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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO LIVRE

 

A dimensão corporal da experiência psíquica1

 

The corporal dimension of the psychic experience

 

 

Aline de LeoI; Junia de VilhenaII

IPsicanalista; Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica com Crianças da PUC-Rio
IIPsicanalista; Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS (PUC-Rio); Bolsista da CAPES; Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora, Université Denis-Diderot Paris VII

 

 


RESUMO

Neste trabalho buscamos apresentar o papel fundamental das interações físicas entre o corpo da mãe e o do bebê para a configuração do self e do objeto. Partimos do pressuposto colocado por Freud (1923) de que o self é, desde suas origens, um self corporal - sua fundação encontra-se no âmbito das experiências somáticas e se desenvolve a partir das trocas com o ambiente social, que lhe provê uma matriz simbólica significante. Para tal, recorremos a distintos autores, tais como Aulagnier, Anzieu, Dolto, Freud, Gil, Klein, Merleau-Ponty e Winnicott, dentre vários outros.

Palavras-chave: corpo; relação mãe-bebê; self; integração.


ABSTRACT

This article seeks to present the fundamental role of the interactions between the physical bodies of the mother and the baby for the configuration of self and object. According to Freud (1923), the self is, since its origin, a body self. Its foundation is the somatic experience that developed from the interaction with the social environment, which provides a significant symbolic matrix. In order present this point of view we have made use of authors such as Aulagnier, Anzieu, Dolto, Freud, Gil, Klein, Merleau-Ponty and Winnicott, among several others.

Keywords: body; mother-baby relationship; self; integration.


 

 

A elaboração teórica sobre a articulação entre os registros do corpo e do psíquico é bastante antiga, apresentando-se desde os primórdios do pensamento freudiano. Seguindo os passos de Freud, vários psicanalistas têm buscado enfatizar a articulação da dimensão sensorial/somática com o registro representacional na gênese do psíquico, restituindo ao corpo seu lugar evidenciado de ancoragem do sentimento do Eu, tanto quanto de fonte das exigências pulsionais do Id (Freud, [1915] 1975). Deste modo, a psicanálise pós-freudiana voltou-se ainda mais para o estudo das primitivas relações de objeto e da função desempenhada por elas na constituição do psiquismo. A importância atribuída aos vínculos primários resgatou de certo limbo teórico as questões relativas ao papel do corpo na origem do self, propondo, assim, uma metapsicologia aquém da simbolização.

A clínica contemporânea apresenta desafios metapsicológicos complexos que os psicanalistas vêm buscando decifrar, além de ressaltar cada vez mais a importância do trabalho analítico no campo da provisão ambiental. As observações do desenvolvimento primitivo do bebê, aliadas às análises de patologias fora do campo das psiconeuroses (estados limite, psicoses, psicossomatoses, bulimias e anorexias), passaram a oferecer suporte para as pesquisas acerca dos primórdios da vida psíquica, ressaltando os mecanismos inerentes aos processos de integração corpo-mente na emergência do Eu.

As pesquisas atuais referem-se a um tempo no qual o plano da experiência - vivencial/sensório - domina a cena subjetiva do sujeito, enfatizando os estágios pré-genitais e pré-verbais do desenvolvimento individual. Neste trabalho, buscamos apresentar, sobretudo, o papel fundamental das interações físicas entre o corpo da mãe e o do bebê para a configuração do self e do objeto. Partimos do pressuposto colocado por Freud ([1923] 1975) de que o self é, desde suas origens, um self corporal - sua matriz fundadora encontra-se no âmbito das experiências somáticas -, buscando desenvolver-se a partir das trocas com o ambiente social, que lhe provê uma matriz simbólica significante. Vejamos o que relatam os autores por nós pesquisados.

Anzieu (1988) descreve como as sensações cutâneas introduzem o recém-nascido em um universo de grande complexidade, porém ainda difuso, despertando o sistema percepção-consciência que subentende um sentimento global e episódico de existência, possibilitando a criação de um espaço psíquico originário. Este sistema percepção-consciência arcaico pressupõe uma experiência perceptiva pré-reflexiva, sugerindo uma organização funcional ancorada nos processos somáticos; ou seja, uma "consciência corporal". Dialogando com Freud, o autor resgata a antiga noção freudiana de "Ego-corporal", tematizando-a através da elaboração do conceito de um "Eu-pele" e de sua teoria sobre os envelopes psíquicos. Enfatiza que tudo que é da ordem do psíquico se desenvolve em constante referência à experiência somática.

Anzieu (1988) apresenta o corpo do bebê transcendendo sua ordem puramente biológica e ascendendo ao registro complexo do pulsional; ou seja, "con-figurando" o psíquico. Este é um corpo sensível, erógeno, capaz de produzir significações e fantasias através de sua relação com o objeto e de representar-se imaginariamente.

A questão corpo/mente foi circunscrita originalmente por Freud ([1905] 1975) mediante o conceito de pulsão, definida como sendo o "conceito-limite" entre o somático e o psíquico. Portanto, paradoxalmente, Freud propõe uma ideia de integração e, ao mesmo tempo, nos coloca o seu oposto: o dualismo corpo/mente.

Entretanto, se a pulsão (Trieb) não é uma força estritamente natural, podendo, se assim o fosse, se equiparar aos demais instintos (Instincts), nem por isso ela deixa de ser potência corporal; ou seja, sua fonte (Quelle) localiza-se no corpo. O corpo pulsional - enquanto outra categoria - não se reduz seja ao corpo simbólico (representado), seja ao corpo biológico, sem, no entanto, excluí-los. Digamos que a complexidade da questão não comporta apenas as categorias anteriormente pensadas através de uma lógica reducionista e excludente - corpo-simbólico ou corpo-biológico -, orientando-nos para uma síntese que se expressa no conceito de "corpo pulsional"; ou melhor, para a superação da dicotomia corpo vivo/corpo percebido historicamente. Melhor falarmos, então, de um corpo mentalizado e/ou de uma mente corporificada.

Segundo a descrição que oferece Dalgalarrondo (2000), aprendemos que os diferentes estímulos físicos (luz, som, calor pressão, etc.) ou químicos (substâncias com sabor ou odor, estímulos sobre as mucosas, pele, etc.) agem sobre os órgãos dos sentidos produzindo sensações. O ambiente intra e extrauterino desde o início fornece constantemente informações sensoriais ao organismo vivo que, através delas, organiza suas ações voltadas à sobrevivência e à interação com o meio ambiente.

No entanto, mais além dos estímulos físicos que assolam o indivíduo desde o seu início, sabemos, por Freud, que o organismo vivo recebe, também, quantidades de excitação provenientes do interior do corpo: os "estímulos" chamados pulsionais (inicialmente, na primeira teoria pulsional, as pulsões sexuais e de autoconservação ou do Ego). Em seu texto de 1915 (1975), Freud distingue os estímulos físicos externos ("estímulos que se comportam mais como fisiológicos" e que funcionariam segundo o modelo do arco reflexo) das excitações pulsionais internas, ressaltando o fato de que os primeiros atuam como uma força de choque momentânea, enquanto os segundos têm uma força (Drang) ou fator motor de atuação constante. Esta característica dos "estímulos" ditos pulsionais se deve, principalmente, à origem endógena de suas fontes (Quelle); ou seja, o interior do corpo. Deste modo, o que interrompe o estado de excitação pulsional é a sua meta (Ziel): a satisfação, encontrada das mais diversas formas possíveis, mas sempre à custa da transformação da fonte interna de estimulação. Essa alteração apropriada pressupõe a existência de um objeto (Objekt) que pode ser, inclusive, uma parte do próprio corpo. Para o bebê, no entanto, esta distinção não é percebida inicialmente. Trata-se, originalmente, de um estado de indiferenciação no qual o mundo externo tem a qualidade de indiferente ou ameaçador.

Freud é bastante claro quando afirma que as pulsões são forças que emanam do Isso, representando exigências que o corpo faz à mente. Segundo ele, as pulsões encontram-se na origem de toda a atividade psíquica, estando permanentemente em atividade, buscando inscrever-se no psíquico:

Se agora dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma pulsão2 nos parecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo (Freud, [1915] 1975: 142).

Desse modo, descreve um funcionamento diferenciado para esta categoria de "estímulos". Se o estímulo externo pode ser evitado mediante uma ação muscular e reflexa, essa possibilidade não existe para a tensão provocada pelas moções pulsionais. A partir da aquisição da capacidade de distinguir os estímulos externos daqueles orientados desde um interior e reagir diferentemente a eles, o indivíduo cria um "dentro" e um "fora". Esta atividade primária de diferenciação é automaticamente regulada por sentimentos pertencentes à série prazer-desprazer; ou seja, encontra-se sujeita ao princípio do prazer, sendo que aquilo que é prazeroso torna-se incorporado ao Ego, enquanto o que causa desprazer é expulso (projetado), vindo a se constituir como o "não-Eu".

Freud ([1915] 1975) imputa aos estímulos pulsionais a condição de motores dos progressos que conduziram o aparelho psíquico e o sistema nervoso humano ao seu atual nível de desenvolvimento. Assim ele se refere à pulsão: "Vemos então até que ponto o modelo simples do reflexo fisiológico se complica com a introdução das pulsões" (Freud, [1915] 1975: 140).

O complexo universo sensório que se apresenta ao ser humano desde os seus primórdios correlaciona os estímulos externos com as excitações pulsionais (internas), demandando um sistema percepçãoconsciência capaz de transformar o que é vivenciado e apreendido/ percebido em marcas ou indicações de percepção (Wahrnerhmungszeichen) e, posteriormente, em traços mnêmicos (ou de memória). Estas seriam as primeiras transcrições, inconscientes, da experiência somática no espaço psíquico originário, dando-se segundo as leis do processo primário que regem o funcionamento mental. Além disso, o impacto das forças pulsionais depende, para ser mediado e representar-se (inscrever-se no psíquico), da experiência de satisfação obtida através da ligação dessa força com o objeto (funcionando aqui, principalmente, como agente para-excitação): "Estes exigem muito mais do sistema nervoso, fazendo com que ele empreenda atividades complexas e interligadas, pelas quais o mundo externo se modifica de forma a proporcionar satisfação à fonte interna de estimulação" (Freud, [1915] 1975: 140).

Relata, ainda, que no início da experiência neonatal o bebê não é capaz de perceber a si mesmo e aos objetos do mundo que o cerca em sua totalidade. Tanto a percepção do seu corpo próprio quanto à do corpo de sua mãe acontecem fragmentadas em partes isoladas, como objetos parciais (seio, fezes, pênis), a partir de um mapeamento corporal orientado segundo o fluxo libidinal. Posteriormente, essas percepções despedaçadas, confusas, de si e do outro, próprias ao funcionamento autoerótico no estado de narcisismo primordial, cedem lugar a uma percepção de conjunto. Progressivamente, o bebê percebe mais e mais toda a pessoa da mãe, estendendo essas percepções ao mundo que está além da mãe. A conquista de uma percepção global de si e do objeto pelo sujeito seria, assim, determinada por uma síntese de dados sensoriais apreendidos, primariamente, sob a forma de uma montagem de hábitos perceptivos a partir dos efeitos gerados pela repetição das experiências engendradas pelo meio.

Os cuidados repetidos cotidianamente com o bebê, acompanhados do carinho e amor maternos, representam experiências sensoriais importantes na conquista da síntese perceptiva. Contribuem para a integração narcísica do Eu, para a percepção diferenciada do objeto enquanto não-Eu e para o desenvolvimento da capacidade de usar símbolos e pensar, já que essas duas funções cognitivas dependem da capacidade de apreender objetos totais.

Freud ([1923] 1975) também mostra que as sensações táteis se diferenciam dos demais registros sensoriais por fornecerem tanto uma percepção interna quanto externa (sentimos o objeto que toca nossa pele, ao mesmo tempo que sentimos nossa pele sendo tocada). Presume-se que essa bipolaridade tátil prepara o desdobramento reflexivo do Ego, tornando a experiência tátil precursora do psíquico e da subjetivação. Ou ainda, como considera Anzieu (1988), "pode-se pensar que esse desdobramento inerente às sensações táteis prepara o desdobramento reflexivo do Eu consciente que vem se apoiar sobre a experiência tátil" (Anzieu, 1988: 114). Ainda sobre o modelo da reflexividade tátil, explica Anzieu, pode-se pensar a construção das outras reflexividades sensoriais (escutar, emitir sons, aspirar seu próprio odor, se olhar no espelho), assim como da reflexividade do pensamento.

Em uma nota de 1923 (1975), Freud sugere que o Eu se constitui, em última análise, a partir das sensações corporais, principalmente daquelas produzidas na superfície do corpo. Assim, ele pode ser encarado como uma projeção mental da superfície do corpo e representar as superfícies do aparelho mental. Ainda em O ego e o id (Freud, [1923] 1975), ele demonstra que as outras instâncias psíquicas também se originam das funções e atividades corporais: as pulsões constitutivas do Id derivam dos instintos biológicos (por apoio e transformação) e os resíduos verbais têm "raízes acústicas", de modo que uma palavra é, em ultima análise, o traço mnêmico de uma palavra que foi ouvida. Freud deixa clara a correspondência entre o orgânico e o psíquico, sem operar reduções mutiladoras.

Além de Freud, autores como Winnicott, Anzieu e Leboyer, entre outros, mostraram que o desenvolvimento do sentido do tato no maior órgão sensorial do corpo, a pele, se inicia bem precocemente. Através da observação de bebês, verificamos o quanto estes se apresentam sensíveis às variações de temperatura, mudanças de textura, umidade, pressão e dor desde o momento do parto. Ora, durante a gestação, o feto encontra-se envolvido por tecidos e líquidos que possuem a temperatura do corpo materno. Essa condição homeostática parece justificar o fato de os recém-nascidos ficarem mais calmos quando colocados no colo da mãe, visto que resgatam, através desse aconchego, a mutualidade própria às vivências precoces, anteriores ao nascimento.

Sabemos por Leboyer que as trocas táteis - o corpo-a-corpo mãe-bebê - tendem a instaurar, potencialmente, este universo sensório inicialmente perturbador (vivo!). Contudo, na medida em que determinam um padrão rítmico de sintonia interafetiva agradável, favorecem o estabelecimento da experiência de mutualidade para a dupla mãe-bebê e a modulação das quantidades de excitação experimentadas. Citando Winnicott ([1988] 1990):

O processo de localização da psique no corpo se produz a partir de duas direções, a pessoal e a ambiental: a experiência pessoal de impulsos e sensações da pele, de erotismo muscular e instintos envolvendo excitação da pessoa total, e também tudo aquilo que se refere aos cuidados do corpo, à satisfação das exigências instintivas que possibilita a gratificação (Winnicott, [1988] 1990: 144).

Ora, se a mãe oferece o seu corpo ao bebê, acolhendo-lhe o gesto espontâneo na busca deste corpo, Winnicott ([1967] 1999) esclarece que "grande parte do cuidado físico dedicado à criança -segurá-la, manipulá-la fisicamente, banhá-la, alimentá-la e assim por diante - destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psiquessoma que viva e trabalhe em harmonia consigo mesmo" (Winnicott, [1967] 1999: 12).

A aquisição de uma unidade psicossomática - a personalização - encontra-se na origem do sentimento de ser real e/ou do fenômeno de realização. A parte psíquica da pessoa ocupa-se dos relacionamentos dentro do corpo, com ele e fora dele. O funcionamento psíquico emerge da função elaborativa das funções corporais de todos os tipos. Além disso, cataloga memórias desde os primórdios de seu funcionamento (para tanto, conta com uma base cerebral saudável), ligando o passado já vivenciado ao presente e ao futuro. Assim fazendo, provê um sentimento de continuidade ao Eu, justificando, ainda, que dentro do corpo existe um indivíduo.

Para o autor, a base da psique é o soma que lhe é anterior em termos de desenvolvimento. A psique não tem existência alguma fora do cérebro e do seu funcionamento: "O corpo vivo, com seus limites, e com um interior e um exterior, é sentido pelo indivíduo como formando o núcleo do self imaginativo" (Winnicott, [1949] 1978: 409). E ainda: "Tudo o que é físico é imaginativamente elaborado, investido de uma qualidade de primeira vez" (Winnicott, [1967] 1975: 140). O processo correspondente à elaboração imaginativa das funções corporais pressupõe mais do que o funcionamento corporal e/ou um ego-corporal. Encontra-se fundado numa dimensão outra, a qual Winnicott descreve como o campo das experiências corporais próprias da relação de objeto de tipo não orgástico ou da capacidade de relacionamento do ego (ego-relatedness), correlatas à experiência do brincar e que acontecem no espaço-tempo potencial.

Safra (1999), seguindo o viés winnicottiano, dirá: "São experiências que dão à criança a vivência de lugar e de extensão. Gradualmente se estabelece uma organização de self bidimensional. O self, neste momento, é calor, textura, dureza e assim por diante" (Safra, 1999: 77). As falhas nos processos de localização da psique no corpo estão relacionadas aos cuidados dispensados pela mãe ao bebê no exercício de sua função de handling (Winnicott, [1988] 1990). Se a frustração da experiência instintiva provoca desesperança ou um sentimento de futilidade, explica Winnicott, acontece um enfraquecimento da fixação da psique no corpo e uma sensação de não ser encarnado (despersonalização). A continuidade desses estados dissociativos impede a elaboração imaginativa do funcionamento corporal e de sua posterior simbolização, além da conquista de um estado de integração através do qual as fronteiras do corpo tornam-se também as fronteiras da psique. O fenômeno psicossomático, enquanto uma psicopatologia, encontraria aí suas raízes.

É somente ao apropriar-se de um corpo que foi significado libidinalmente por um outro - "Meu corpo não é meu corpo / é ilusão de outro ser" (Drummond de Andrade, 1984: 7) - que a criança passa a dispor de uma vida imaginativa que lhe possibilita ocupar o vazio da ausência deste outro com a capacidade de sonhar e, posteriormente, simbolizar.

 

SOBRE O CORPO-MEMÓRIA

As reflexões que Ferenczi (1873-1933) faz sobre o trauma revelam como o corpo surge como referência importante. Para o autor ([1934] 1992) a lembrança fica impressa no corpo e é somente lá que ela pode ser despertada. A partir dessa lógica, o corpo entra em cena representado pelas vivências não recalcadas e não acessíveis através da linguagem. Sua tese pressupõe a presença de marcas sensíveis coexistindo com as marcas simbólicas. Mas, para além do trauma, vejamos o que ele argumenta sobre a inscrição dessas marcas sensíveis:

O psiquismo da criança (e a tendência do inconsciente que subsiste no adulto) concentra - no que diz respeito ao corpo próprio - um interesse inicialmente exclusivo, mais tarde preponderante, em relação à satisfação de suas pulsões, pelo gozo que lhe propiciam as funções de excreção e atividades tais como chupar, comer, tocar as zonas erógenas. Nada tem de surpreendente que sua atenção seja atraída, em primeiro lugar, para coisas e os processos do mundo externo que lhe recordam, em virtude de uma semelhança, mesmo longínqua, suas experiências mais caras [...]. Nesse estádio, a criança só vê no mundo reproduções de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio de seu próprio corpo toda a diversidade do mundo externo (Ferenczi, [1934] 1992: 47).

As pesquisas psicanalíticas contemporâneas buscam, portanto, o que está aquém da representação psíquica: as impressões (Eindrück) vivenciadas precocemente e mais tarde esquecidas. Essas marcas, ou impressões precoces, não são simplesmente endopsíquicas, mas resultam de experiências vividas. Pode-se classificá-las como marcas perceptivo-sensório-motoras das vivências primordiais. Quanto a esse ponto, vejamos o que nos diz Freud: "Os traumas consistem em experiências somáticas ou em percepções sensoriais, geralmente visuais ou auditivas; são, pois, vivências ou impressões" (Freud, [1939] 1975: 93).

Winnicott ([1945] 1990: 126) compartilha dessas concepções: "As memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à atividade da amamentação e ao encontro com o objeto".

 

O VALOR DA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL: O AUTOENGENDRAMENTO CORPO-PSIQUE

O trabalho de Aulagnier (1999) sobre as relações corpo-psique vem enfatizar ainda mais esta relação primordial. O corpo surge, nesta dimensão, como o cenário originário de um personagem muito especial: o Eu.

A autora parte do pressuposto de que toda história significante se constrói a partir do nascimento de um corpo que deverá ser investido libidinalmente. Sua tese do autoengendramento postula que, enquanto o espaço psíquico e o espaço somático (o corpo) se encontram indissociáveis, a psique imputará à atividade das zonas sensoriais o poder de engendrar suas experiências, seus próprios movimentos de investimento e desinvestimento, ou seja, a única evidência que pode existir nesta alvorada da vida. A realidade - exterior e interna - será autoengendrada pela atividade sensorial.

O encontro do corpo do bebê com o corpo materno vai lhe dar condições de elaborar, imaginativamente, as funções corporais por ele vivenciadas. A unidade corporal é conquistada por meio da e na presença de um outro que instaura, simultaneamente, um corpo psíquico.

Para a autora, a colocação em vida do aparelho psíquico está condicionada à atividade dos órgãos dos sentidos. A vida da psique encontra nessa dimensão da experiência sensorial a sua primeira condição de autoapresentar sua propriedade de organização viva. Os primeiros elementos a serem inscritos nessa psique originária são o produto da metabolização das primeiras informações trazidas pela atividade sensorial; ou seja, das suas reações a esses estímulos que acompanham o que se inscreve, desaparece e se modifica sobre a cena do mundo.

Neste início, o objeto não existe psiquicamente, a não ser pelo seu único poder de modificar a resposta sensorial-somática e, por esta via, agir sobre o experimentado psíquico: "Antes que um olhar encontre um outro (ou uma mãe), a psique se encontra e se reflete nos sinais de vida que o seu próprio corpo emite" (Aulagnier, 1999: 20). A possibilidade de uma zona sensorial transformar-se em zona erógena é atribuída a esse poder dos sentidos de afetar a psique. Portanto, corpo e psique reagem e vivem graças a este estado de relação contínua entre eles e o meio ambiente.

Segundo a autora, a escrita dos processos psíquicos originários é o pictograma: "única figuração que a psique pode forjar do seu próprio espaço, dos seus próprios experimentados afetivos, das suas próprias produções" (Aulagnier, 1999: 21). O pictograma deve ser entendido como essa figuração de um mundo-corpo. Desse modo, supõe que o processo originário nada conhece do mundo a não ser seus efeitos sobre o soma, do mesmo modo que só se conhece dessa vida somática as consequências de sua ressonância natural e contínua sobre o psíquico que não cessam senão com a morte.

 

CORPO VIVIDO... CORPO IMAGINADO: O CONCEITO DE DOLTO

Prosseguindo nossa argumentação, ressaltamos outro conceito igualmente importante para a discussão deste tema. Trata-se da concepção, elaborada por Françoise Dolto (1984), de uma "imagem inconsciente do corpo". Esta serve de sustentação imaginária para as diversas vivências corporais do indivíduo, sendo construída através das experiências intercorporais com os seus objetos relacionais.

O mundo do bebê apreendido por Dolto (1984) é um "mundo carnal", feito de percepções e trocas - mesmo in útero o infans é um ser comunicante e interativo. Dolto fala no ato de carregar o bebê em cocorporeidade, de viver e de convivência. É assim que, através dos cuidados repetidos dispensados pelo objeto materno, será dado às zonas de comunicação substancial (boca, ânus...) um valor de troca. Será através dos "sentidos sutis" (assim Dolto designa o olfato, a visão, a audição, o tato e as carícias) que o lactente organizará sua rede de intercâmbio com os pais e o ambiente. A experiência de constituição de um Eu pressupõe sempre uma dialética inter-humana.

A presença do semelhante, midiatizada pelos referenciais sensoriais, possibilitará a criação de uma "imagem inconsciente do corpo", expressão dos investimentos da libido. Este conceito tenta explicar a natureza das representações precoces não figurativas, assim como o mecanismo através do qual são engendradas.

Dolto (1984) diferencia "imagem inconsciente do corpo" de "esquema corporal", acreditando na relevância de se considerar as várias dimensões da experiência somatopsíquica. Enquanto especificador do indivíduo como representante da espécie, o esquema corporal se apresenta mais ou menos idêntico em todas as crianças da mesma idade, constituindo uma realidade de fato, esteio e intérprete da imagem do corpo. Já a "imagem inconsciente do corpo", individual e singular, advém da história pessoal, de uma relação libidinal marcada por sensações erógenas eletivas vividas no encontro com o objeto: "a imagem do corpo é aquilo em que se inscrevem as experiências relacionais da necessidade e do desejo, valorizadoras ou desvalorizadoras" (Dolto, 1984: 23).

Segundo a autora, a experiência corporal sensorial sem um mediador humano institui o esquema corporal - uma cartografia anatômica -, mas não estrutura a imagem (psíquica) do corpo enquanto uma cartografia do desejo. Sua descrição comporta três aspectos: estrutural, genético e relacional.

O ASPECTO ESTRUTURAL

Estruturalmente, a imagem inconsciente do corpo se apresenta como uma articulação dinâmica de uma "imagem de base" que concerne ao ser e origina-se da vivência reiterada de uma massa corporal: a imagem do corpo em repouso.

Uma segunda modalidade da imagem do corpo refere-se à imagem funcional. Ela é ativa, dinâmica e excentradora em relação à "imagem de base" (mais associada ao repouso e a um centro). A imagem funcional apresenta-se unida à tensão, à meta do desejo, aos estados excitados do funcionamento psicossomático.

Há, ainda, uma terceira modalidade da imagem do corpo: a imagem erógena. Esta se associa à imagem funcional e tem por objetivo focalizar o prazer e o desprazer. Segundo Dolto (1984), sua representação encontra-se referida a círculos, concavidades, esferas, traços, orifícios imaginados como dotados de intenções emissivas ativas ou receptivas passivas, geradoras de prazer ou desprazer.

Uma última categoria é apresentada por Dolto (1984): a imagem dinâmica. Sua principal função é a de ligar as três categorias anteriores. Corresponde ao desejo de ser e de perseverar pelo alcance do objeto. Apesar de não se representar, poderia ser esquematizada como um traço pontilhado que, partindo do sujeito pela mediação de uma zona erógena do seu corpo, se encaminhasse na direção de um objeto.

O ASPECTO GENÉTICO

A imagem do corpo, apesar de inconsciente, é fruto de uma elaboração, construindo-se e se reformulando através do tempo. A autora considera que cada estágio da libido modifica as representações da "imagem de base". Por exemplo: após o nascimento, a imagem básica aérea é respiratório-olfativo-auditiva; segue-se a ela uma imagem básica oral e anal. Com o passar do tempo, as imagens do corpo evoluem graças às experiências de castração (oral, anal, fálica) que permitem sua simbolização.

O ASPECTO RELACIONAL

Este aspecto da imagem do corpo funda o pressuposto de que esta é, em sua própria essência, relacional. Constitui-se corporalmente ordenada através do corpo, do sentir e da fala do objeto materno. É tão somente a partir da experiência intersubjetiva, vivida no jogo inter-relacional - no qual existe uma testemunha humana real ou memorizada -, que o esquema corporal entrecruza-se com a imagem inconsciente do corpo, fundando o "lugar do desejo".

 

O "EU-PELE" DE ANZIEU: UMA INTERFACE

O trabalho de Anzieu (1988) encontra-se presente desde as primeiras formulações teóricas deste trabalho. A ideia de um Eu-pele corrobora a concepção freudiana de um Eu que se constitui a partir das sensações corporais que emanam da superfície do corpo. Assim o conceitua Anzieu: "Por Eu-pele designo uma representação de que serve o Eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da superfície do corpo" (Anzieu, 1988: 61). Para ele, a instauração do Eu-pele corresponde à necessidade de constituição de um envelope narcísico primário, assegurador de um bem-estar de base para o aparelho psíquico. Ao postular que toda atividade psíquica se estabelece sobre uma função biológica, corporal, cujo funcionamento é transposto para o plano mental (elaboração imaginativa da função), Anzieu pensa o Eu-pele apoiado sobre as várias funções da pele.

Destaca, pelo menos, três delas: 1) a pele sendo a primeira bolsa que contém e retém em seu interior o bom e o pleno aí armazenados com o aleitamento, os cuidados, o banho de palavras; 2) a pele enquanto uma interface que demarca o limite com o fora e o mantém no exterior (oferecendo proteção contra as agressões); 3) a pele tendo uma função de comunicação primária com o meio circundante e, deste modo, propiciando o estabelecimento de relações significantes (enquanto uma superfície de inscrição de traços deixados por tais relações).

Esta origem epidérmica e proprioceptiva do Eu lhe possibilita estabelecer barreiras (que se tornam mecanismos de defesa psíquicos) e filtrar as trocas entre o Id, o Superego e o mundo exterior.

Além dessas três, Anzieu (1988) designa mais algumas funções para o Eu-pele: a) função de sustentação, através da qual o Eu-pele, sendo uma parte da mãe (particularmente as mãos) que foi introjetada, mantém o psiquismo em estado de unidade tal qual a mãe sustenta e mantém integrado o corpo do bebê; b) função continente, exercida pela mãe através dos cuidados corporais dispensados à criança, sendo introjetada como representação psíquica de uma sensação-imagem da pele como bolsa continente. O Eu-pele emerge, assim, dos jogos corpo a corpo entre a mãe e o bebê; c) função de individuação, que permite ao Eu-pele assegurar o mecanismo de individuação do self, proporcionando-lhe o sentimento de ser único (ser um Eu é sentir-se único); d) função de intersensorialidade, através da qual o Eu-pele conduz à formação de um senso comum, ao ligar as sensações de naturezas diversas entre si, cuja referência de base se faz sempre ao tato; e) função de sustentação da excitação sexual, exercida pelo Eu-pele enquanto uma superfície. Nesse caso, o Eu-pele configura a superfície sobre a qual as zonas erógenas podem ser localizadas, a diferença entre os sexos reconhecida e sua complementaridade desejada; f) função de recarga libidinal, direcionada à manutenção da tensão energética interna e à sua distribuição desigual entre os subsistemas psíquicos; g) função de inscrição, promovida pelo Eu-pele sobre os traços sensoriais táteis. Desenvolve-se através de um apoio duplo, biológico e social. No plano biológico, um primeiro desenho da realidade se imprime sobre a pele. Quanto ao social, o pertencimento a um grupo social se dá através de marcas que consistem em incisões, pinturas, tatuagens, modificações corporais e de seus dublês, que são as roupas e acessórios.

Ainda segundo a descrição de Anzieu (1988), o Eu-pele consiste numa estrutura intermediária do aparelho psíquico. Ou seja, intermediária cronologicamente entre a mãe e o bebê, intermediária estruturalmente entre a inclusão mútua dos psiquismos na organização fusional primitiva e a diferenciação das instâncias psíquicas que corresponde à segunda tópica freudiana: Id, Ego e Superego.

E, finalmente, vejamos o que nos diz Leboyer ([1976] 1995) sobre a pele do bebê, convidando-o a dialogar com Anzieu: "Ah, sim, é preciso dar atenção a esta pele, nutri-la. Com amor. Mas não com cremes" (Leboyer, [1976] 1995: 22).

O corpo aparece, portanto, para além de sua dimensão estritamente biológica, como suporte para a ancoragem do psíquico. Essa relação originária corpo-psique evoca para o Eu, inelutavelmente, sua matriz fundadora: o corpo - sua primeira e derradeira morada. Assim, ela aparece aludida em verso por Drummond de Andrade (1984): "Meu corpo ordena que eu saia / em busca do que não quero, / e me nega, / ao se afirmar / como senhor do meu Eu / convertido em cão servil" (Drummond de Andrade, 1984: 19).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar estudos comparativos, construir pontes teóricas ou promover diálogos entre autores diversos tem sido uma tradição inaugurada por Freud desde as origens do pensamento psicanalítico. Ora, se o microscópio foi a metáfora utilizada para apresentar os modos de produção de conhecimento na modernidade, hoje, na contemporaneidade, trocamos a lente que busca a essência pela visão multifacetada produzida pela tela do caleidoscópio. A Psicanálise, desde sempre às voltas com a complexidade dos fenômenos anímicos, recorreu às duas. Neste trabalho, propusemos a metáfora da lente caleidoscópica para pensarmos a psicanálise, o corpo e a cultura, utilizando a pluralidade que o entrecruzamento dessas categorias permite configurar.

O corpo pulsional é potência, campo de forças, intensidades, procurando inscrever-se semioticamente e realizar sua dimensão simbólica. No palco da cultura, à mercê de seus signos, o corpo ultrapassa os limites do biológico e se torna personagem/ator social, travestindose de seu aparato simbólico. Assim ele espelha e, simultaneamente, se constitui. O imaginário cultural engendra gestos, posturas, hábitos, vícios, expressões, enfim, toda uma cartografia corporal que insere e reconhece o sujeito como membro de um grupo social, conforme as exigências impostas a ele pelos modelos vigentes ou pelo poder das normas organizadoras do ethos em que vive. É assim, realizando um salto engendrado pelo pulsional e pela função organizadora do objeto primário, que o corpo somático vem a constituir-se em corpo psíquico; ou ainda, que a fisiologia transforma-se em figuração, alegoria, comunicação e linguagem. Há de se concordar com Costa (2001) quando, parafraseando Shakespeare, diz: "aquém e além da linguagem, o corpo, os afetos e a pulsão criam sentidos que a razão linguística desconhece" (Costa, 2001: 201)!

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Este artigo é parte da Tese de Doutorado intitulada Na praia do mar dos mundos sem fim... Mães e crianças brincam: criando um espaço, defendida no Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) por Aline de Leo e orientada pela Professora Junia de Vilhena.

2 Quando na edição Imago está escrito "instinto", trocamos por "pulsão", por conta da já fartamente comentada inadequação da escolha do termo "instinto" como tradução de Trieb.

 

 

Recebido em 13 de outubro de 2009
Aceito para publicação em 07 de março de 2010

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