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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

O amor e o ódio no brincar da criança com encoprese1

 

Love and hate on the playing of a child with encopresis

 

 

Valéria BarbieriI; Mirtes Ione UjikawaII; Fernanda Kimie Tavares MishimaIII

IDocente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)
IIPsicóloga formada pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)
IIIDoutoranda pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicóloga responsável pelo Serviço de Triagem da Clínica-Escola do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP

 

 


RESUMO

A encoprese é caracterizada pela exoneração intestinal em locais inadequados (roupas ou chão). Na psicanálise, ela é concebida como vinculada ao desenvolvimento da moralidade, enraizando-se, assim, na ambivalência da criança frente a seus pais. Como a formação de símbolos é um aliado importante na elaboração da ambivalência, este trabalho investigou a natureza do brincar de crianças com encoprese por meio da realização de três estudos de caso, com sessões lúdicas e entrevista familiar. Os resultados indicaram que o brincar dessas crianças era enrijecido e pouco criativo devido a um rígido controle pulsional. Este, por sua vez, originava-se no seu relacionamento com a mãe e nas dificuldades desta de elaboração da própria ambivalência, que também conduziam a um hipercontrole de si mesma. Portanto, o sintoma e a dificuldade criativa revelavam uma reação da criança diante da intrusão de um ambiente que não acolhia suas necessidades, nem permitia integrar amor e ódio.

Palavras-chave: encoprese; psicanálise; criança; família; brincar.


ABSTRACT

Encopresis is characterized by intestinal exoneration in inadequate places, such as clothes or on the floor. In psychoanalytic terms, it is conceived as related to morality development, thus originating from the child's ambivalence regarding his or her parents. As symbol formation is an important ally in the elaboration of ambivalence, the present study investigated the nature of children's playing via three case studies, which included ludic sessions and family interviews. The results indicate that such children's playing was rigid and hardly creative, due to a rigorous drive control. Such control had its roots in the relationship of the children with their mothers, as well as from difficulties of the latter to elaborate their own ambivalence, leading to a hyper-control of themselves. Therefore, both the symptom and the creative difficulty revealed a reaction of the children from an intrusion of an ambient which did not offer support to their needs, nor allowed for the integration of love and hate.

Keywords: encopresis; psychoanalysis; child; family; playing.


 

 

INTRODUÇÃO

A psicogênese do sujar foi primeiramente reconhecida por Fowler em 1882 e definida por Weissenberg em 1926, por meio do termo encoprese (apud Drake, 2005). Nessa época, a causa relacionada ao sujar-se foi atribuída à influência da família (Goodhart & Still, 2005). Morichaw-Beauchant (1922) enfatizou a relação entre a encoprese e agressão, sexualidade anal, ansiedade, inveja e castigo aos pais. Drake (2005) citou outros fatores contribuintes para o desenvolvimento dessa patologia, como a superproteção e preocupação excessiva com a função intestinal da criança por parte dos genitores.

Segundo o DSM-IV (APA, 2002), a principal característica da encoprese é a repetida exoneração intestinal em locais inadequados, como nas roupas ou no chão. Pode ser voluntária ou involuntária, sendo a última mais frequente. O evento deve ocorrer pelo menos uma vez por mês pelo período mínimo de três meses, e a idade cronológica do paciente deve ser superior a quatro anos. Além disso, a incontinência fecal não deve acontecer exclusivamente devido a efeitos fisiológicos diretos de uma substância ingerida ou de uma condição médica geral. A patologia afeta em torno de 1% das crianças com cinco anos de idade e é mais comum no sexo masculino. A encoprese pode ser do tipo primário ou secundário; neste frequentemente a perda do controle ocorre após um evento estressor (ingresso na escola, nascimento de um irmão, perda da mãe). Enquanto a encoprese primária pode ser vista como um atraso na função maturacional, a secundária corresponde a uma regressão a um estádio anterior de desenvolvimento.

Anna Freud (1971/1987) descreve a aquisição do controle "da bexiga e dos intestinos", com destaque para quatro etapas: 1) há liberdade total de urinar e defecar, e a mãe escolhe o momento para interferir no treino, que pode durar alguns dias ou até dois ou três anos; 2) a atividade impulsiva é transferida da zona oral para a anal, os produtos do corpo ganham alto investimento libidinal e são tratados pela criança como "presentes", entregues à mãe como sinal de amor; também estão catexizados com agressão, servindo como armas para expressar raiva, cólera ou desapontamento. A atitude é ambivalente em relação ao mundo objetal e a oscilação entre amor e ódio deve ser compreendida pela mãe a fim de evitar uma imposição irrestrita de asseio e regularidade; 3) a criança aceita as atitudes da mãe e do ambiente em relação à limpeza, integrando-as ao ego e superego; os esforços de asseio passam a ser internalizados, e evitar a sujeira é uma forma de repressão, podendo surgir outras inclinações deslocadas da zona anal, como colecionar e poupar. Ainda há instabilidade no controle, que pode ser perdido caso a criança fique decepcionada ou se separe de sua mãe, o que é manifesto por "acidentes" de se molhar e sujar; 4) nesta fase há consolidação do controle urinário e fecal, quando a preocupação com a limpeza passa a ser do ego e do superego autônomos e não mais dos objetos externos.

Para Winnicott (1936/1997) o ensino das normas de limpeza e de moralidade pode ser feito de duas maneiras: a primeira seria forçando a criança a aceitar tais normas sem integrá-las à sua personalidade, acarretando obediência, mas sem crescimento. A segunda seria facilitando as tendências inatas para moralidade, em que a criança irá, gradualmente, adquirir o sentido de envolvimento/responsabilidade, em cuja base está a culpa/preocupação. Nesse processo é fundamental que o bebê tenha uma mãe que sinta que vale a pena acompanhar as suas necessidades minuciosamente, habilitando a experiência excitante do corpo a integrar-se em uma relação de amor entre ela e o bebê, em outras palavras, integrar a mãe objeto (aquela que permite a satisfação de suas necessidades urgentes) e a mãe ambiente (aquela que recebe afeição e é vista como objeto total). Posteriormente, a criança irá, baseada no amor que sente pela mãe, recompensá-la controlando as funções excretórias. Nesse contexto, o valor sintomático da encoprese consiste em comunicar o conflito intrapsíquico, a saber, a ambivalência não integrada (Drake, 2005), que é usualmente expressa por meio do brincar.

Freud (1920/1996), Anna Freud (1971/1987) e Klein (1932/1997) consideraram o brincar como atividade criativa que facilita o aparecimento e organização de algumas características importantes do desenvolvimento infantil, possibilitando a elaboração de outras estruturas mentais (Marans, Mayes & Colonna, 1980). Apesar de dispor de uma teoria própria sobre esse assunto, Winnicott (1979/1993) concorda com Freud, Anna Freud e Klein em que o brincar reflete e facilita o sentido de autonomia do self em relação ao ambiente externo. Para ele, o brincar tem importância, mesmo quando não é interpretado, já que permite que as fantasias inconscientes e os desejos que ele expressa tenham lugar no mundo.

Ao brincar, a criança estabelece uma ponte entre o mundo interno e o mundo externo, que permite a sua passagem pelos fenômenos transicionais. Assim, é capaz de unir sua individualidade ao contexto social, o que implica no desenvolvimento e na aceitação de um sentido de moralidade (Winnicott, 1979/1993). Nesses termos, o brincar ocasiona importantes consequências para a vida futura da criança, em especial pela possibilidade oferecida de simbolizar e conviver socialmente. Desse modo, o brincar tende a uma unificação e integração geral da personalidade, já que, por meio da aceitação de símbolos, ele possibilita à criança experimentar aquilo que está presente em sua íntima realidade psíquica pessoal, base do crescente sentido de identidade. Neste ponto há agressão e amor. Para Winnicott (1957/1982), além do brincar por prazer, as crianças também brincam para controlar as ideias ou impulsos que geram ansiedade. Quando esse domínio não é eficiente e há ameaça de irromper um excesso de angústia, o brincar se torna compulsivo ou repetitivo, ou ainda a criança busca exageradamente os prazeres da brincadeira. Neste caso o brincar se transforma em pura exploração da gratificação sensorial.

Winnicott (1984/1999) ressalta que, do mesmo modo que a moralidade, o alicerce de todo o trabalho e brincar construtivos consiste na capacidade de envolvimento da criança, quando ela pode se preocupar e sentir responsabilidade. Para isso, é preciso que haja um ambiente suficientemente bom, com cuidados maternos adequados, que permita à criança integrar mãe-objeto e mãe-ambiente, integração que está na base da elaboração da ambivalência. Uma vez que compartilham da mesma origem desenvolvimental, sustentamos que o brincar e a moralidade são conquistas simultâneas e irmãs, que se sustentam e se retroalimentam.

Nesse contexto, se o processo de elaboração da ambivalência redunda em uma visão mais integrada da criança e do objeto, que aflui, por sua vez, na capacidade para o envolvimento (raiz da moralidade), a formação de símbolos a suporta e mantém por duas razões. A primeira é porque a simbolização permite que os afetos conflitivos (ou parte deles) vinculados ao objeto original sejam deslocados para objetos mais distantes, passíveis de usos e manipulação da criança que, de outra forma, colocariam em risco a integridade do objeto original. A segunda é em razão de que o contato com objetos diversos do original aporta uma variedade de experiências com suas diferentes nuances, sutilezas e significações que enriquecem os processos secundários da criança, ampliando as suas possibilidades de agir no mundo e provendo o self a partir do diálogo cultural; nesse contexto novos modos de elaboração da ambivalência se tornam possíveis.

Winnicott (1971/1975) percebe no brincar a possibilidade de comunicação com outro ser humano, um espaço onde a criança pode experimentar e construir a totalidade da sua existência. Uma vez que o processo terapêutico implica na sobreposição de duas áreas de brincar (da criança e do terapeuta) e sendo a psicanálise uma forma de brincar, ela atualiza as potencialidades do jogo em termos de favorecimento da integração da personalidade, da vinculação criativa com a realidade cultural, da harmonização da ambivalência e do desenvolvimento da capacidade simbólica, levando à comunicação consigo mesmo e com os outros.

No que tange ao tratamento psicanalítico da criança, por meio da transferência é possível vivenciar a relação de amor e ódio para com as figuras parentais, ou seja, os objetos primários. Nesta relação com o analista, é possível desenvolver o processo de simbolização (e, em consequência, a moralidade), especialmente quando a análise representa a experiência de um ambiente suficientemente bom, que provê as necessidades da criança e oferece holding (Winnicott, 1979/1993). A simbolização, ao permitir o conhecimento e a elaboração das experiências emocionais da realidade psíquica (de amor e ódio) por meio do pensamento, desobriga a criança de atuar diretamente as pulsões no ambiente.

Uma vez que o sintoma da encoprese revela um acoplamento da criança a um objeto original, é relevante investigar como, durante o processo psicoterápico, a criança utiliza o espaço potencial, em que é permitido criar, simbolizar e agir com espontaneidade e, nesse espaço, as maneiras pelas quais a ambivalência se manifesta, objetivos do presente trabalho.

 

MÉTODO

A perspectiva metodológica usada nesta pesquisa é de cunho qualitativo, o que implica que o conceito central para análise é o significado, isto é, o sentido dado às relações que são essência e resultado da ação humana criadora (Baptista & Campos, 2007). Esta investigação enfatiza a elucidação e a busca por conhecimento dos processos que constituem a subjetividade (González-Rey, 2002).

Uma forma particular de investigação qualitativa é aquela que emprega o método psicanalítico (Turato, 2003). O conhecimento em psicanálise surge da investigação dos processos mentais inconscientes que emergem da situação clínica; assim, o método de investigação e o tratamento são produzidos paralelamente na práxis (Sander, 2002). Para Caon (1994) o campo, objeto e método de pesquisa dão singularidade para o pesquisador psicanalítico. Entende-se por "campo" o inconsciente, por "objeto" a perspectiva do enfoque na busca do inconsciente e por "método", a via de acesso e maneira de se aproximar do inconsciente.

Como estratégia metodológica, esta pesquisa empregou o estudo de caso. Para Fédida (1991), em psicanálise, o caso representa uma teoria que nasce, ou seja, há possibilidades de transformação da compreensão do que está além da psicologia da consciência. Dessa forma, o caso passa a existir diante de uma atividade de construção. Nesse sentido, D'Agord (2000) enfatiza que ao se pensar em pesquisa psicanalítica é difícil imaginar outra maneira que não seja por meio da construção, pois o objeto da psicanálise, o inconsciente, não surge de forma direta para o observador, mas por meio do não-dito.

Guimarães e Bento (2008) ressaltam que o caso clínico se trans-forma em um estudo de caso quando é apresentado publicamente, isto é, sai do registro da experiência clínica particular do analista e passa para a experiência compartilhada, incrementando a psicopatologia: "pode-se então definir 'estudo de caso em psicanálise' como sendo a escrita da clínica analítica, do 'pathos', incluindo, além da sua mera descrição, a sua teorização" (Guimarães & Bento, 2008: 93). Nesse sentido, é possível afirmar que os relatos de caso não servem apenas como meras ilustrações clínicas da teoria, mas como possibilidades de construí-las, aceitá-las ou refutá-las.

Participantes e Procedimento

Foram realizados estudos de caso com três meninos, de 6, 8 e 9 anos, diagnosticados com encoprese. Eles foram atendidos na clínica-escola do curso de Psicologia de uma universidade pública do estado de São Paulo. Cada criança passou por um processo de triagem interventiva, ou seja, uma avaliação psicológica que realiza intervenção como holding, assinalamentos e interpretações ao longo da aplicação dos instrumentos de diagnóstico (Mishima, Pavelqueires, Parada & Barbieri, 2009). Esse processo de triagem envolve quatro sessões: entrevista com os pais da criança, sessão lúdica com a criança, entrevista familiar e devolutiva separadas com a criança e os pais. Esses procedimentos permitem alcançar uma visão holística do que ocorre com a criança inserida em seu mundo familiar a fim de compreender o que está associado à formação do seu sintoma, possibilitando um melhor diagnóstico e encaminhamento (Barbieri, 2008). Todas as etapas do projeto de pesquisa foram autorizadas pela coordenação da clínica-escola e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. A família e os participantes foram assegurados quanto ao sigilo dos dados e preservação de seu anonimato.

 

RESULTADOS: CASOS CLÍNICOS

Caso 1 - Gabriel

Gabriel tinha 6 anos, era filho único e morava com a mãe, a avó materna e uma tia. Na entrevista, a mãe relatou que ele era uma criança teimosa, sem limites e que não aceitava ser contrariado. Apresentava encoprese primária e, quando evacuava na calça, muitas vezes ficava sujo durante longo tempo, até que alguém percebia e ia dar banho nele. Para a mãe, ele defecava na roupa porque não queria parar de jogar videogame para ir ao banheiro. O pai, que morava em outra cidade, era viciado em drogas e a criança não passava muito tempo com ele, somente os finais de semana. Gabriel chupava o dedo principalmente quando queria dormir e queria leite. No contato com a criança percebeu-se timidez no início, mas depois ela ficou mais à vontade e passou a brincar com armas e bombas. Repetiu diversas vezes uma luta entre o bem e o mal, sendo que ao final o bem vencia. Ao brincar com bonecos, ela mostrou descuido em relação ao bebê, que é cuidado por outra criança. O momento em que ficou mais agitada foi quando derrubou tinta preta no chão, precisando ser contida pela psicóloga.

A criança vivia em um ambiente pouco confiável, em que o pai passava grande período de tempo ausente, e a mãe e a avó disputavam entre si o papel materno e os cuidados com a criança. Contudo, nem uma nem outra pareciam disponíveis afetivamente para satisfazer as necessidades do menino. Sentindo-se no meio de um campo de batalha, o seu desenvolvimento era freado. Gabriel evidenciou inseguranças importantes em relação à integração das pulsões agressivas e destrutivas na sua personalidade, que revelaram o seu temor de que, diante do seu descontrole, a "destrutividade" preponderasse e, assim, o "mal tomasse conta", como ilustrado por sua inquietude ao derrubar o pote de tinta. O fato de na brincadeira o bem ter vencido o mal aludiu a certo nível de confiança necessária para a criança expressar as pulsões de maneira mais controlada e, assim, desenvolver a capacidade para o envolvimento e aprimorar os processos simbólicos, embora as bases dessa confiança fossem ainda frágeis. Também foi possível verificar a insuficiência do holding fornecido pela mãe, ilustrada em uma de suas brincadeiras em que as crianças caíam do colo da mãe e eram cuidadas por outra criança.

A questão da indiscriminação entre os papéis da avó e da mãe evidenciou-se na sessão familiar, já que a avó se sobrepunha à mãe e esta, quando era chamada pelo filho, apresentava intensa insegurança para atendê-lo, mostrando-se infantilizada. Diante de uma mãe fragilizada, dirigir contra ela o ódio era sentido pela criança como algo perigoso. Assim, havia temor de expressar a agressão por medo de afetar o outro e desagradar e magoar as figuras cuidadoras. Tal quadro era ainda agravado tanto pela ausência física do pai quanto por sua falta de solidez afetiva, que impediam que ele se oferecesse à criança como modelo de integração ou de objeto indestrutível. Diante dessa situação, Gabriel permanecia angustiado quanto aos efeitos de seu ódio junto àqueles a quem amava e, com isso, a ansiedade comprometia a capacidade simbólica (Klein, 1932/1969) e o brincar se tornava compulsivo (Winnicott, 1971/1975), já que nele se mantinha uma estreita proximidade entre o objeto original e o símbolo. Com isso, Gabriel expressava sua necessidade de ter seu próprio espaço e ser empaticamente compreendido e acolhido na expressão de sua agressividade para que ela não se transformasse em violência, perda e culpa aterradoras, mas se tornasse terreno fértil para a aparição do envolvimento e da moralidade.

Caso 2 - Elias

Elias, de 8 anos, tinha um irmão mais novo de 4 anos e morava com ambos os pais. No primeiro encontro, os pais mostraram-se colaboradores, fornecendo muitas informações sobre a criança. A queixa principal foi encoprese, mas houve outras como falta de atenção e falar muito alto. A mãe dominou a sessão, apesar da participação paterna. Ela relatou proibir os filhos de trancar o banheiro, sendo que permanecia atrás da porta quando Elias entrava nele. Em suas palavras, era preciso "saber o que estava acontecendo lá dentro". Este comportamento também ficou evidente em relação à alimentação das crianças, pois ela enfatizou controlar tanto os horários quanto o tipo de alimento que ingeriam. A mãe exercia o controle de tudo o que entrava e o que saía dos filhos. Como forma de reassegurar o cuidado, não permitia que as crianças brincassem fora de casa, organizando uma família com funcionamento endógeno e isolado, extremamente temerosa às influências externas. Além de se revelar bastante insegura, a mãe também se mostrou necessitada de aprovação quanto às suas qualidades maternas. Os cuidados oferecidos à criança eram restritos às necessidades concretas do menino com a mãe, preocupando-se em oferecer uma alimentação saudável e uma rotina regrada. Com isso, ela se mostrou muito invasiva, pouco tolerante ao erro e insegura quanto ao desenvolvimento do filho, inquietações estas decorrentes das dúvidas que nutria sobre si mesma e as crianças quanto à capacidade de manter a sua integridade física e emocional, ou seja, sobre a bondade dos seus objetos internos.

Elias, ao contar detalhes de seus personagens preferidos de desenhos animados, revelou a opressão que sentia em seu relacionamento com a mãe por meio do personagem "Gosma" do desenho Ben 10, tido como seu preferido, que não podia existir sem o "minidisco voador" que o controlava. Sua reação a este domínio ocorria através da agressividade, expressa simbolicamente na descrição dos ataques e armas dos personagens favoritos: o toque ácido e corrosivo do personagem "Gosma", quando seu disco voador ficava vermelho, e a "Privada" que atirava água quente em seus inimigos.

A família mostrou-se fechada, com altos níveis de exigência e medo de perda do controle, particularmente quando em contato com o mundo social. Assim como a mãe, Elias possuía dificuldade em expressar suas emoções: era muito obediente, pouco espontâneo e temeroso de desagradá-la. Nesse contexto, ele se identificava com o olhar que a mãe lançava sobre ele, o de que ele era alguém prestes a ser assaltado pela destrutividade inerente a si, caso não fosse dominado por ela. Com isso a ambivalência permanecia não elaborada. Diante do controle materno avassalador, quando Elias escapava da inibição apelava para expedientes antissociais, trapaças para livrar-se das regras e imposições que, se lhe conferiam um sentido de existência, por mínimo que fosse, também constrangiam o seu desenvolvimento emocional. Com isso, embora seu brincar revelasse certo desenvolvimento da função simbólica, permanecia comprometido pela inibição da espontaneidade.

Caso 3 - Paulo

Paulo tinha 9 anos, morava com os pais e uma irmã de 14 anos. Apenas a mãe participou da entrevista inicial, pois o pai "trabalhava demais". Ela se apresentou com uma postura controladora, excessivamente correta. Ela era pouco tolerante ao erro e tendia a negar as suas próprias angústias e agressividade, o que lhe dificultava transmitir confiança e responsabilidades para o filho. Paulo tinha um modo de funcionamento semelhante. Além disso, tinha dificuldade em aprender por que, para ele, errar era muito angustiante; dessa forma, evitava situações que exigiam novas habilidades. Consequentemente, a criança era muito contida, não tinha espaço para si e vivia de modo a tentar se controlar. Na sessão lúdica, ela demonstrou intensa ansiedade e, depois de muito silêncio, desatou a falar, de maneira verborrágica (diarreia verbal). Sua fala era sem pausas e concreta, referindo-se a objetos e preços de produtos, interesses de caráter anal. A criança parecia frágil, como se fosse mais nova. Além disso, apresentou insegurança e medo de situações que fugiam ao seu controle: não conseguiu brincar durante a sessão lúdica, mostrou-se rígida e tímida, com dificuldade de se expor.

O ambiente familiar em que a criança vivia tendia a reprimir os afetos, particularmente os agressivos, o que impedia a expressão espontânea. A postura de toda a família era de controle sobre Paulo, principalmente por parte da mãe. Não havia espaço para o lúdico dentro desse ambiente. Os sintomas apresentados pela criança pareciam se relacionar com a dinâmica da própria mãe, ou seja, baixa tolerância ao erro, tendendo a um hipercontrole, e o desejo em seguir uma norma à custa da espontaneidade, dinamismos estes que comprometiam a elaboração da ambivalência. Esta era também a dinâmica de toda a família. A criança mostrou preocupação em relação a suas dificuldades, relatando que se sentia frágil e sozinha. O sintoma de encoprese secundária, com início aos quatro anos de idade, pode ser entendido como uma submissão às normas sociais, porém sem integração na personalidade. O controle esfincteriano não pôde se manter ao ingressar na escola, pelas novas exigências que aumentam a angústia. A partir de então, o garoto acabou oscilando entre o controle excessivo e o acting out (encoprese, postura opositora). A capacidade simbólica, embora presente, mostrou-se bastante empobrecida.

 

DISCUSSÃO

Nos três casos verificou-se a existência de deficiência na função de continência afetiva (holding), seja pela rigidez de uma mãe que isolava os afetos (casos Elias e Paulo), com dificuldade em integrar os impulsos destrutivos e amorosos, seja por uma deficiência dela em assumir a função materna e ajudar a criança na aquisição da capacidade de simbolização (caso Gabriel). Assim, nos três casos, tornou-se patente a dificuldade das mães de tolerarem a ambivalência presente nas relações interpessoais e o receio de que o ódio subjugasse o amor e destruísse o objeto (seja ele o filho ou ela própria). Assim, as mães viam a si mesmas como altamente fragilizadas, necessitando o tempo todo de um controle excessivo da própria "maldade" que, em sua visão, confundia-se com espontaneidade. Essa imagem de si era dramatizada na relação com os filhos (concebidos por elas do mesmo modo como viam a si mesmas), sendo que eles se tornavam sujeitos a um controle excessivo por parte delas (casos Paulo e Elias) ou tinham a sua educação e manejo delegados a um outro, que deveria saber melhor o que fazer a seu respeito (caso Gabriel). Com isso, ao invés de desenvolver uma moralidade pessoal, a criança ficava paralisada pelo medo e receio de destruir o objeto; nesses termos, o alcance da preocupação e da moralidade genuínas permanecia comprometido.

O hipercontrole interno e externo a que estas crianças estavam submetidas (e que alternava com a atuação, principalmente no caso de Gabriel) paralisava a capacidade de simbolização, tornando-a bastante limitada, uma vez que a espontaneidade, que é o seu fundamento, permanecia soterrada. Com isso, havia poucas chances para usar objetos diferentes, e o símbolo e o simbolizado mantinham-se muito próximos um do outro, situação que tornava o brincar angustiante e, por vezes, compulsivo, embora parcialmente capaz de autoexpressão.

O processo de simbolização possibilita conhecer experiências emocionais intensas da realidade psíquica e lidar com elas em pensamento, já que, ao atribuir a um objeto do mundo interno uma forma simbólica, permite que ele assuma características ligadas aos impulsos amorosos e destrutivos (Klein, 1932/1969). Se isso não ocorre, há dificuldades na integração entre amor e ódio, restando à criança optar pela repressão maciça da agressividade para não perder o objeto de amor. Com isso, a criança sente-se abandonada, sem espaço para ser ela mesma ou apresentar o gesto espontâneo (Winnicott, 1957/1982). Klein e Rivera (1975) sustentam que o comprometimento da simbolização ocorre quando as experiências afetivas (relações de objeto) hostis predominam sobre as boas na realidade psíquica da criança. Winnicott (1979/1993) compreende esse fenômeno como decorrente de uma hipertrofia da capacidade para a preocupação; nesse caso, o comportamento da criança seria exageradamente significado como agressivo ou digno de reprovação pela mãe e a criança se tornaria muito séria, inibida, exageradamente responsável ou, como alternativa, apelaria para o acting-out, que tem o sentido de defesa maníaca. Assim, nos três casos apresentados, o sintoma de encoprese nas crianças pareceu originar-se de uma dificuldade mater-na de integração das pulsões, com o significado corolário de reação diante da intrusão da família, que não acolhia suas necessidades e não permitia a integração do amor e do ódio.

Em suma, temerosas de seu comportamento, que era significado como portando consequências trágicas, a reação das crianças era a de um eterno controle rigoroso das pulsões para proteger o objeto. Com a capacidade de simbolizar prejudicada, o brincar das três crianças tornou-se enrijecido em função da dificuldade delas para criar, serem espontâneas e fazerem uso pessoal dos objetos. O brincar, longe de ser feliz, esteve mais relacionado à compulsão, como maneira de reagir ao ambiente, sendo entremeado pelo uso de defesas como acting-out, contra a angústia causada pela possível emergência da agressividade (Winnicott, 1958/2000).

Essas considerações sugerem a necessidade de um atendimento clínico não apenas para a criança com encoprese, mas também para sua família, para que esta possa lhe oferecer um ambiente estável, seguro e indestrutível para acolher a sua espontaneidade e criatividade. A dinâmica familiar existente nos três casos, responsável por gerar um ambiente que reprimia os desejos e anseios da criança, que não acolhia sua agressão, uma vez que era intolerante quanto à sua agressividade ou que atribuía exageradamente uma conotação hostil para a sua conduta, revelou a fragilidade da autoestima da criança e de sua mãe. Assim, na abordagem terapêutica da encoprese infantil é de suma importância a experiência vivenciada com uma pessoa real, o analista, que pode receber e nomear as experiências emocionais da criança e dos pais que causam angústia e possibilitam o desenvolvimento emocional do grupo familiar.

 

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NOTAS

1 Este trabalho foi apresentado no IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado em Curitiba, de 4 a 7 de setembro de 2010.

 

 

Recebido em 04 de maio de 2010
Aceito para publicação em 20 de julho de 2011

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