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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.1 Rio de Janeiro June 2017

 

ARTIGOS

 

A noção de sujeito do inconsciente como situação imanejada1

 

La noción de sujeto del inconsciente como situación imanejada

 

 

Carolina BoonenI*; Roberto CalazansI**

IUniversidade Federal de São João Del-Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de sujeito do inconsciente representa um fundamento clínico e a base material para o tratamento psicanalítico. Apesar de Freud não teorizar sobre o sujeito, essa noção atravessa toda sua obra e é levada por Lacan para primeiro plano como uma das noções principais da psicanálise. Assim, a partir da noção de situação imanejada, expressão pouco trabalhada por Freud em um trecho de "Totem e tabu" que discute o conflito entre as proibições da civilização e as pulsões, abordaremos a constituição do sujeito do inconsciente. Partindo da possibilidade de existência do sujeito diante do advento da ciência moderna e, posteriormente, retomando a leitura dos textos freudianos, a partir de uma concepção lacaniana da noção de sujeito, apontaremos a subversão psicanalítica do sujeito do conhecimento considerando o abandono da hipnose como o início da possibilidade de trabalho com o sujeito do inconsciente.Discutiremos também a constituição subjetiva pautada no complexo de Édipo, abordando ainda o complexo de castração, a identificação imaginária e o estabelecimento de uma fantasia fundamental, sendo todos marcados pela presença de algo que permanece sempre imanejado, pois onde há sujeito há a presença de algo imanejável.

Palavras-chave: psicanálise, sujeito, complexo de Édipo, situação imanejada.


RESUMEN

La noción de sujeto del inconsciente representa un fundamento clínico y la base material para el tratamiento psicoanalítico. Aunque Freud no ha teorizado sobre el sujeto, esta noción cruza toda su obra y es llevada por Lacan en el primer plano como una de las nociones principales del psicoanálisis. De este modo, a partir de la noción de situación imanejada, expresión poco trabajada por Freud en un tramo de "Tótem y tabú" que debate el conflicto entre las prohibiciones de la civilización e las pulsiones, enfocaremos la constitución del sujeto del inconsciente. A partir de la posibilidad de existencia del sujeto adelante del advenimiento de la ciencia moderna y, posteriormente, volviendo a la lectura de los textos freudianos a partir de una concepción lacaniana de la noción de sujeto, indicaremos la subversión psicoanalítica del sujeto del conocimiento considerando el abandono de la hipnosis como el principio de la posibilidad de trabajar con el sujeto del inconsciente. Además discutiremos la constitución subjetiva basada en el complejo de Édipo, aún enfocando el complejo de la castración, la identificación imaginaria y el establecimiento de una fantasía fundamental, todos los cuales marcados por la presencia de algo que es siempre imanejado, marca esta que en nuestra opinión es la propia marca del sujeto del inconsciente.

Keywords: psicoanálisis, sujeto, complejo de Edipo, situación imanejada.


 

 

1 - Introdução

A noção de sujeito atravessa a psicanálise em toda sua extensão. Em alguns momentos como uma referência implícita e em outros como núcleo da teoria, mas sempre apresentando um fundamento clínico, a base material de operações que integram o trabalho do tratamento (Cabas, 2010).

Mesmo dando origem a um novo saber que possibilitou uma redefinição do que é a experiência subjetiva, Freud não utilizou em seus textos o termo sujeito. Submetendo as noções de eu presentes na filosofia de sua época a um debate crítico e ao crivo da clínica, ele possibilitou a lida com o sujeito do inconsciente, mesmo sem tê-lo teorizado explicitamente. Fica claro que o sujeito se impõe à clínica de Freud a partir do momento em que ele abandona a hipnose e supõe um saber do lado do sujeito estabelecendo a associação livre como regra fundamental da psicanálise.

Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo - o sujeito como distinto da função psíquica, a qual é um mito, uma nebulosa confusa - pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo - Aqui, no campo do sonho, estás em casa (Lacan, 1964/1988, p. 47).

Lacan, a partir de seu retorno à obra freudiana, extrai daí a noção de sujeito,levando-a para primeiro plano como uma das noções principais da psicanálise e promovendo ao longo de todo seu ensino um debate em torno dessa noção. Ele possibilita, então, que o sujeito torne-se o referente lógico da questão freudiana. Por isso trataremos o tema partindo de uma breve pontuação sobre a possibilidade de existência do sujeito a partir do advento da ciência moderna e, posteriormente, retornando a Freud a partir de uma concepção lacaniana da noção de sujeito,apontaremos a subversão psicanalítica da noção de sujeito do conhecimento.

O presente trabalho será atravessado por uma expressão pouco trabalhada por Freud em um trecho de "Totem e tabu" (1912/1996), onde há uma teorização do conflito entre as proibições da civilização e as pulsões, em que Freud se refere como resultante uma situação que permanece sempre imanejada. Partiremos dessa noção de situação imanejada para pensar a constituição do sujeito como algo que envolve um saber fazer com os impasses que nos são impostos a partir da presença de um real na relação com o Outro.

Para isso, abordaremos a noção de sexualidade como algo que implica os destinos do desejo de um sujeito. Discutiremos a estruturação subjetiva a partir do complexo de Édipo já que este é, como aponta Lacan (1956-1957/1995), o ponto decisivo da sexualidade, além de ser o núcleo das neuroses, e também o momento crucial de constituição do sujeito. "Será a partir do Édipo que o sujeito irá estruturar e organizar o seu vir-a-ser, sobretudo em torno da diferenciação entre os sexos e de seu posicionamento frente à angústia de castração" (Moreira, 3004, p. 219). Além disso, o complexo de Édipo anuncia também a presença irredutível do Outro na constituição do sujeito.

Cabe destacar também que o lugar do sujeito na estrutura é entre-dois, entre pulsão e inconsciente (Cabas, 2010). Assim, discutiremos esse ponto entre-dois como a situação imanejada da qual emerge o sujeito, retomando textos freudianos e lacanianos que apontam não só a estruturação subjetiva a partir do complexo de Édipo e do complexo de castração, mas também dando luz, a partir daí, a outras situações imanejadas responsáveis pelo posicionamento dialético desse sujeito de desejo como a identificação imaginária e a fantasia fundamental.

 

2 - O sujeito do inconsciente e a ciência

A discussão sobre a cientificidade da teoria psicanalítica e as relações entre a psicanálise e a ciência é antiga e até hoje é marcada por diferentes pontos de vista. No presente trabalho nos limitaremos, para pensar a constituição do sujeito, a algumas pontuações de Lacan que esclarecem que ainda que a psicanálise trate de questões que estão excluídas do campo científico, as questões do sujeito apenas podem surgir em mundo no qual a ciência é possível. Isso porque a psicanálise é irredutível à objetivação que é típica da ciência, mas não se coloca em oposição a ela, e sim como um resto seu. O que fica evidente em alguns momentos da obra de Lacan, como no Seminário 11 (1964/1988), quando afirma que

Face à sua certeza [de Freud], há o sujeito, de quem lhes disse há pouco que está aí esperando desde Descartes. Ouso anunciar, como uma verdade, que o campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da emergência do sujeito cartesiano, por isso que a ciência moderna só começa depois que Descartes deu seu passo inaugural. É desse passo que depende que se pudesse chamar o sujeito de volta para casa, no inconsciente (Lacan, 1964/1988, p. 49).

Desse modo, podemos afirmar que a razão de ser do sujeito da ciência é o corte epistemológico promovido pela ciência moderna, do qual ele surge a partir de uma relação com o saber. É a partir do limite de sua dúvida metódica que Descartes obtém a certeza do ser. Por "duvidar de tudo, menos de que pensa; e como para pensar é preciso ser, o sujeito cartesiano pode concluir: penso, logo sou" (Calazans e Marçal, 2011, p. 81). Contudo, isso não basta para determinar o campo da atuação psicanalítica, pois exige uma disjunção entre o domínio científico e o domínio ético. Este, sim, próprio ao sujeito tal como é entendido pela psicanálise (Calazans, 2002). A diferenciação entre tais domínios é primordial já que a ciência constrói seu objeto e a partir dessa construção determina sua cientificidade, enquanto a psicanálise, em seu domínio ético, considera o sujeito como algo que emerge e se impõe, não podendo, como pontua Luciano Elia (2010), nem mesmo ser considerado um conceito nos sentidos filosófico e científico. Isso porque a noção de sujeito não foi construída por Lacan como algo que confira inteligibilidade a um recorte da realidade empírica. Não é um construto nem decorre de uma concepção. "A categoria de sujeito é, antes, do tipo que mais se impõe ao trabalho teórico do psicanalista do que dele decorre como construção" (Elia, 2010, p. 13).

O sujeito se impõe à psicanálise a partir da presença de um imanejado no tratamento da histeria. É a histeria como imanejado para a medicina da época que leva Freud a abrir um novo campo. Primeiramente busca no discurso médico e em seguida na hipnose uma forma de tratar as histéricas, entretanto há a presença de algo imanejável que faz com que os tratamentos fracassem. É ao abandonar a técnica da hipnose e colocar em operação a experiência psicanalítica através da associação livre que Freud produz as condições de emergência do sujeito do inconsciente como "uma categoria que se impõe à experiência, na exigência de elaboração teórica que esta faz ao psicanalista" (Elia, 2010, p. 14). Há, assim, um abandono da tentativa de manejar o sujeito a partir da prática da hipnose, passando a supor que há do seu lado um saber constituído por elementos do inconsciente. Assim, é por meio da regra fundamental da associação livre que Freud privilegia a fala como via de acesso ao inconsciente e, assim, possibilita que a psicanálise lide com o sujeito. Por isso a necessidade do retorno a Freud para destacar alguns momentos cruciais de sua obra que, mesmo sem mencionar a noção de sujeito, apontam para sua emergência. Além disso, não podemos deixar de pontuar a subversão proposta por Lacan ao apresentar a existência de uma situação imanejada externa ao sujeito, mas também uma interna e constitutiva do sujeito. O sujeito a que aqui nos referimos é o sujeito do inconsciente, barrado, dividido, ou seja, constitutivamente marcado por um impasse.

 

3 - A subversão psicanalítica do sujeito

Como podemos ver no texto de Bertrand Olgivie (1988/1991), na tese de 1932 Lacan já dava indícios sobre a estruturação da noção de sujeito; no entanto, nesse momento Freud era lido por Lacan em meio a vários outros autores, sem ocupar um lugar especial. Já havia uma busca pela estruturação da personalidade pautada na importância da antropologia - principalmente a de Lévi-Strauss - e com enfoque em um sistema reacional como gênese da estrutura, mas o termo sujeito não era ainda utilizado. É posteriormente, quando Lacan retoma integralmente a obra freudiana passando a se posicionar a partir da psicanálise, que textos como Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938) e, principalmente, O estádio do espelho como formador da função do Eu, tal como nos é revelado na experiência psicanalítica (1949), irão introduzir de fato a problemática do sujeito, ainda que não nomeada dessa forma. Essa problemática percorrerá toda a sua obra a partir de então.

A simples comparação entre estes dois títulos já é significativa quanto ao trabalho que se efetua nesse período: passando da "formação do indivíduo" para a da "função do Eu", Lacan delimita o campo de sua investigação deixando de lado toda preocupação de ordem "sociológica" para só se deter no aspecto psíquico da questão (Olgivie, 1988/1991, p. 91).

Diante disso, Jacques Lacan (1960/1998) aponta que a filosofia e a psicologia apresentam uma mediação para situar o sujeito por uma relação com o saber a partir do critério da unidade, como visto anteriormente, uma continuidade entre ser e pensar. Já a psicanálise subverte a partir de sua práxis a noção de unidade do sujeito do conhecimento. No texto "Do sujeito enfim em questão", Lacan (1966/1998) ressalta a completude do sujeito como algo reconhecido por alguns sem sequer ser discutido, bem como algo tomado como objetivo legítimo e passível de atingir, mesmo que na realidade se mantenha na categoria de um ideal muito remoto.

Segundo Antonio Godino Cabas ( 2010), Lacan aponta duas definições divergentes para situar a divisão constitutiva do sujeito, quais sejam: a noção de que o sujeito é um efeito da linguagem, apresentada no texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (1960/1998) e a noção do inconsciente como "conceito forjado na trilha do que opera para constituir o sujeito" (Lacan, 1964 [1960]/1998, p. 844), apresentada em "Posição do inconsciente". Ambas definições, apesar de divergentes, se mantêm sem se anularem. O sujeito é um efeito da linguagem, é uma função que é estritamente compatível com a dimensão significante, na mesma medida em que o inconsciente - que, "a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma" (Lacan, 1960/1998, p. 813) - é um efeito forjado na trilha do que opera para constituir o sujeito. Ou seja, não há sujeito a não ser o do significante, ao passo que o significante supõe sempre um sujeito. Significante este que é sem-sentido e, por isso, supõe um sujeito a partir da articulação com outros significantes. Em uma palavra: o sujeito é efeito e não origem.

Diante disso, consideramos que a noção de sujeito, apesar de trabalhada claramente apenas por Lacan, está presente a todo momento nas entrelinhas da obra freudiana podendo ser, como destaca Cabas (2010), considerada uma questão inaugural. Isso fica evidente principalmente se considerarmos que na segunda definição proposta por Lacan, em "Posição do inconsciente" (1964 [1960]/1998), ele dá a entender que a pergunta sobre o sujeito é o que Freud, mesmo que indiretamente, persegue desde o início ao supor o inconsciente.

Há, então, a partir da psicanálise, uma subversão da noção objetiva e originária de sujeito. Diante dos impasses encontrados nos tratamentos que tendiam ao manejo do sujeito na neurose, a psicanálise propõe um tratamento a partir da escuta do sujeito do inconsciente. Para uma melhor compreensão dessa noção de sujeito e da possibilidade de tratamento oferecida pela psicanálise, abordaremos a constituição subjetiva a partir de uma explanação sobre o complexo de Édipo em alguns momentos das obras freudiana e lacaniana, para então pensarmos a estruturação do sujeito de desejo.

 

4 - Estruturação subjetiva a partir do complexo de Édipo

Lacan (1960/1998) faz questão de destacar a importância do desejo não só como o que há de mais natural ou como algo que está submetido aos acidentes da história do sujeito, mas que o desejo exige:

o concurso de elementos estruturais que, para intervir, prescindem perfeitamente desses acidentes, e cuja incidência desarmônica, inesperada, difícil de reduzir, realmente parece deixar na experiência um resíduo que conseguiu arrancar de Freud a declaração de que a sexualidade devia trazer a marca de alguma fissura pouco natural (Lacan, 1960/1998, p. 826-827).

Para o entendimento dessa fissura pouco natural trazida pela sexualidade, retomaremos o complexo de Édipo. Em uma carta a Fliess escrita em 1897, Freud (1897/1996) aponta pela primeira vez a questão do amor pela mãe e ciúme do pai como universal. Refere-se pela primeira vez à tragédia de Sófocles, mas ainda não havia desenvolvido uma teorização sobre o complexo de Édipo, que, como aponta Moreira (2004), só é construído conceitualmente como operador teórico-clínico num processo tortuoso ao longo de toda obra freudiana. Nos primeiros momentos - nas cartas a Fliess e na "Interpretação dos sonhos" (1900/1996) - o Édipo surge vinculado à teoria dos sonhos, afirmando a hipótese do sonho como manifestação de um desejo inconsciente e possibilitando o abandono da teoria da sedução em favor da teoria da fantasia e da sexualidade infantil.

É, então, fazendo comparações e apontando concordâncias entre o modo de funcionamento de tribos totêmicas primitivas e os neuróticos, em "Totem e tabu" (1912/1996), que Freud reflete sobre o complexo de Édipo na origem da civilização, discorre sobre a relação entre o sistema totêmico das tribos e o estabelecimento de tabus, bem como entre o desenvolvimento da civilização e o recalque das pulsões. Como aponta Moreira (2004), é a partir dessa reflexão que o outro aparece na cena edípica em sua dimensão ativa, porém ainda não se trata de um encontro com uma alteridade.

Estudando o sistema totêmico como o que estrutura e fundamenta as relações entre os membros das tribos, Freud se atém, em certo momento, aos tabus presentes nessas relações. Interessando-se pelo número de proibições a que esses povos estão sujeitos, principalmente às proibições de cunho sexual que implantavam a exogamia e o impedimento do incesto, destaca que uma coisa certamente decorre da persistência dessas proibições: o desejo original de fazer a coisa proibida.

Elas [as tribos] devem, portanto, ter uma atitude ambivalente para com seus tabus. Em seu inconsciente não existe nada que mais gostassem de fazer do que violá-los, mas temem fazê-lo; temem precisamente porque gostariam, e o medo é mais forte que o desejo. O desejo está, inconsciente embora, em cada membro individual da tribo, do mesmo modo que está nos neuróticos (Freud, 1912/1996, p. 49).

Entretanto, Freud destaca:

Tanto a proibição como a pulsão persistem: a pulsão porque foi apenas recalcada e não abolida, e a proibição porque, se ela cessasse, a pulsão forçaria o seu ingresso na consciência e na operação real. Cria-se uma situação que continua imanejada - uma fixação psíquica - e tudo mais decorre do conflito continuado entre a proibição e a pulsão (Freud, 1912/1996, p. 47).

O destaque de Freud para uma situação imanejada da qual tudo mais decorre evidencia o impasse inerente à constituição subjetiva, o que marca também toda a estruturação da teoria psicanalítica. O sujeito se manifesta a partir de uma impossibilidade de manejo e a psicanálise volta seu interesse justamente para este imanejado, para o impasse que se faz necessariamente presente quando se lida com um sujeito do inconsciente.

Freud lança luz sobre a origem do totemismo num passado remoto e também afirma que o sistema totêmico, assim como a fobia de animal, é um produto das condições em jogo no complexo de Édipo. Pode-se considerar também o fetiche que, como aponta Miller (1997), ao mesmo tempo que é oposto à fobia, é paralelo a esta. Há em todos os casos uma atitude ambivalente que introduz uma situação imanejada. No caso do totemismo, o desejo de fazer a coisa proibida. Em relação ao fetiche e à fobia, o objeto do primeiro tem uma atração irresistível para o sujeito, já o objeto do segundo, ao contrário, causa-lhe repulsa.

No Seminário 4, Lacan (1956-1957/1995) aponta ambos como tendo funções centradas no mesmo fundo de angústia fundamental e também como moções do desejo. "As moções balizadas da repulsão total e da atração irresistível, formam entre si um espaço, onde o desejo gira" (Miller, 1997, p. 483). Tanto os objetos fóbicos quanto os objetos do fetiche seriam, para Lacan, uma medida de proteção e de garantia para esse fundo de angústia que evidencia a presença do impasse da castração.

Retomando o sistema totêmico como produto das condições em jogo no Édipo, pode-se dizer que para tal discussão Freud reúne a interpretação psicanalítica do totem com o fato da refeição totêmica e com as teorias darwinianas do estado primitivo da sociedade humana. Freud evoca o mito de uma refeição totêmica envolvendo irmãos que tinham sido expulsos de seu clã por um pai violento e ciumento que guardava todas as fêmeas para si próprio e expulsava os filhos à medida que cresciam. Os irmãos expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando fim à horda patriarcal.

O pai primevo foi, em uma relação ambivalente, temido e invejado por cada um dos irmãos que, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele e adquiriam, assim, uma parte de sua força. Após terem satisfeito o ódio ao se livrarem do pai e se identificarem com ele, a afeição que havia sido recalcada por todo esse tempo fez-se sentir sob a forma de remorso e culpa. O impasse permanece e o pai, após morto, não tem seu lugar abolido, mas torna-se mais forte do que fora quando vivo, e o que antes era proibido por sua existência real passou a ser proibido pelos próprios filhos a partir dos tabus.

A identificação com o pai morto e o sentimento de culpa pela sua morte fizeram com que os filhos anulassem o próprio ato do assassinato e criassem os dois tabus fundamentais do totemismo que, por sua vez, correspondem inevitavelmente aos dois desejos recalcados do complexo de Édipo. Além disso, evidenciam claramente a situação imanejada: a proibição da morte do totem, o substituto do pai, e a renúncia aos seus frutos - proibição do incesto -, abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora haviam sido libertadas. Diante disso, Freud afirma que a refeição totêmica seria uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, considerado o começo da organização social, das restrições morais e da religião. É, como podemos ver na citação anterior de Freud, a fixação de um imanejado de onde tudo mais decorre.

A partir dessa constatação de que o tabu desenvolve-se com base numa atitude emocional ambivalente, Freud estabelece, a partir da ambivalência, a concordância psicológica entre o tabu e a neurose obsessiva. Desenvolve, então, que a transmissibilidade do tabu é um reflexo da tendência da pulsão inconsciente da neurose de deslocar-se constantemente por meios associativos para novos objetos. O tabu se mantém e se faz necessário devido à existência de desejos que o contrariam. Ele mantém a interdição aos impulsos dos povos primitivos para efetuar ações proibidas assim como o recalque interdita a satisfação plena das pulsões sexuais nos neuróticos, ambos marcando sempre a presença de um impasse. Um impasse que atravessa a constituição subjetiva e permanece como a marca de algo imanejado que, mesmo diante de uma interdição, se satisfaz parcialmente. Seja em relação aos impulsos dos povos primitivos ou à satisfação plena das pulsões, seja o tabu ou o recalque como mecanismos de interdição, há sempre algo que escapa.

Um impasse que Lacan (1956-1957/1995) relaciona à hiância que permanecia na teoria de Freud até a escrita de "Totem e tabu" (1912/1996) - que nada mais é que um mito moderno. Uma hiância que é entendida como a questão Onde está o pai?, pai simbólico que retorna como significante e instaura uma situação imanejada:

para que os pais subsistam, é preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai único, esteja antes do surgimento da história, e que seja o pai morto. Mais, ainda: que seja o pai assassinado. E, realmente, como isso poderia ser pensado fora do valor mítico? Pois, que eu saiba, o pai em questão não é concebido por Freud, nem por ninguém, como um ser imortal. Por que é preciso que os filhos tenham, de certa forma, antecipado sua morte? E tudo isso, com que fim? Para, afinal de contas, interditarem a si mesmos o que se tratava de arrebatar a ele. Não o mataram senão para mostrar que ele é incapaz de ser morto (Lacan, 1956-1957/1995, p. 215).

Ou seja, Freud recorre ao mito do Pai primordial, pelo qual cria um vão, um ponto de interseção vazio entre natureza e cultura onde se situa o Pai primitivo e mítico que é assassinado como ato de fundação da sociedade civilizada, do campo da experiência chamado sujeito. "Se o Pai da horda nunca existiu e portanto nunca pôde ser assassinado no plano da realidade, o Assassinato do Pai é condição essencial da estrutura do sujeito, sem a qual nenhuma realidade poderá existir como realidade de e para um sujeito" (Elia, 2010, p.65). É a morte do pai que permite sua presença como símbolo, como metáfora. Esse mito, que se apresenta como mito de origem da civilização, é, segundo Luciano Elia (2010), o modo de Freud introduzir o sujeito no campo de experiência social, cultural e psicológica, no campo do simbólico. Como destaca Moreira (2004), é a partir de "Totem e tabu" que Freud enoda em um mesmo ponto a neurose, os povos primitivos e a infância. E é o horror ao incesto como ponto nodal que possibilita pensar a problemática edípica, a criação da civilização e, a partir daí, o processo de subjetivação e sexuação.

Retomando um texto anterior de Freud, "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna", de 1908 (1996), onde é possível notar a presença de um conflito, uma situação imanejada, vemos que Freud já afirmava que nossa civilização repousa, de um modo geral, sobre a supressão das pulsões. Essa supressão se deve, principalmente, aos tabus, ou, em outras palavras, à moral sexual civilizada. Pelo fato de estarmos inseridos na cultura, na linguagem, estamos sujeitos às proibições e restrições impostas por uma moral sexual civilizada. Essa influência da civilização sobre as pulsões de um lado reprime nocivamente a sexualidade, de outro possibilita que dessa tensão entre a tentativa de satisfação pulsional e a moral sexual civilizada que restringe e delimita tal satisfação emerja o que Lacan denomina de sujeito.

 

5 - Da identificação imaginária à castração

Se relacionarmos "Totem e tabu" (19123/1996) com o texto "O eu e o isso" (1923/1996), podemos notar a presença da noção de sujeito nas entrelinhas da obra freudiana a partir desta situação imanejada advinda da existência de desejos e sentimentos inconscientes, como a hostilidade, que não podem ser satisfeitos devido à presença de uma lei. Mas, antes disso, devemos recuar para um momento anterior da constituição subjetiva, quando ainda não há a presença do pai como símbolo, mas, sim, uma identificação imaginária ao outro como promessa de inteireza e completude, que, enquanto promessa, mostra que até mesmo no campo do imaginário podemos encontrar a presença de uma situação imanejada.

É a partir do estádio do espelho que Lacan passa a abordar e estruturar propriamente a noção de sujeito. A identificação imaginária proposta por Lacan (1949/1998) significa fundamentalmente que para termos ideia da nossa própria unidade precisamos encontrá-la fora de nós. Diante da discordância entre o esquema corporal incompleto e a falsa unidade da imagem especular, Lacan desenvolve a ideia do estádio do espelho no qual propõe que a apreensão de imagens próprias permite conquistar o domínio corporal através de uma identificação com a imagem do outro ou uma identificação com uma imagem virtual fornecida pelo espelho. Entretanto, há um preço para a obtenção da unidade corporal: a alienação ao corpo do Outro. A identificação nos aliena, dando uma forma agressiva às relações com os semelhantes.

A identificação com a imagem promete nos unificar, mas nunca chega a cumprir inteiramente a promessa, já que a própria coisa que nos dá a unidade também a retira. Apreendemos nossa unidade através de algo que não somos nós, que está fora de nós (Leader, 2013, p.59).

Segundo Lacan (1960/1998), o sujeito encontra nessa imagem alterada de seu corpo o paradigma de todas as formas de semelhança que irão levar para o mundo dos objetos um toque de hostilidade projetando então uma transformação da imagem narcísica. No encontro com o semelhante, essa imagem transforma-se no escoadouro da mais íntima agressividade como uma resposta, no registro do imaginário, à situação imanejada. E é esta a "imagem que se fixa, o eu ideal, desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu" (Lacan, 1960/1998, p. 823). A principal questão não é a identificação imaginária de si, mas a fixação de uma imagem. Como pode ser visto no grafo do desejo proposto por Lacan (1960/1998), há uma fixação do sujeito a uma imagem como corolário de sua petrificação em um significante - representado no grafo por I(A), ideal do eu - em consequência da função do ideal simbólico.

Assim, o eu ideal transcende seus limites para determinar o eu (moi) juntamente com o ideal do eu. Por meio dessa dupla determinação do eu pelo Outro percebemos que o eu não é autônomo, entretanto, desconhece a presença do outro na sua constituição e uma imagem precisa ter um lugar e este lugar é possibilitado pelo simbólico. "Isso mostra que o imaginário tem que ser estruturado, temperado por uma relação simbólica" (Leader, 2013, p. 61). O simbólico é transmitido primordialmente pela fala e é o que nos dá um lugar no mundo através do estabelecimento de coordenadas e limites. Consiste não só na linguagem, mas nesta somada à lei. Lei que, antes de mais nada, é a proibição do incesto, não se restringindo ao limite internalizado que separa mãe e filho, incluindo também as renúncias recíprocas que organizam a sociedade. Daí a importância do complexo de Édipo na estruturação do sujeito no campo da linguagem. O processo edipiano, como aponta Leader (2013), introduz uma negatividade em nossa vida. Estabelece um sentido e uma limitação do sentido.

Ao mesmo tempo, surte efeitos sobre nossa libido, sobre a excitação de nosso corpo e a intensidade e direção de nossos vínculos afetivos. A parte mais importante desse processo é o estabelecimento da falta. Renunciamos à mãe para criar uma zona de vazio que, mais tarde, possa ser ocupada por outros objetos. Nossa libido fica mais ou menos exilada de nosso corpo e ligada ao sinal da ausência (Leader, 2013, p.78).

Retomando o ponto anterior em que destacávamos a presença da noção de sujeito nas entrelinhas da obra freudiana a partir de uma situação imanejada, podemos ver em "Totem e tabu" (1912/1996) que, diante da impossibilidade de satisfação das pulsões, desenvolve-se uma identificação com o pai morto incorporando seu caráter ao eu. É como se os irmãos da tribo totêmica ao quererem se livrar do pai se identificassem com ele, incorporando-o ao eu por meio da refeição totêmica. Ao identificarem-se e incorporarem esse pai morto, retêm seu caráter mantendo uma lei que, como o supereu, tem um aspecto duplo na medida em que afirma que deveriam ser como o pai, mas também que não podem ser como ele. Isso deriva do fato de o supereu ter a missão de recalcar o complexo de Édipo e, como no caso do mito totêmico, instaurar uma lei que proíbe, que barra as pulsões que ali emergem. De acordo com Freud em "O eu e o isso" (1923/1996), é como se, ao se instituir o supereu, o eu dominasse o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, se colocasse em sujeição ao isso. Os conflitos entre eu e supereu "em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno" (Freud, 1923/1996, p.51).

Como aponta Angela Bernardes (2005), o supereu seria a divisão do sujeito, uma alteridade intrínseca ao eu que se deve à sua constituição por meio da incorporação de traços de outrem e até mesmo pela assunção ilusória de uma imagem. Em relação a essa alteridade na cena edípica, o Outro, em um primeiro momento, aparece implicitamente como condição lógica da cena triangular por ser uma figura anterior ao eu e condição de possibilidade de sua constituição.

Contrapondo, de certa forma, a cena edípica triangular, Miller (1997, p. 463), ao falar sobre o Seminário 4 de Lacan, afirma: "diz-se que pai é o 3º, mas não é: antes do pai, há o falo como terceiro, sempre presente na relação mãe-filho, pois não há o cara-a-cara da mãe e do filho, da mãe e da criança. O pai entra como quarto". Diante disso, cabe acrescentar algumas observações sobre o complexo de Édipo propostas por Lacan.

Como aponta Lacan (1956-1957/1995), em um primeiro momento a criança se encontra em uma relação de indistinção quase fusional com a mãe, pois tende a identificar-se com o único e exclusivo objeto do desejo do outro: o falo. Nessa criança já se esboça um sujeito e a partir da sua relação com a mãe ela se situa em diferentes posições pelas quais é levada a tapear o desejo materno, que tem como centro o falo. Faz-se objeto do que é suposto faltar à mãe ao querer constituir-se como falo materno. Dessa forma,

A criança se apresenta à mãe como lhe oferecendo o falo nela mesma, em graus e posições diversos. Ela pode se identificar com a mãe, se identificar com o falo, ou apresentar-se como portadora de falo. Existe aí um grau elevado, não de abstração, mas de generalização da relação imaginária que chamo de tapeadora, pela qual a criança atesta à mãe que pode satisfazê-la, não somente como criança, mas também quanto ao desejo e, para dizer tudo, quanto àquilo que lhe falta (Lacan, 1956-1957/1995, p. 230).

Essa relação imaginária inicial entre mãe e criança, que Lacan (1956-1957/1995) nomeia como uma relação tapeadora, introduz a criança no importante registro da castração. A castração é o signo do drama edípico e se introduz no desenvolvimento típico do sujeito, mostrando que o lugar simbólico do falo está marcado como um além da criança. Como mostra Lacan, por trás da mãe simbólica está o pai simbólico que, como visto anteriormente em "Totem e tabu" (1912/1996), necessita de uma construção mítica para ser alcançado. Não é o pai simbólico que intervém nessa relação imaginária entre mãe e criança, mas o próprio pai real - que posteriormente será substituído por uma outra coisa: aí, sim, o pai simbólico, a metáfora paterna. Essa mediação paterna tem papel importante na configuração da relação mãe-criança-falo, pois intervém, nos diferentes registros, sob as formas de frustração, privação e castração. Também é sob essas três formas que a falta do objeto pode manifestar-se tanto na criança quanto no adulto. Nota-se aqui, ao apresentar a visão lacaniana do complexo de Édipo, que, como dito anteriormente, a relação triangular é, na verdade, uma relação quadrangular que envolve não apenas mãe, criança e pai, mas também o falo como significante que representa a falta de objeto.

Assim, a metáfora paterna - fundamento para a função normativa do pai no complexo de Édipo - faz com que a criança perceba a existência de algo para além dela estruturado na linguagem. Ou seja, o que está em jogo é que a criança assuma o falo como significante e faça dele instrumento da ordem simbólica das trocas. Deve haver uma condução do sujeito a uma escolha objetal (Lacan, 1956-1957/1995).

O declínio do complexo de Édipo é marcado pela simbolização da lei, que tem como valor estruturante a determinação do lugar do desejo da mãe. Essa simbolização da lei atesta que a criança recebeu sua plena significação. Ou seja, o desejo materno está submetido à lei do desejo do outro, o que implica que o desejo da criança também dependa de um objeto que o outro - o pai - é suposto ter ou não ter. Lacan (1956-1957/1995) toma a palavra do pai como presença privadora que sustenta a lei não mais de forma velada, mas mediada pela mãe. No encontro com a lei do pai, a criança se depara com a questão da castração que é interpelada a ela através da posse do falo, do qual o desejo da mãe se encontra agora dependente. Esse movimento leva a criança a colocar o pai no lugar de detentor do falo, do objeto de desejo da mãe. Desse modo, eleva o pai à dignidade de pai simbólico - pai morto -, de Nome-do-Pai.

A reposição do falo em seu devido lugar é estruturante para a criança, seja qual for seu sexo, a partir do momento em que o pai, que supostamente o tem, tem preferência junto à mãe. Tal preferência, que atesta a passagem do registro do ser ao ter, é a prova mais manifesta da instalação do processo da metáfora paterna e do mecanismo intrapsíquico que lhe é correlativo: o recalque originário (Dor, 1989, p.88).

A metáfora paterna serve de fundamento para uma função normativa do pai no complexo de Édipo e isso será marcado pelo estabelecimento do recalque no fim do período infantil. A inscrição do Nome-do-Pai tem então como objetivo a substituição de um fundamento literal por um fundamento mítico do complexo de Édipo, já que, como nos mostra Lacan (1956-1957/1995), esse pai simbólico é "impensável", não está e não intervém em lugar algum. Pai simbólico em relação ao qual Freud teve que forjar o mito de "Totem e tabu". E é por meio do conceito de pai simbólico que se pode alcançar a elevação da palavra pai ao patamar de símbolo, de significante. Contudo, o pai não se reduz ao símbolo, por isso é necessário acrescentar-lhe o Nome-do-Pai, que proporciona a compreensão plena de sua função simbólica característica. Essa função, para ser completamente realizada, necessita da introdução de uma dimensão metafórica, da instalação da metáfora paterna, que rompe com qualquer ideia de uma realidade fenomenal de qualquer espécie de pai, de modo a apresentar a visão do pai como uma relação de significante a significante. Então, o Nome-do-Pai é uma simbolização de simbolização, é o que liga o desejo à lei.

O conflito imanejado entre sexualidade e cultura suscita em nós uma resposta que se impõe: o sujeito. Entretanto, esse sujeito se impõe como resposta a algo não manejável, ou seja, o sujeito advém de um conflito sem solução, por isso já se constitui como algo impossível de ser visto como uma integridade. O sujeito da psicanálise é dividido, barrado ( $), faltoso, e essa falta inerente pode ser entendida, em Freud, como a castração.

Dessa maneira, reafirmamos: é dessa relação imanejada, desse conflito continuado entre desejo e lei, entre mundo interno e externo, entre pulsões e moral sexual civilizada, que emerge o sujeito. É por meio da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos que essa emersão ocorre, que o encontro entre bebê e o Outro materno se dá e, dessa forma, o sujeito se insere no campo da linguagem. É esse encontro que suscitará no corpo do bebê um ato de resposta, que se chama sujeito. É toda a situação imanejada de encontro entre Outro materno e criança e a dialética do ser que a metáfora paterna suscita a partir de sua entrada que possibilita o esboço de um sujeito que sofre o efeito da castração para se constituir como

o nome de algo cujo modo de existir é a elisão, a barra, a abolição, operações pelas quais o sujeito se constitui e se realiza na experiência [...] tanto mais existe e se realiza quanto mais ele é abolido, elidido, barrado. Esse é seu modo próprio de existir, como o modo do fogo é quente. O que o abole, elide e barra é precisamente o significante, que o funda e constitui (Elia, 2010, p. 62-63).

Ainda sobre a constituição do sujeito a partir daquilo mesmo que o barra, destacamos que Lacan, (1964/1998, p. 46) em relação ao sujeito e ao inconsciente, diz: "tudo isso passa no mesmo lugar". Ou seja, ao colocar a função do inconsciente em relação profunda com o conceito de corte, ao apontar que é a partir de uma hiância que o inconsciente freudiano se constitui, coloca também a noção de sujeito na mesma posição.

O inconsciente freudiano e, consequentemente, o sujeito se situam em um ponto onde há sempre claudicação, evidenciando a hiância por onde tomam forma. "O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente" (Lacan, 1964/1998, p. 30). Trata-se de um achado que se apresenta a Freud como fenômeno, seja por meio dos sonhos, atos falhos, sintomas ou chistes, fenômenos que chamam nossa atenção devido ao "modo de tropeço pelo qual eles aparecem" (Lacan, 1964/1998, p. 29). É pelo "tropeço, desfalecimento, rachadura" (Lacan, 1964/1998, p. 30) que Freud vê produzir-se a partir de uma hiância o seu achado. É a partir do imanejado que ele vai à procura do inconsciente tendo em vista alguma outra coisa que quer se realizar.

É, no inconsciente, em um jogo de diferenciação entre os significantes que o sujeito se produz como efeito de sentido graças ao efeito de significação da articulação significante. Cada significante sempre remete a um outro e apenas produz sentido em relação a um outro, o que indica que a questão do sujeito é justamente essa relação com o Outro: um Outro como alteridade simbólica estruturada e regulada pelas leis da linguagem e pelo automatismo do significante, o que impede que o sujeito seja tomado como unidade, já que o Outro enquanto lugar do significante é incompleto e, assim como o sujeito, é desejante ( Calazans, 2002).

Assim, Lacan faz da castração o nome da falta fundamental que objeto algum pode tampar, o nome daquilo que possibilita a constituição subjetiva. Tal questão fica clara na obra freudiana, mesmo sem a noção de sujeito ser mencionada. Ao pressupor o inconsciente a partir de uma hiância, em um ponto onde há sempre claudicação, ou como um achado que se mostra a partir do tropeço, Freud já lida com o imanejado. A teorização de Lacan (1964/1998) permite repensar o inconsciente freudiano a partir de uma descontinuidade na qual algo se manifesta como vacilação. Descontinuidade na qual, devido à presença de uma fenda, uma falta inaugural, o sujeito se manifesta como imanejado.

Isso que falta e escapa a todo sujeito e que, mesmo faltando, se faz presente, é o que possibilita o posicionamento desse sujeito como desejante. É o que o barra e ao mesmo tempo possibilita sua constituição. Frente a essa falta fundamental e inerente, o sujeito, na neurose, se posiciona a partir do recalque, fixando uma representação - ou, como enuncia Lacan, um significante - primordial que permitirá sua estruturação. É essa representação fixada a partir da castração que propicia ao sujeito situar seu desejo e estruturar, então, suas escolhas objetais. Desse modo, com a noção de um significante fundador que se fixa a partir da castração e possibilita a articulação entre os demais significantes, podemos pensar no sujeito como efeito dessa cadeia.

 

6 - A fantasia fundamental como marca do imanejado

Há ainda outra forma de pensar o sujeito a partir dessa noção de imanejado que destacamos: partindo da questão da fantasia. É preciso, então, lembrar que, correlatos ao significante fundador, há o recalque originário e a fantasia fundamental. Em seu seminário sobre sintoma e fantasia, Miller (1987/1992) evidencia que a fantasia pode ser reduzida a uma fórmula significante. Contudo, não obedece nem à estrutura de retroação nem à dinâmica significante. Ele aponta que o sistema significante foi pensado por Lacan como um sistema lógico e, como qualquer sistema dessa ordem, apresenta certas formas imodificáveis, que são seus axiomas. A fantasia é, então, um axioma simbólico, impossível de modificar justamente por estar no fundamento, no ponto de partida do sistema lógico.

Em Freud a fantasia é vista como o nome próprio do recalcado e mostra um movimento do sintoma à fantasia, o que não diferencia imaginário de simbólico. Ao contrário, Lacan os diferencia estritamente, pontuando o sintoma como uma formação simbólica e a fantasia, em um primeiro momento, como uma dimensão estritamente imaginária. Contudo, devido à primazia do simbólico, Lacan evidencia que a prevalência de uma imagem para o sujeito corresponde a uma falta no simbólico, ou seja, uma falta na cadeia significante. É dessa falta que vem, do nível imaginário, a figura do supereu (Miller, 1987/1992).

Já em um segundo momento, Lacan passa a utilizar a seguinte representação para a fantasia: $ ◊ a, onde "há uma transformação que vai da consideração do objeto como imaginário à questão de seu estatuto real (Miller, 1987/1992, p. 132). Mas há aí, também, algo apontado por Miller como verdadeiramente paradoxal, que é "implicar na fantasia o sujeito como sujeito do significante. Ou seja, fica implicado na fantasia um elemento que vem do nível simbólico, que é feito da dimensão simbólica". Afirma ainda:

Há no texto de Freud uma alusão velada a isso, quando nos diz que são necessárias duas coisas para fazer uma fantasia. Um gozo, um prazer proveniente da zona erógena, primeiro. E, segundo, o que se chama uma representação do desejo. De certo modo, ambos podem ser encontrados na fórmula $ ◊ a. Em a, esse gozo, vinculado com esse $, o sujeito do desejo (Miller, 1987/1992, p. 133).

A partir de tal vinculação paradoxal, Miller assinala que, apesar de aí estarem os meios de o analista operar, não é suficiente pensar a prática analítica no campo do significante. Apesar de o sujeito ser efeito da cadeia significante, "se apresenta na experiência analítica com uma inércia, uma resistência proveniente da sua estreita vinculação, através da fantasia, com o objeto" (Miller, 1987/1992, p. 133). Desse modo, diz que o término da análise precisa de uma vacilação do vínculo próprio da fantasia, entre sujeito e objeto.

A fantasia fundamental se constitui, como visto em Miller (1987/1992), como um ponto não simbolizável, não interpretável, impondo uma inércia da experiência analítica, justamente por se situar na falta do significante e por evidenciar também a manifestação do desejo do Outro, ambos correspondentes ao matema de Lacan A barrado. Como afirmam Badiou e Roudinesco (2012, p. 72), o matema é o espaço formal que possibilita projetar e transmitir a experiência subjetiva do tratamento se remetendo a uma matriz racional, susceptível a uma transmissão sem resto. Contudo, "tal transmissão não pode, na realidade, recobrir a totalidade da experiência subjetiva, pois o sujeito, como vimos, é e permanecerá irredutível". O sujeito lacaniano está inextricavelmente ligado ao real, àquilo impossível de ser simbolizado.

De certa forma, podemos dizer que isso está diretamente relacionado com a falta no campo do significante, que diz de uma dimensão real da fantasia, daquele resto imodificável e inatingível com o qual o sujeito deve mudar sua forma de se relacionar ao final da análise. E é importante lembrar que a fantasia, como resposta ao desejo do Outro, é o que possibilita a estruturação subjetiva. Na tentativa de explicar a origem do sujeito e, consequentemente, tamponar uma falta, um ponto impossível de ser significado, a fantasia, ao mesmo tempo que orienta uma posição subjetiva diante do conflito entre pulsões e civilização, acaba por revelar sua insuficiência.

As fantasias como tentativas de significar o não-significável são incapazes de manejar o sujeito. Estruturam-no, proporcionam seu posicionamento e possibilitam a circulação de um desejo. Contudo, o sujeito continua imanejável, pois tudo isso passa por uma dimensão mítica, como podemos ver na apropriação de Freud do mito de Édipo ao longo de toda sua obra e do mito do pai primevo, em "Totem e tabu". Falta algo ao sujeito que é insubstituível porque se trata de um objeto que nunca existiu.

Como aponta Lacan (1960/1998, p. 831), a fantasia regula o desejo e "é propriamente o 'estojo' daquele [Eu] que é primordialmente recalcado, por só ser indicável no fading da enunciação". E o que a experiência analítica evidencia é que a castração rege o desejo e faz da fantasia "a cadeia simultaneamente flexível e não inextensível pela qual a suspensão do investimento objetal [...] assume a função transcendental de garantir o gozo do Outro que me é transmitido por essa cadeia na Lei" (Lacan, 1960/1998, p. 841).

Desse modo, o sujeito psicanalítico apresenta uma constituição complexa, que parte do encontro entre a sexualidade - do ponto de vista psicanalítico - e a moral sexual civilizada, constituindo-se a partir de um conflito imanejado. Desse manejo impossível é que se instaura uma falta como significante primordial e estruturante do desejo. Fixa-se um significante que é estruturante e, ao mesmo tempo, falho. Ou seja, o sujeito é, então, algo que se constitui como incompleto e assim permanece, sempre, imanejado.

Pensar a noção de sujeito só é possível pois Freud redefine a sexualidade a partir da pulsão, caracteriza-a como infantil e perverso-polimorfa. É infantil por não apresentar um saber prévio a seu respeito, e perverso-polimorfa por não delimitar um objeto de satisfação nem a forma como essa satisfação deve se dar. Logo, é enigmática, pois implica em uma relação com o Outro, mas não especifica como deve se dar essa relação. É a estruturação do sujeito, um sujeito sexual, que implica os destinos de seu desejo e, assim, uma forma única de se posicionar frente ao Outro.

Ao teorizar e ampliar a noção da sexualidade, Freud possibilita a escuta desse sujeito do inconsciente, além de despatologizar seu posicionamento anteriormente visto somente por uma lógica normativa. Posiciona-se de um modo diferente da ciência, da medicina e da psicologia, que, como afirma Miller (1987/1992, p. 97), reproduzem um discurso adequado ao do Mestre e apresentam um desejo terapêutico, uma vontade de "que a coisa funcione, que a coisa ande bem em termos do indivíduo que se lhe apresenta". Entretanto, esse discurso e esse desejo se atêm ao sintoma e são contrários à fantasia. Assim, tentam de alguma forma manejar o sujeito e, dessa forma, já automaticamente o desconsideram, por se tratar necessariamente de algo imanejado.

A psicanálise surge e passa a ter como pretensão de tratamento não o manejo ou a normatização do sujeito, mas a travessia da fantasia, a flexibilização da posição subjetiva, geralmente tão marcada e fixada por uma posição fantasmática. Pois, como vimos, s eja na presença de uma insuficiência no tratamento médico da histeria ou no impasse da constituição subjetiva nos evidencia não só um sujeito barrado, mas também um Outro barrado. Seja na alienação no desejo do Outro como preço da unidade corporal ou na presença do falo como significante da falta na relação com o Outro ou até mesmo na insuficiência da fantasia ao orientar uma posição subjetiva e regular o desejo. Onde há sujeito há a presença de algo imanejável.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 16/04/2016
Aprovado para publicação em: 22/09/2016

Endereço para correspondência
Carolina Boonen
E-mail: carolinaboonen@gmail.com
Roberto Calazans
E-mail: roberto.calazans@gmail.com

 

 

*Psicóloga pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
**Psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa, CNPq nível 02.
1A tradução inglesa do texto "Totem e tabu" traduz o termo, que na versão brasileira é apresentado como "imanejada", por "unresolved" (não resolvida). Entretanto, adotamos o termo da versão brasileira por acreditamos que a noção de "situação imanejada" contribua para a discussão acerca do sujeito da psicanálise.

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