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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.2 Rio de Janeiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Do fenômeno à estrutura, da estrutura à domesticação do gozo: os recursos da "foraclusão estrita"

 

From phenomenon to structure, from structure to jouissance's domestication: the resources of "restricted foreclosure"

 

 

Carlos Alberto Ribeiro Costa*

Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Intenta-se, neste escrito, através do debate teórico-clínico, investigar as relações entre os fenômenos psicóticos endereçados aos analistas e os recursos e estratégias singulares alocados por psicóticos na busca por modalidades sustentáveis de sua existência. A hipótese basal deste trabalho é a de que há relação dialética entre fenômeno, estrutura e recursos, permitindo-nos: 1) partir dos fenômenos à estrutura (sendo tais ocorrências índices ou manifestações de uma lógica estrutural: a "rejeição" freudiana, a "foraclusão" lacaniana) e 2) da estrutura às possibilidades de tratar o pulsional - a estrutura lança luz sobre os modos de estabilização, suplência, invenção, etc. Por fim, busca-se propor as noções de "foraclusão generalizada" e "foraclusão estrita" como tentativa de evitar uma perspectiva deficitária da psicose, não replicando, no interior do campo analítico, efeitos de segregação e patologização.

Palavras-chave: psicose; foraclusão; foraclusão generalizada; foraclusão estrita; gozo.


ABSTRACT

It is intended in this writing, through the theoretical and clinical debate, investigate the relationships between psychotics phenomena addressed to analysts and the resources and unique strategies allocated by psychotics in pursuit of sustainable existence's modes. The basal hypothesis of this work is that there is a dialectical relation between phenomena, structure and resources, allowing us to: 1) go from the phenomena to the structure (being this events manifestations or indexes of a structural logic: the Freud's "rejection", the Lacanian's "foreclosure") and, 2) go from the structure to the possibilities of dealing with the instinctual - the structure sheds light on the stabilization modes, stand-ins, inventions, etc. Finally, it is intended to propose the notions of "general foreclosure" and "restrict foreclosure" as an attempt to avoid a deficit perspective of psychosis, not replicating inside the analytical field, segregation and pathological's effects.

Keywords: psychosis; foreclosure; general foreclosure; restricted foreclosure; jouissance.


 

 

Introdução

"Túlio", junto a seu analista, profere emissões vocais muito particulares: suas verbigerações, como que "metalizadas", parecem efetivar não um convite ao enlace, mas, antes, um trabalho mais basilar, um "recorte-cola" operado sobre uma enigmática experiência com a linguagem. Estas "falações" se associam, por vezes, a um comportamento não menos nonsense: a decomposição, por meio de recortes, das figuras presentes nos "livros para colorir". A essas subtrações nas imagens corporais e emissões vocais segue-se a construção, em rabiscos e desenhos, de personagens, dentre os quais a "forma-disforme", nomeada por ele como "Túlio", passa a figurar.

Algo não menos excêntrico ocorre a "Natanael". O "descontrole", a "descoordenação", a eventual falta de domínio das funções excretórias e o papagaiar - traços que angustiam sua mãe - denotam uma relação sui generis com o corpo. Em suas brincadeiras, um elemento não falta, "Olympia". Essa boneca bebê tem pais com os mesmo nomes dos seus; quando ela come, é "Natanael" quem arrota; ao realizar algo, é a Olympia que ele atribui o feito. Ao brincar de arrotar, fazer xixi, vômito e cocô com a boneca, a excitação com essa atividade o faz "batizar" os brinquedos e a mesa em que brinca com a saliva que cai de sua boca.

Aparentemente "impassível" ante aquilo que narra, "Arthur" expõe que "há tempos" - diz ele - "coisas me acontecem": certa vez, prestes a adentrar os portões de sua escola, seu corpo se estilhaçara, "metade para um lado, metade para outro"; segundo conta, ele "está pela cidade": sua "cabeça em Jacarepaguá", seu "fígado na Avenida Brasil", seu "estômago no Méier", etc. Como, então, ir a "só um CAPS" se estava disperso por vários bairros?

Se tais experiências nos sugerem algo extraordinário, para alguns dos sujeitos que se dirigem a nós tais ocorrências permeiam o cotidiano de suas existências, ampliando a esfera do "subjetivo" para além dos estreitos limites da norma. Apostar nessa "ampliação" faz-se não trivial se considerarmos os efeitos hegemônicos globais de patologização alojados pelos manuais diagnósticos estatísticos - cujas categorias majoram a cada edição.

Essa hegemonia, contudo, vem recebendo uma nova onda de críticas, reforçadas a partir das implosões e divisões das quais Allen Frances - um dos líderes da força-tarefa de construção de edições anteriores do manual - é exemplo. Sua insider's revolt sublinha a expansão "fora-de-controle" dos processos deflagrados pela nova edição, o DSM V: "[...] os novos transtornos promovidos tão festivamente por meus amigos poderiam criar dez milhões de novos ‘pacientes'. Visualizei todas essas pessoas, suficientemente normais, sendo capturadas nessa rede excessivamente ampla de diagnóstico do DSM V [...]" (Frances, 2013, p. XIV).

Destarte, partindo da função e lógica explicitadas pelo que é testemunhado e narrado na clínica por um grande número de sujeitos - assim como dos danos empreendidos pelas respostas patologizantes e segregadoras a essas ocorrências -, o presente artigo se propõe a questionar: podem os fenômenos clínicos se mostrar não como motores de patologização ou reproduções normativas, mas como índices dos recursos, sempre singulares para um sujeito, em sua busca por construir formas sustentáveis para sua existência? Buscaremos averiguar, pois, a hipótese de que há conexões relevantes entre os fenômenos psicóticos e as ferramentas a serem utilizadas por esses sujeitos para erigir, artesanalmente, suportes possíveis para sua singularidade. Intenta-se, logo, argumentar que a experiência com esses verdadeiros "artífices" evoca e justifica teorizações que reconheçam o protagonismo relativo a esse "saber-fazer-aí" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 19), ponto de "eclipse" do saber estruturado e dos discursos estabelecidos. Partindo do real que aí se desvela, mister se faz tirar consequências teóricas, éticas e políticas destes ofícios sui generis.

 

Dos fenômenos à estrutura: a lógica subjacente aos acontecimentos psicóticos

Em Secrétaire d'aliéné aujourd'hui (1999), François Sauvagnat esquadrinha algumas raízes do debate sobre as relações entre "fenômenos clínicos" e "recursos" psicóticos, a partir da tradição psiquiátrica que concorreu para a formação de Jacques Lacan. Como atinam Costa e Freire (2010), esse debate permite retomar a justeza e a pertinência ética e clínica do sintagma "secretário do alienado" numa clínica psicanalítica das psicoses: "secretariar o alienado" - tomar "ao pé da letra" o que o louco nos endereça - não impede, como censurou J. P. Falret (1864), que se apreenda o fenômeno clínico, supostamente "deformado" por uma "subjetividade desarrazoada"; antes, é sua condição de inteligibilidade. É nesse contexto que ganha monta a noção clínica de "fenômenos elementares". Acerca desse conceito, Sauvagnat (1999) propõe, na obra de Lacan, algumas acepções - nos deteremos, para fins deste trabalho, em apenas dois aspectos que essa expressão virá assumir.

Em primeiro lugar, "fenômenos elementares" designam a aparição de um "x", ponto de opacidade a ser entendido e "a possibilidade de isolar sintomas que sejam patognomômicos" - característicos de uma formação clínica -, "mesmo que esses sejam eventualmente discretos" (Sauvagnat, 1999, p. 5). Não se trata, aqui, de "fenomenismo" - construção de categorias como constelações de fenômenos que recusa, inclusive, a "redução fenomenológica" em prol da suposta "medicina baseada na evidência". O termo "elementar" evoca um elo lógico, uma relação intrínseca entre "elementos" no interior de um "sistema de referências". Não se trata, tampouco, da descrição siderada de fenômenos excêntricos - postura já criticada, desde os áureos tempos da psiquiatria clássica, por J. P. Falret, como própria ao "narrador" ou "romancista" (1864, p. 110-112) : para além do fetiche pelo empismo e da descrença na palavra e narrativa do louco, há o entendimento de que as posições enunciativo-subjetivas (perplexidade, remetimentos, narrativas, omissões, etc.) são parte não acessória, mas constituinte do fenômeno . Dito de outro modo, tanto a principal via pela qual o louco endereça suas construções - as narrativas -, quanto aquilo que suas palavras revelam demonstram uma relação "elemento-sistema", congruência relativa à incidência da linguagem:

[...] quanto à realidade que o sujeito confere a esses fenômenos, um caráter muito mais decisivo que a sensorialidade por ele experimentada ou a crença que ele lhes atribui é que esses fenômenos, sejam quais forem - alucinações, interpretações, intuições -, e não importa com que alheamento e estranheza sejam vividos por ele, todos o visam pessoalmente: eles os desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco e leem nele, assim como ele os identifica, interroga, provoca e decifra. E, quando vem a lhe faltar todo e qualquer meio de exprimi-los, sua perplexidade nos evidencia nele, mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a loucura é vivida no registro do sentido (Lacan, 1946/1998, p. 166).

Considerar, com Lacan, as relações entre psicose e linguagem implica considerar a narrativa e demais construções psicóticas, os acontecimentos clínicos e a própria loucura (posição subjetiva manifesta através dos fenômenos "vividos no registro do sentido") também como efeitos do sistema subjetivo-linguageiro - a estrutura da linguagem e seus registros real, simbólico e imaginário.

Isso nos permite pensar, em segundo lugar, que esses "sintomas mínimos", como elementos, manifestações de alterações no sistema-linguagem - são modos de apreender essa estrutura, formas "igualmente capazes de dar indicações referentes aos modos de estabilização que são cogitáveis para um dado paciente" (Sauvagnat, 1999, p. 5). Vale dizer, se os "fenômenos elementares", como "fenômenos de linguagem", evocam remanejamentos na estrutura da linguagem, os "sintomas clínicos" são não apenas índices patológicos, mas pistas dos recursos dispostos para o louco consonantes com a lógica das alterações estruturais. Ora, nos anos 50 do século passado, Jacques Lacan traduzirá essa conexão lógica, explicitada pelos fenômenos clínicos psicóticos como "foraclusão", operação psíquica relacionada à constituição da "psicose". Nesse passo do fenômeno à estrutura, como apreender essa operação?

 

O conceito de foraclusão do Nome-do-Pai

Lacan constrói o conceito de "foraclusão do Nome-do-Pai" ao reler, nos anos 50 do século passado, a noção teórico-clínica freudiana de Verwerfung ("rejeição") a partir da hipótese-basal que o guia naquele momento de seu ensino, a de que o "inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1957/1988, p. 498).

Num contraponto entre os "mecanismos de defesa" psíquicos ante a "ideia incompatível" e a "quota de afeto" a ela referente - excitação excedente vivida como "experiência de desprazer" -, a operação de "rejeição" nas psicoses difere do mecanismo neurótico de "recalque", sendo aquela, Freud no-lo diz, um modo "poderoso de defesa" (1894/2006, p. 63-64). Na rejeição psicótica, a ideia é tratada como "jamais ocorrida" (Freud, 1894/2006, p. 63-64), desconectando-a de sua dialética interna - seja aquela inerente à consciência (lógica clássica), sejam as relações "simbólicas" de condensação e deslocamento entre o recalcado e a formação sintomática -, contrastando-a em relação às demais ideias subjetivadas como "próprias" ao sujeito. Desse modo, o retorno daquilo que foi rejeitado não coincide com o retorno do recalcado; não se trata no primeiro caso de uma ideia dialeticamente inscrita no arcabouço de traços articulados no aparelho psíquico, mas de um retorno dessa ideia desde "fora" (alucinação, delírio de observação, perseguição, etc.), extrínseco a essa dialética.

Ao realçar as diferenças esboçadas por Freud, desde as relações inconsciente-linguagem - na releitura da "condensação" e "deslocamento" freudianos como "metáfora" e "metonímia" -, Lacan tenta elucidar a questão da constituição subjetiva, sublinhando, no processo de estruturação do sujeito, as vicissitudes de inscrição, no sistema linguageiro inconsciente, de um traço - a Bejahung - ou a rejeição dessa inscrição - a Verwerfung:

Previamente a qualquer simbolização - esta anterioridade não é cronológica, mas lógica -, há uma etapa, as psicoses o demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização não se faça [...]. Assim, pode acontecer que algo de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização, e seja, não recalcado, mas rejeitado (Lacan, 1955-1956/1988, p. 97).

Se as leis da linguagem fornecem a Lacan coordenadas para apreender, no seio da operação analítica, os registros simbólico, real e imaginário em sua determinação do sujeito, as relações entre o ser falante e esse formalismo são complexas: "o programa que se trata para nós, portanto, é saber como uma linguagem formal determina o sujeito. Mas o interesse de tal programa não é simples, já que supõe que um sujeito só o cumprirá colocando algo de si" (Lacan, 1957/1988, p. 47).

Destarte, a depuração das leis que regem a linguagem - que explicitam que o significante (traço e elemento da sintaxe linguística) opera independentemente da consciência do falante - apenas entra em jogo em conformidade a um primeiro passo, que "terá sido" dado pelo sujeito. Perante a sintaxe que a precede, a criança é convocada a tomar posição; frente à zorra de significantes, o sujeito pode advir de um "sim" - a Bejahung - que o inscreve nessa sintaxe, passo que o aliena ao campo do Outro e negativiza seu ser, instaurando, com isso, uma perda que será o motor de seu engendrar na linguagem. Por outro lado, desde a conjuntura que se lhe apresenta, pode advir uma rejeição - a Verwerfung - que, recusando a inscrição de uma perda - ou a própria alienação na linguagem (como entendem alguns ser o caso do autismo) -, constitui um objeto como extrínseco.

Tanto para Freud quanto para Lacan, o lugar ocupado pela criança com relação ao Desejo materno é a base para que o "sujeito" aceda à ordem simbólica e inscreva-a como tal. Lacan reconhecerá, nessa descoberta freudiana, o que há de crucial no papel desempenhado pelo pai. Trata-se, ali, de uma intervenção que, por seu caráter simbólico, transcende a função biológica do genitor e que, também, não pode ser resumida às imagens do pai - sejam aquelas veiculadas nos mais diversos momentos por que passa a cultura ou, ainda, nas elaboradas e secretas fantasias de filiação que constrói o neurótico.

O pai é, portanto, um nome, uma função lógica, apresentada por quem se ocupa mormente da criança, atribuída a um alguém que só pode comparecer como suporte dessa função. Dito em outras palavras, o pai que importa no processo de estruturação para o sujeito é aquele que surge como veículo da castração, como alguém que não se confunde com a lei, mas que a representa. Tal operação veicula não - tal qual busca crer o neurótico - que o pai seja o detentor do falo, mas que o falo, enquanto significante crucial é por si só um efeito de corte, algo que está sempre "alhures" em relação ao falante (Lacan, 1955-1956/1988, p. 232).

A metáfora paterna - substituição significante - oferece às idas e vindas da mãe um lugar simbólico onde o enigma possa se alojar. A construção desse lugar simbólico, a inscrição "de um Outro como lugar da lei" (Lacan, 1956-1957/1988, p. 589), encontra, nos anos 50, uma fórmula:

 

 

A inscrição do Nome-do-pai, como um significante privilegiado no registro simbólico, evoca a significação fálica como significado no registro imaginário.

Porém, se nos anos 50 Lacan privilegia, com a metáfora paterna, o atrelamento significante-significado, nos anos 60 será em torno do objeto a - objeto "negativizado" em relação aos objetos empíricos, emergido a partir da perda simbolicamente alojada pela castração e "causa do desejo" - que a incidência paterna se fará sentir no registro do real. O falo, evocado, a princípio, como sentido ou objeto agálmatico pela operação do pai sobre o Desejo materno, deixa de ser tomado como imaginarizável no campo da realidade e se torna insígnia de um corte, "- φ". Desde esse remanejamento pode-se apreender como a castração permite, num efeito de posterioridade, que objetos como o seio, as fezes, o olhar e as vozes sejam, também estes, negativizados, num processo que Lacan chamou de "maturação do objeto a" (Lacan, 1963-1964/2005, p. 282).

Desse modo, a operação da castração evoca, em sua efetividade lógico-simbólica, aquilo que há de mais heterogêneo na diferença sexual: não a presença ou ausência do falo como órgão ou objeto concreto, mas o campo das relações possíveis com o objeto pulsional, extrínseco ao sujeito e inatingível no campo da realidade. É desde essa negatividade que Lacan, visando essa ausência do falo no plano positivo - assim como sua "função mediadora" na relação com os objetos orais, anais, escópicos e vocais - o denota através da expressão "- φ".

Se isso é assim nos casos de neurose, nas psicoses a relação com o gozo se dá por uma via diversa daquela condicionada pelo operador fálico. Por consequência, a castração e a diferença sexual serão, para o louco, balizadas por um Outro advindo no registro do real, prescindindo da metaforização e da mediação pelo véu do recalque. O psicótico será, então, o sujeito que partilha das consequências desse modo muito particular de se posicionar na linguagem. Lacan proporá, a este último, o nome "foraclusão do Nome-do-Pai".

Dessa forma, no plano pulsional, com a rejeição da castração, o falo se faz homogêneo aos demais objetos da demanda do Outro. Portanto, ele resta permutável em relação aos objetos do campo da realidade, dentre os quais o eu encontra lugar privilegiado. Em contrapartida ao que ocorre na "maturação do objeto a", Lacan dirá em 1967 que o psicótico traz "o objeto no bolso" (Lacan, 1967), o que traz conseqüências para o louco no que tange aos objetos voz, fezes, seio e olhar. Haverá, pois, que se constituir conectores inéditos entre Outro primordial e sujeito.

 

Foraclusão restrita e foraclusão generalizada

A despeito do rigor e consistência da teorização do conceito de "foraclusão do Nome-do-Pai", erigido nos anos 50, os desdobramentos posteriores da obra de Lacan - principalmente aqueles emergidos a partir das décadas de 60 e 70 - irão relativizar, de certo modo, a postura sintetizada através da famosa frase disposta na sala de plantão de Lacan no hospital de Sainte-Anne, aquela onde se assevera que "Não é louco quem quer". Como pondera Brodsky (2013, p. 12), nos anos 70, pode-se pensar que paulatinamente o axioma "Não é louco quem quer" passará a ser substituído por outro, quase diametralmente oposto, proferido por Lacan na conferência intitulada em Outros escritos como "Talvez em Vincennes": "Todo mundo é louco". Como apreender esse deslocamento? Qual sua relevância e desdobramentos éticos, políticos e clínicos?

Marca nítida dessa guinada, o Seminário Mais, ainda (Lacan, 1972-1973/1982) traz à baila um realojar das teorizações acerca das relações entre sujeito, significante, sentido, alteridade e gozo. De um lado, Lacan explicita uma função mais primordial do significante do que a de se apresentar como dialeticamente articulado e ter efeitos de significado: ser "causa de gozo" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 11). A tese do "inconsciente articulado como linguagem" é, pois, relativizada: a constituição de uma estrutura inconsciente análoga a uma linguagem ganha o estatuto de contingência, tornando-se um efeito possível do saber-fazer com "alíngua" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 59) - enxame desarticulado de significantes, cuja função primordial é instaurar, por sua incidência sobre o "falasser", o gozo. Por outro lado, ganha prevalência um novo axioma: "Não há relação sexual" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 12). Essa asserção - que aponta uma incompletude inerente ao registro simbólico, a falta de um significante último para "A" mulher, que garantiria a cópula simbólico-pulsional entre os sexos - incidirá limitando efeitos até então atribuídos à função fálica. Se Lacan definira o falo, em 1960, como "o significante do gozo" (Lacan, 1960/1996, p. 838), as questões do "gozo feminino", do objeto "causa", do gozo "místico", do gozo relativo ao "empuxo psicótico à mulher", etc. apontam para um mais além, limite de simbolizar todo gozo. Mesmo nos casos em que a constituição subjetiva é balizada pelo falo, há algo que resta extrínseco ao registro simbólico e que retorna como questão para um sujeito.

Esse momento das teorizações de Lacan sobre as relações entre significante e gozo explicita o contraste com as construções advindas nos anos 50, momento marcado pela hipótese da estrutura de linguagem do inconsciente: ali, o ato de fala e a estrutura significante alojavam a possibilidade de uma mediação entre os sexos pautada numa lógica da comunicação e busca de reconhecimento pelo Outro. Proferir "Tu és minha mulher" é, pelo ato performativo, receber, nessa relação mediada pela malha simbólica, uma mensagem "sob a forma invertida": "sou teu homem". Nesses termos, significante, sentido e gozo se acoplariam num encontro não faltoso com um real que, ainda que não simbolizado, nada dizia ser "não simbolizável".

A partir dos anos 60 e 70, com a mudança de estatuto do real de não simbolizado, um "real sem fissura" (Lacan, 1954-1955/1985, p. 128) para "impossível de simbolizar", a comutatividade entre sujeito e outro, a partir do simbólico, padecerá de um resto, uma opacidade que se oporá a essa dialética e de seu retorno para todo sujeito, opacidade essa que repercutirá sobre a acepção "clássica" do conceito de foraclusão - retorno no real daquilo que é "abolido no simbólico": "É certo que Lacan pensou esta última [a estrutura da foraclusão] a propósito da psicose e do Nome-do-Pai, mas no fundo essa não é senão uma teoria da foraclusão restrita" (Miller, 1998, p. 378). Num jogo análogo à diferenciação einsteineana entre "relatividade estrita" e "relatividade generalizada", Jacques-Alain Miller propõe que a mudança de estatuto do real e do sexual ao longo da obra de Lacan permite expandir a estrutura da foraclusão dos casos específicos de psicose para as demais estruturas clínicas:

Se entende, desse modo, a foraclusão, que não é apenas simplesmente o não há, não há Nome-do-Pai, mas sim um "rechaço no real" [...] nesse sentido, sustentar que não há relação sexual - há pouco assinalei que isso teria o valor de uma foraclusão - implica correlativamente uma relação do simbólico com o real (Miller, 1998, p. 380).

Na passagem entre a "foraclusão restrita" - que recai sobre um objeto específico, o Nome-do-Pai e o operador fálico - e a "foraclusão generalizada" - em que algo impossível de simbolizar, rechaçado no simbólico, retorna para todos - há, de um só golpe, a remissão da psicose como um déficit - "não há Nome-do-pai": o próprio Nome-do-Pai resta como uma das possíveis formas de sinthoma - laço "tetrádico", posto que, como um elo a mais, opera um enlace entre os três registros do real, simbólico e imaginário, tendo efeitos sobre a "domesticação do gozo" (Miller, 1998, p. 381):

Quando o Nome-do-Pai está estabelecido, o efeito da significação fálica é o de domesticar a intrusão do gozo. A consequência disso para o modo generalizado de foraclusão - o que implica a função phi, quando se trata não apenas de psicose - é que existe para o sujeito um sem nome, um indizível. A questão, então, é saber mediante que função esse sem nome resulta domesticado. Dado que o rechaço do gozo se produz em todos os casos, a questão é saber o que o domestica. Pois bem, o sintoma leva a cabo essa contenção. Por isso, a função do Pai é a função do sintoma.

O remanejo do Nome-do-pai em relação ao sinthoma e ao gozo - seu "contingenciamento", seja na neurose (posto que há, também nesse caso, retorno de algo do gozo não domesticado pelo falo simbólico), ou na psicose (pelo imperativo de constituir conectivos alternativos ao fálico) - implica, numa clínica do "caso-a-caso", repercussões relevantes:

Penso que, em cada caso, o que devemos nos perguntar não é se o nome-do-Pai está ou não foracluído, porque, como vemos, os terrenos da foraclusão são um tanto amplos. Creio que o que orienta nossa clínica e nossas intervenções é nos perguntarmos sempre: o que domestica o gozo? E quando o gozo não está domesticado nos perguntamos: o que podemos fazer, como analistas, para que um sujeito possa inventar essa função de domesticação do gozo, que na neurose é exercido pelo Nome-do-Pai (Brodsky, 2013, p. 29).

É na tentativa de alojar encaminhamentos a essas questões que esse escrito busca sustentar sua posição. Como veremos, é a experiência clínica, num dúplice movimento que vai do fenômeno à estrutura, e da estrutura aos recursos para a domesticação do gozo, que se poderá apreender aquilo que se desvela na clínica como índice dos recursos, sempre singulares, dispostos pelos sujeitos para tratar o pulsional e construir formas sustentáveis de existência.

Recursos da "foraclusão estrita" para o tratamento do pulsional

1) A via delirante:

Se na foraclusão estrita há a rejeição da castração e da mediação fálica na relação entre sujeito, gozo e alteridade, a psicose tem recursos próprios para tentar equacionar o efeito primordial do significante sobre o falante de operar como "causa de gozo". O monumental testemunho que Daniel Schreber delega à alteridade - suas Memórias de um doente dos nervos (1903/1984) – permite ilustrar as potencialidades e limites da via delirante para, a seu modo, tentar lidar com a catástrofe libidinal que se manifestara, para ele, numa série de fenômenos como as vivências delirantes, alucinações, dissoluções da imagem de si e do mundo.

Em suas Memórias - construídas em oito anos de trabalho delirante -, Schreber atribui as alterações vividas em seu mundo libidinal a um evento na cadeia de gerações: numa era passada, um Flechisig - sobrenome do médico que dele cuidara quando de sua primeira internação (tema de delírios erotomaníacos) - cometera "assassinato de alma" contra um membro da família Schreber. Nessa "montagem" feita com fragmentos de sua história, Schreber relata ser tal assassinato uma verdadeira transgressão da "Ordem do mundo", um crime em escala cósmica. Desde então, caberia a ele, como engrenagem insubstituível na "Ordem do mundo" - posto que Deus dele precisava, pois "não conhece o homem vivo" (Schreber, 1903/1984, p. 211) -, restaurar tal "ordem".

Para além da nomeação e inscrição de experiências numa rede narrativa, e da construção de um significado para as vivências enigmáticas, o processo de "construção delirante" de Schreber parece expor uma tentativa inédita de domesticar o pulsional, através de uma "sexuação delirante". Como parte do processo de transformação em "mulher de Deus", cuja função principal seria a restaurar a ordem cósmica, Schreber, ao passar pela "emasculação", era passível de viver estados de gozo masculino e feminino, cada um compreendendo uma lógica, sentido e satisfação próprias: "É surpreendente saber que Schreber faz distinção entre um estado de beatitude masculino e outro feminino. O estado masculino de beatitude era superior ao feminino, que parece ter consistido principalmente numa sensação ininterrupta de voluptuosidade" (Freud, 1911/2003, p. 46).

As construções delirantes emergem, assim, como recursos que permitem: 1) simbolizar a catástrofe libidinal anterior (irrupção, concomitante a poluções noturnas, da ideia delirante "como seria belo ser uma mulher e ser submetida ao coito"; experiências de dissolução do mundo e da imagem de si, ligadas ao desinvestimento libidinal; etc.); 2) construir estratégias de mediação com a alteridade (o próprio Deus se submeteria à "Ordem do mundo"); e, 3) domesticar o gozo - sexuação não homóloga à partilha fálica entre os sexos, mas experiência de emasculação, livre trânsito entre os diferentes estados de beatitude masculino e feminino:

A emasculação, agora, não era mais uma calamidade; tornava-se "consoante com a Ordem das coisas", assumia seu lugar numa grande cadeia cósmica de eventos e servia de instrumento para a recriação da humanidade, após a extinção desta. [...]. Por esse meio, fornecia-se uma saída que satisfaria ambas as forças em contenda. Seu eu encontrava satisfação na megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejo avançava e tornava-se aceitável (Freud, 1911/2006, p. 67).

Não seriam as Memórias de Schreber um testemunho de como os fenômenos por ele vividos são, a um só tempo, imanentes à rejeição, no nível do aparelho psíquico, da castração, e, também, uma tentativa de resposta do louco em relação ao pulsional, à linguagem e à alteridade - através da via delirante balizada por significantes como "Ordem do mundo", "Mulher de Deus" e "emasculação", via, como pontuara Lacan, "transexual"? (Lacan, 1959/1998, p. 575). De todo modo, nem o modo de relação com o "pulsional", a "linguagem" e a "alteridade", nem, tampouco, os próprios "pulsional", "linguagem" e "alteridade" são os mesmos, caso se trate ou não de casos de "foraclusão estrita": a via delirante, ao situar o gozo no lugar de um Outro real - não apenas o deus schreberiano, mas o Outro perseguidor, influenciador, traidor, etc. - alocam o psicótico como alvo libidinal, aquele que traz "o "objeto a" no bolso" (Lacan, 1967).

Há, portanto, a possibilidade de efeitos da conjuntura foraclusiva como o delírio, por sua homologia com as alterações estruturais, munirem ferramentas para a domesticação do gozo, produzindo uma estabilização. Assim, se já para Freud o delírio é tomado como uma "tentativa de cura" (Freud, 1911/2006, mister se faz, para nós, psicanalistas, apreender outras modalidades de tratamento do gozo nos casos de foraclusão estrita.

A "invenção psicótica" e os "acontecimentos de corpo"

Em "O aturdito" (1973/2003), Lacan chamara a atenção para a relação problemática do esquizofrênico com seus órgãos e corpo, relação esta para a qual o recurso aos discursos estabelecidos se mostra estratégia não efetiva.

Para o ser falante, que, segundo Lacan (1973/2003, p. 562), traça sua relação com o corpo desde a esfera do "ter" e não do "ser", essa "falta a ser o corpo" é tratada pelo recurso ao que Lacan denomina "significantes primordiais da cultura", significantes que dão não "uma solução", mas um campo de referências a partir do qual o falante deverá construir sua resposta. Não é algo como o que ocorre ao pequeno Hans quando, atingido pelo "x" que é introduzido pelas manifestações de seu "fazedor de xixi", ele utiliza, dentre os recursos presentes na cultura, os dizeres de seu pai, mesmo a psicanálise, para tentar simbolizar tal órgão que mostra discrepâncias com a imagem até então constituída de seu corpo? Ora, objeto "a", libido, linguagem e falo são "órgãos fora do corpo"; advindos desde o discurso do Outro, antecessor lógico do sujeito, eles transbordam a relação, supostamente evidente, com a imagem corporal.

A esquizofrenia põe também em xeque, por outra vertente, essa suposta coincidência entre sujeito e imagem corporal. Como pontuara Miller em "A invenção psicótica" (2003, p. 8): "Na esquizofrenia, os órgãos passam fora do corpo no sentido de que eles ganham vida, têm vida própria, e cumprem seus papéis sozinhos". Para ilustrar tais efeitos, ele cita o caso do paciente brasileiro autointitulado "cabine de telefone sem telefone", em sua busca por "reintegrar no corpo o ‘órgão fora do corpo'", através de anéis, faixas, etc., de modo a erigir "outros meios simbólicos para reunificar o corpo e sustentá-lo, e ali, de fato, sem estar num discurso estabelecido (Miller, 2003, p. 8)

As invenções corporais, que se diferenciam da via delirante paranoica - caracterizada por situar o gozo no Outro e alojar o objeto "no bolso" do sujeito -, são consideradas invenções por se basearem não em criações ex-nihilo, a partir "do nada", mas num rearranjo dos recursos disponíveis: é desde essa particularidade que o psicótico é chamado a reorganizar essa conjuntura de modo a instrumentalizar, minimamente, seus órgãos. Mas resta ainda discorrermos sobre a questão basal deste escrito, apreender como a invenção psicótica e os acontecimentos de corpo auxiliam a apreender algumas das tentativas de domesticação do gozo nos casos de "foraclusão estrita".

Para apreendermos essas tentativas de tratamento do pulsional, evocaremos, aqui, dois conceitos trabalhados por Jacques-Alain Miller em seu texto "Biologia lacaniana" (Miller, 2004). Nesse escrito, o autor sublinhara o quanto, no último ensino de Lacan, mormente a partir de seu Seminário Mais, ainda (1972-1973), Lacan enfatiza a coincidência entre o sujeito do significante - eminentemente causado pela dimensão formal, vale dizer estrutural do significante - e o ser falante afetado pelo inconsciente. É desde essa coalizão que Miller propõe que a condição do gozo é que o significante afete o ser falante como vivo; ou, ainda, que "a vida é condição do gozo":

O saber no corpo, seu efeito próprio, é o que Lacan chama afeto, em um sentido sem dúvida estendido, generalizado. Ele chama afeto, a partir do seminário XX, o efeito corporal do significante, isto é, não por seu efeito semântico, que é o significado, não por seu efeito de sujeito suposto, quer dizer não todos efeitos de verdade do significante, mas seus efeitos de gozo. O que ele reagrupa sob o termo de afeto, como tal, desarranjando as funções do corpo vivo (Miller, 2004, p. 58).

Mas como essa transformação instaurada pela ação do significante que se inscreve na carne do falasser nos auxilia a lançar luz sobre o trabalho do esquizofrênico sobre o corpo e, mais ainda, como ela colabora para pensarmos esse trabalho em termos de uma tentativa de domesticação de algo do gozo?

Retomemos o paciente brasileiro evocado por Miller em "A invenção psicótica" (2003): esse sujeito busca se vincular a seu corpo através de adereços e da nomeação "cabine de telefone sem telefone". Propomos, para entender como a domesticação do gozo opera nesse caso, retomar a operação que Miller chamara, em "Biologia lacaniana" de "significantização" (Miller, 2004, p. 12). Por esse processo, ele entende o que Lacan várias vezes em seu ensino chamara de "elevação ao significante", processo correlato ao "assassinato da coisa". Com Miller, pensamos ser possível produzir, pela incidência do significante, por exemplo, através da nomeação, "certa anulação da coisa inicial e uma estilização para que se opere a significantização" (Miller, 2004, p. 57).

Miller reconhece, todavia, que o paradigma para essa operação na obra de Lacan é o falo; é o falo que, na estruturação do sujeito barrado, deve ser elevado à "dignidade de significante". Estaríamos nós, então, caindo no circulo vicioso de tentar definir domesticações não fálicas desde o falo? Estaríamos nós utilizando o falo como referência para pensar posições ante o significante que não passam por sua incidência? A resposta a ambas as perguntas, pensamos, é negativa: é uma propriedade do significante, e não exclusividade do falo, apresentar-se como presença de uma ausência; na dimensão simbólica um sinal é caracterizado justamente por representar algo; é nesse sentido, inclusive, que o significante é um sinal que tem a propriedade de representar um sujeito para outro significante.

Destarte, a possibilidade de negativização, de tornar uma presença pura uma "presença-ausência", é uma propriedade do significante. Essa potencialidade imanente ao significante - deflagrada em diferentes suportes para sua operação - encontra surpreendente exemplo naquilo que evoca Miller a partir de "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953/2003). Nesse escrito, Lacan mostra rudimentos da significantização mesmo no reino animal, como no caso do festim das andorinhas com o "peixe simbólico" (Lacan, 1953/2003, p. 277), objeto de necessidade duplamente libertado "do hic et nunc" (aqui e agora) e de sua matéria - "natureza própria" -, transmutado em símbolo em "evanescência":

Ele [Lacan] nos dá em seu discurso de Roma o exemplo detalhado das "andorinhas-do-mar" com o peixe que elas significantizam. Normalmente, as andorinhas-do-mar devoram o peixe chegando mesmo a disputá-lo para devorá-lo. [...] Mas ocorre que se observa uma festa das andorinhas-do-mar que se faz por meio de um peixe que elas abstêm-se de comer: ele se torna o instrumento da festa, e as andorinhas-do-mar passam o peixe de bico em bico. Aí está o que basta dizer que é o peixe festivo, este peixe grupal que já é símbolo, isto é, que se subtrai ao impulso de autoconservação (Miller, 2004, p. 123).

Parece, logo, possível pensar a construção de adereços - aos quais Miller atribui um valor mais simbólico que imaginário - e a nomeação "cabine telefônica sem telefone" - não atrelada a um sistema delirante - como propiciadores, em algum nível, da significantização do real outrora transbordante, efeito volatizante que permite àquele paciente atingir certa estabilização.

Permitiria essa relação significante-corpo lançar luz sobre o caso que abre o presente artigo, o paciente que asseverara estar "pela cidade", sua "cabeça" encontrando-se em "Jacarepaguá", seu "fígado na Avenida Brasil", seu "estômago no Méier", etc? Talvez, essa é nossa aposta, possamos apreender a dimensão de trabalho com o pulsional disposta nessa sintomatologia - e sua correlata tentativa de domesticação de gozo - através de um outro conceito, também apresentado por Miller em "Biologia lacaniana" (2004); trata-se do conceito de "corporização".

Segundo Miller (2004, p. 57), esse conceito "é de alguma forma o avesso da significantização. É sobretudo o significante entrando no corpo". Trata-se, neste último caso, do significante "afetando o corpo do ser falante, [...] espedaçando o gozo do corpo e fazendo salientar o mais de gozar". A negativização aqui, operaria por uma certa desvitalização do vivo, introduzida pela incidência, na carne do falasser, do significante. O corpo, nesse sentido mais cru (daí utilizarmos o termo "carne"), ofertar-se-ia ao significante como uma superfície de escrita, lugar para a sulcagem. Ao traumatizar esse corpo no real - não limitado pelo falo e não imaginarizado - o significante, devido a sua incorporeidade - ou seja, sua não redução ao empírico - instauraria certa negativização e parcialização, daí a noção lacaniana evocada por Miller do corpo espedaçado, daí, também, o trabalho de tentativa de subtração de gozo presente nesse paciente desmembrado pelos bairros da cidade do Rio de Janeiro.

 

Conclusão: a inesgotável riqueza da clínica

Nós nos pusemos, inicialmente, a questão de levantar elementos teórico-clínicos que nos permitissem ponderar se os fenômenos poderiam ser tomados como índice dos recursos do sujeito psicótico em sua busca por construir formas sustentáveis de existência. Tal perspectiva marca ao menos três grandes diferenças em relação à psicopatologia estatística hegemônica, diferenças essas distribuídas nas esferas teórico-metodológica, ética e política:

1) No que concerne à esfera teórico-metodológica, propusemos apreender os fenômenos clínicos como elementos que se articulam segundo uma lógica interna própria - a foraclusão estrita -, não sendo, pois, redutível o diagnóstico ou construção de categorias clínicas a meros arranjos ou constelações de fenômenos;

2) Quanto à esfera ética, ao resgatar a noção lacaniana de "secretário do alienado", reconhece-se, na relação do louco com as construções que ele nos endereça, não o efeito de uma "subjetividade desarrazoada" - que, segundo o veto de J. P. Falret em secretariar o louco, turvaria o entendimento clínico, deformando-o - mas, sim, condição para sua compreensão;

3) Acerca da esfera política, atentamos para a importância, a partir da clínica, da ampliação da subjetividade para além dos estreitos limites da norma, apreendendo-os como modalidades de expressão da singularidade do sujeito em seu saber-fazer com o gozo (o que pensamos permitir equivocar a lógica dos processos contemporâneos globalizados de segregação e patologização).

Mas a que conclusões nos conduz a postura assim assumida em nosso esforço de averiguar as relações entre os fenômenos clínicos e os recursos subjetivos da loucura?

Em primeiro lugar, vimos como a questão da foraclusão e da domesticação do gozo são problemas que se colocam - ainda que de maneiras distintas - para todo ser falante. Dito de outro modo, mesmo as estruturações subjetivas referidas ao Nome-do-pai e ao falo são respostas não-todo efetivas ante aquilo que é abolido no simbólico e retorna no real. A ênfase, assim, não será se é ou não o caso de haver o operador Nome-do-pai - primeira clínica lacaniana -, mas que mesmo o Nome-do-pai é um dos recursos - falho, ressaltemos, como qualquer recurso humano - para lidar com o impossível de simbolizar. Dito isso, pode-se passar, em segundo lugar, a outro campo de consequências: como a foraclusão estrita presentifica maneiras inéditas para domesticar o gozo. Destacam-se, aqui, alguns casos, mais ou menos clássicos na clínica com psicóticos:

1) A via delirante, denominada por Lacan, já em 1955-1956 (1988, p. 123), como "solução elegante", através da "metáfora delirante", suplência em relação ao real, que permite: a) a simbolizar algo da catástrofe libidinal do desencadeamento; 2) a construção de mediadores com o Outro gozador; 3) modalizações do gozo - como os "estados de beatitude" de Schreber, alocação do objeto "a" no bolso do psicótico, a localização do gozo no Campo do Outro, etc.

2) Nas invenções psicóticas e nos acontecimentos de corpo. Não criações "do nada", mas bricolagens alternativas aos discursos estabelecidos ou à articulação de redes significante-gozantes como o "delírio sistematizado": tais recursos focam meios de "reunificar e sustentar o corpo", como é o caso dos processos de "significantização" e "corporização" (Miller, 2004, p. 123).

A) A significantização: elevação ao significante e conexão dos órgãos com a linguagem se há órgãos fora-do-corpo - libido, objeto "a", alucinações corporais na esquizofrenia, etc. Trata-se de fazer incidir meios simbólicos para estilizar os órgãos, permitindo a construção de um corpo possível para o louco, que domestique o gozo e modalize o estado autoerótico do pulsional;

B) O processo inverso, a corporização: incidência do significante sobre a carne do falasser - através de pequenas subtrações, inscrições ou desmontes - e registro corporal da perda de gozo: as sulcagens, tatuagens, escarificações e dissoluções - fenômenos de "corpo espedaçado" - não seriam oportunidades para parcializar o gozo que retorna sobre o corpo do esquizofrênico?

Pensamos, pois, ter explicitado o quanto um elemento que, a princípio, deveria ser abolido - perspectiva normativa - pode tornar-se recurso para um sujeito - perspectiva psicanalítica. Tais exemplos, contudo, não esgotam o campo infinito dos tipos de recurso da foraclusão estrita; como ilustram bem os acontecimentos clínicos como "o duplo real" e o "outro de síntese", no autismo, e os recursos incontáveis dispostos nas chamadas "psicoses ordinárias". Não obstante, mais que uma deficiência deste escrito, espera-se que essa inesgotável diversidade de fenômenos-recursos corrobore nossa argumentação e postura perante a clínica com as psicoses.

 

 

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Artigo recebido em: 08/11/2015
Aprovado para publicação em: 10/02/2016

Endereço para correspondência
Carlos Alberto Ribeiro Costa
E-mail: carloscosta.psi@gmail.com

 

 

*Professor Adjunto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

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