi para mim a experiência de um objeto cuidador, transformacional, que me testemunhou. E, como tal, me acolheu, conferindo legitimidade e reconhecimento ao meu processo de individuação, conceito central para Jung, com o qual essa autora trabalha em suas conexões e em sua capacidade receptiva, noção do psicanalista Christopher Bollas.
Reciprocamente, esse livro foi recebido e transformado por mim, em mim, desde as referências que me originam e constituem: os estudos da memória, a história, a psicanálise e a teoria literária, nessa mesma condição de receptividade pela qual o indivíduo não se apropria do outro de forma a subsumi-lo ao mesmo. Ao contrário, trata-se de uma recriação constante e processual pela qual os conceitos se transformam e transmodam, na acepção do filósofo Étienne Souriau; encarnados. Esse processo remete sempre e necessariamente ao que antecede o sujeito e o constitui desde a ontogênese do encontro, segundo Bollas. Numa aproximação com Gilbert Simondon, tratar-se-ia do pré-individual, lugar de onde emergem os indivíduos, incluindo-se, aí também, o campo da physis, na denominação dos filósofos pré-socráticos. É importante sublinhar que nem eu, nem Amnéris Maroni propomos a identificação e a consequente eliminação das noções e conceitos, mas seu alinhamento numa relação dialógica, polifônica e horizontal.
A testemunha é ao mesmo tempo um par que institui um terceiro numa condição de escuta e compartilhamento horizontal. Isso é muito diferente da posição psicanalítica transferencial e contratransferencial clássica, que o trabalho de Amnéris Maroni questiona e, em grande medida, subverte. Num diálogo com ela, proponho uma reflexão que se ancora numa rede horizontal de conexões, descritas aqui. Não é demais lembrar que a clínica é o ponto de partida dessa discussão sobre uma psicanálise que também se pretende mais conectada com a dinâmica histórica e social de nosso tempo, que nos determina e nos antecede. Pré-individual, inconsciente coletivo, responsabilidade pelo outro que antecede a ética, desde o filósofo E. Lévinas; as conexões são muitas, quase infinitas.
Nessa medida, importa sublinhar os limites e fricções vividas no Antropoceno, desde as discussões realizadas por pensadores ameríndios como Davi Kopenawa e Ailton Krenak. Para Marcio Seligmann-Silva, “O que marca a história da dupla alienação suicida entre a ‘razão’ e o nosso corpo, entre os humanos e Gaia, é a paulatina transformação e redução … da ‘natureza’ à categoria de uma commodity” (Seligmann-Silva, 2023, p. 2).
A discussão parte da psicanálise, mas amplia-se para muito além dela. Busca integrar referências e conexões variadas no trabalho de desconstrução da violência epistemológica, vigente e operante também no campo psicanalítico, de uma epistemologia europeia-branca-masculina hegemônica e heteronormativa, que impede e reage às transformações. Nessa medida, e de forma proporcional, suas instituições e grupos reagem com violência à abertura, ampliação e questionamento de uma ontologia, relegando a psicanálise a um lugar residual destituído de qualquer capacidade receptiva.
Por essa razão, e na companhia de Amnéris Maroni, alinho autores estrangeiros à psicanálise para sustentar uma proposta de desconstrução de uma psicanálise impermeável e pouco porosa às transformações e ao diálogo; muitas vezes persecutória, defensiva e excludente.
Como não poderia deixar de ser, trata-se de um texto em andamento.
Para uma psicanálise plural e feminina, porque híbrida, busca possibilidades de vida e porque não recorre às teorias universalizantes, nem busca criá-las. Seu modo de ser e operar é o da atenção às singularidades por meio das narrativas e descrições que circunscrevem um lugar, uma cartografia instituída numa relação de testemunho, em vez de uma suposta evolução teleológica que implica a eliminação de algo: o sintoma, em última instância. Essa cartografia é marcada por instantes de ruptura, epifanias, traumáticas ou não; fricções entre o tempo e o espaço, dobras do tempo, flexões que buscam reintegrá-lo por meio da revelação, da desocultação e, não raro, da revolução desdobrada de processos dessa dimensão.
Por isso, a expressão escrita de uma psicanálise que se pretende plural é também híbrida e prescinde de uma forma única; transita entre o relato testemunhal, as memórias, as escritas de si, a autoficção e o ensaio. Espaços e lugares que acolhem as fricções e o diálogo e, reciprocamente, instituem novos lugares; da clínica, teoria, metapsicologia.
Penser autrement, com base em Foucault: o outro como lugar que se pode habitar numa relação de horizontalidade e compartilhamento e, nesse aspecto, pensar “o outro”; lugar da diferença, ou melhor, das fricções possíveis entre as diferenças a partir das quais se dá o processo de deslocamento e/ ou individuação. Quando algo sai da bruma, propõe D. Lapoujade (2017), e o mundo se ilumina, por um instante, por “um lindésimo de segundo”, segundo Leminski. “Alguma coisa persiste inexoravelmente, que podemos chamar de vitalidade…” (Lapoujade, 2017, p. 109). Isso implica o testemunho e sua convocação. Porque criar é testemunhar, fazer ver, legitimar e reconhecer por meio do que antecede e ultrapassa o indivíduo. Não apenas se cria a obra, mas, reciprocamente, ela dá a ver o criador, atribuindo-lhe o direito de existir, legitimidade, “existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua. Só existimos fazendo existir” (Lapoujade, 2017, p. 99).
Segundo Amnéris Maroni, que compreende a individuação com base em Jung e o filósofo G. Simondon, penso ser possível conceber o processo de individuação - ou deslocamento - numa análise como criação testemunhada por alguém que não institui, isolada e de modo unívoco, mas que, na condição de testemunha, é reciprocamente visto, legitimado. É isso, também, penser autrement? Ser convocado pelo outro, transformado por esse encontro, sem que isso implique ou exima o psicanalista de sua responsabilidade quanto à administração da transferência, da contratransferência e da resistência? Cada encontro circunscreveria um lugar singular, único, uma cartografia contornada por categorias variadas, mas não limitada por elas. Aliás, elas também estariam - estão, a despeito do medo - abertas, sujeitas às transformações promovidas pela singularidade do encontro, das epifanias e narrativas. “Teorias literárias muitas vezes são defesas contra a literatura, assim como teorias psicológicas são pequenas fobias diante do terremoto humano” (Pessanha, 2018, pp. 156-157). No lugar da teoria, Pessanha propõe a “palavra despencada”, a nuance, o detalhe, que se destaca do todo e o ilumina, transformado. Palavra heterodoxa, cacos, restos a contrapelo e na contramão das referências, que ou se transformam, ou transmodam, ou se diluem. O que fica de pé, dizia Leminski, são as dúvidas. O testemunho não é um construto, mas “descida … para dentro do elemento da alteridade que nos fundou” (Pessanha, 2018, p. 153), rompendo-se a “tautologia do espelhismo blindado” (2018, p. 152), do homem blindado, o herói.
A individuação, devir constante e permanente do indivíduo, sucedâneo de si mesmo, marcado por relações que o antecedem, articula-se à testemunha na singularidade da experiência epifânica que só pode ser contornada pela descrição e pela narrativa. No limite entre a ficção, a memória, as escritas de si, a história e muitas outras coisas que, como na literatura da bolsa, segundo Ursula K. Le Guin (2021), se podem pôr para dentro de algo que contém e não põe em disputa ou hierarquia.
As fricções circunscrevem as bordas, os limites e nessa medida os definem como lugar de possibilidade, individuação, em que a potência acontece, se revela. O self, ele mesmo, potente. No instante agora, como bruma, nuance, detalhe destacado do todo que o ilumina e transforma, transformando assim o intérprete. No átimo - ou istmo - do encontro, do acontecimento; cruzamento entre tempo e espaço em que a palavra despenca e institui sentido.
Tratar-se-ia da experiência que abarca a intuição, da relação com o que antecede e funda o sujeito num plano maior, o da cultura e da natureza, além do entendimento e da razão. Nesse aspecto, propomos também um diálogo com a antropologia de P. Descola, Viveiros de Castro, Nastajssa Martin, Davi Kopenawa, Krenak, entre outros. A dimensão do indivíduo é transformada e subvertida, subvertendo-se, dessa forma, a epistemologia europeia, branca, ocidental e masculina vigente. Corpos, afetos, astros, pensamentos palavras e silêncios, tudo aquilo que pode ser combinado, transmodado, que pode transitar de forma e não necessariamente ser eliminado, extinto, extirpado, como no paradigma do herói. No lugar dela, Ursula K. Le Guin propõe as estórias dos espaços que contêm, criam possibilidades de vida. Estórias que não querem ser Histórias, encerradas, por sua vez, por um arquivo morto, recheado de heróis, cujo destino é o triunfo e/ou a tragédia. O herói, na verdade, é muito medroso. Por isso mata ou morre.
Não há saída nesse paradigma teleológico. As escritas das estórias, no entanto, não distinguem nem pretendem distinguir tudo o que contém a bolsa; as coisas se combinam. Uma estória ou um “romance é um patuá guardando coisas numa relação particular e poderosa umas com as outras e conosco. … No final, é o herói que não fica bem nessa bolsa. Ele precisa de um palco ou pedestal…” (Le Guin, 2021, p. 22), entre o triunfo e a tragédia.
Finalmente, na dança conceitual que proponho, penser autrement é também pensar no outro como alteridade que me pensa, reciprocamente, e que me escapa, ao mesmo tempo em que me determina, fora e antes de mim. E penso fora, no cruzamento de várias ontologias que se relacionam de modo horizontal e recíproco, infinitamente, que me incitam a sair de mim, deixando-me “escavar pela fenda, pelo corpo, pela terra, pelo outro, pela morte”, incitando-me a “uma saúde ampla que hospede as alteridades banidas” (Pessanha, 2018, p. 218). Na perspectiva do desfazimento em curso de uma episteme, o sintoma, como outras categorias, já não é mais considerado o outro, alteridade que me pensa e me submete. Ele entra na dança das transformações em modos variados, num lugar que contém e combina. O sintoma, ele também, um herói.