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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

Acolher a diferença: a função da bissexualidade psíquica na construção da subjetividade

 

Accepting the difference: the function of psychic bisexuality in the construction of subjectivity

 

Acoger la diferencia: la función de la bisexualidad psíquica en la construcción de la subjetividad

 

 

Cláudia Aparecida CarneiroI, II*; Eliana Rigotto LazzariniIII**

IAssociação Psicanalítica Internacional - IPA - Brasil
IISociedade de Psicanálise de Brasília - SPBsb - Brasil
IIIUniversidade de Brasília - UnB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo explorar a relevância metapsicológica e a atualidade da noção de bissexualidade psíquica, presente na psicanálise desde sua origem e considerada por Freud fator decisivo da sexualidade humana. Pretende-se apresentar a bissexualidade psíquica como um conceito fundamental e ordenador dos processos de subjetivação e do reconhecimento da alteridade. Para tal, realizamos um percurso pelos textos de Freud e seus desdobramentos teóricos, seguindo a trilha de psicanalistas que procuraram novas leituras para o enigma da bissexualidade. Destacamos as ideias de Winnicott e Bion, autores que buscaram um diálogo entre a teoria pulsional e a das relações de objeto como solução para as ambiguidades teóricas deixadas por Freud. Resgatamos, desse modo, nossa aposta de que a bissexualidade, para além de uma disposição constitucional, inscreve-se no psiquismo originário através da relação do sujeito com seus objetos primários e tem função organizadora nos processos de subjetivação, na medida em que abre caminho para a coexistência desses objetos na vida psíquica.

Palavras-chave: bissexualidade psíquica, diferença, feminino, masculino, subjetividade.


ABSTRACT

This article aims to explore the metapsychological relevance and contemporaneity of the notion of psychic bisexuality, which has been present in psychoanalysis since its beginning and was considered by Freud as a decisive factor in human sexuality. We intend to present the psychic bisexuality as a fundamental and organizing concept of the subjective processes, as well as the recognition of otherness. For this, we go through the Freudian texts and his theoretical developments and follow researching the psychoanalysts who have been looking for new readings about bisexuality. We highlight the ideas of Winnicott and Bion, authors who sought a dialogue between the drive theory and that of object relations as a solution to Freud's theoretical ambiguities. Thus, we take our bet that bisexuality, besides a constitutional disposition, is inscribed in the original psyche through the relation between the subject and his primordial objects. Furthermore, it has an organizing function in the subjective processes, insofar that it paves the way to these objects coexist in psychic life.

Keywords: psychic bisexuality, difference, feminine, masculine, subjectivity.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo explorar la relevancia metapsicológica y la actualidad de la noción de bisexualidad psíquica, presente en el psicoanálisis desde su origen y considerada por Freud factor decisivo de la sexualidad humana. Se pretende en este estudio presentar la bisexualidad psíquica como un concepto fundamental y ordenador de los procesos de subjetivación y del reconocimiento de la alteridad. Para eso, hacemos un recorrido por los textos de Freud y sus desdoblamientos teóricos, siguiendo el sendero de psicoanalistas que buscaron nuevas lecturas para el enigma de la bisexualidad. Destacamos las ideas de Winnicott y Bion, autores que buscaron un diálogo entre teoría pulsional y teoría de las relaciones de objeto como solución a las ambigüedades teóricas legadas por Freud. De ese modo, rescatamos nuestra apuesta de que la bisexualidad, además de una disposición constitucional, se inscribe en el psiquismo originario a través de las relaciones del sujeto con sus objetos primarios y tiene función organizadora en los procesos de subjetivación, en la medida en que abre el camino para la coexistencia de esos objetos en la vida psíquica.

Palabras clave: bisexualidad psíquica, diferencia, feminino, masculino, subjetividad.


 

 

A bissexualidade psíquica é noção presente na psicanálise desde sua origem e foi considerada por Freud (1905/2016a, 1930/2010) fator decisivo da sexualidade humana. Embora retomada pelos sucessores de Freud e sempre mencionada no debate psicanalítico contemporâneo, essa noção permanece nos dias de hoje com a complexidade e as ambiguidades teóricas evidenciadas na obra freudiana. Fato que parece reforçar as resistências à ideia, amplificadas nas discussões sobre as diversidades sexuais e de gênero e na crítica ao dualismo freudiano.

Em coletânea publicada em 1997 por Presses Universitaires de France sobre a bissexualidade psíquica, Maurice Haber observa que nenhum psicanalista, na sequência de Freud, pôde chegar a uma descrição da bissexualidade livre de incertezas e confusões. Essa afirmação nos parece válida ainda hoje. Na mesma linha, Jacques André (2015) critica a visão normativa da triangulação edípica e a tendência de se reduzir a interferência da bissexualidade sobre essa organização.

A importância e a atualidade do conceito de bissexualidade psíquica vêm sendo evidenciadas em trabalhos recentes (Chabert, 2016; Perelberg, 2018). Compreende-se que o tema da bissexualidade é inquietante e, tomando a expressão de Delouya (2003, p. 207), "minado pelas sensibilidades sociais e ideológicas". Entendemos que a noção de bissexualidade psíquica ultrapassa em muito a concepção normativa de organização edípica e de uma lógica binária restrita ao dualismo masculino-feminino. Nesse sentido, nossa investigação é motivada pelas necessidades identificadas na clínica atual de se compreender as múltiplas expressões da bissexualidade nos conflitos identificatórios, nas dificuldades de escolha do objeto e, sobretudo, nos entraves ao reconhecimento dos objetos internos.

O objetivo principal deste estudo é explorar a relevância metapsicológica da bissexualidade psíquica como uma noção atual e fundamental na investigação dos processos de subjetivação e do reconhecimento da alteridade, para além da discussão acerca da escolha de objeto sexual. Para contemplar tal objetivo, percorremos os textos de Freud em suas referências à bissexualidade, partindo das primeiras ideias formuladas nos diálogos com Wilhelm Fliess (1858-1928) e seguindo a evolução de seu pensamento. Evidenciamos como a noção de uma bissexualidade constitucional sedimentou o solo do complexo de Édipo e de seu destino, no entrelaçamento das identificações primárias, e como Freud derivou os conceitos de feminino e masculino, até reconhecer as lacunas que o tema imprimia à doutrina psicanalítica, particularmente pela sua impossibilidade de incorporar a teoria da bissexualidade à teoria das pulsões.

Seguimos a trilha dos desdobramentos do postulado freudiano para finalmente abordarmos o modo como ele impulsionou seus sucessores a novas leituras do enigma da bissexualidade. Desse curso destacamos as contribuições de Winnicott (1896-1971) e Bion (1897-1979), escolha que se justifica por serem autores que buscaram um diálogo entre a teoria da pulsão e a do objeto, tentando articular esses dois pilares metapsicológicos. Com esse recorte contextual, pretendemos, primeiramente, responder à questão: como entender a premissa freudiana de que somos bissexuais? E, segundo, a bissexualidade psíquica encerra-se numa condição constitucional do indivíduo ou são os objetos que nos fazem bissexuais, nas relações que se estabelecem desde o início da vida psíquica?

 

A construção freudiana da bissexualidade psíquica

A ideia de uma bissexualidade humana constitucional era corrente nas discussões filosóficas e científicas do final do século XIX. Presente no imaginário humano, no mito do surgimento do casal a partir de uma divindade andrógina, foi difundida por diversas religiões (Ceccarelli, 2005). O termo bissexualidade foi adotado pela sexologia da época para designar uma predisposição biológica, na sexualidade humana, dotada dos componentes macho/masculino e fêmea/feminino (Roudinesco, & Plon, 1998).

Se a introdução dessa ideia na psicanálise se deve à influência de Fliess, a noção de bissexualidade psíquica enquanto disposição humana universal, distinta da biologia, é uma construção freudiana. Como indica Masson (1986), na correspondência trocada por Freud e Fliess, entre 1887 e 1904, podemos acompanhar as teses de Fliess a respeito de uma bissexualidade natural (biológica) e a tomada da ideia por Freud para desenvolver sua noção de bissexualidade como organização psíquica.

A dimensão bissexual do ser humano já se apresentava nas primeiras ideias freudianas para a formulação de uma etiologia das neuroses. Progressivamente, a bissexualidade psíquica fundamentou as teorizações sobre o recalcamento, o desenvolvimento psicossexual infantil e o complexo edípico. Passou a ocupar um lugar substancial na formação das neuroses, particularmente no estudo da histeria. Até finalmente alojar-se no centro da teoria freudiana como "fator decisivo" (Freud, 1905b/2016, p. 140) da sexualidade humana. Em carta a Fliess em 1901, Freud chegou a anunciar que seu próximo trabalho teria o título "A bissexualidade humana". Pretendia "descer à raiz do problema" e dizer "a última e mais profunda palavra" (Masson, 1986, p. 448) sobre a questão que, afinal, permaneceria obscura por toda a sua obra.

Se a teoria da bissexualidade foi o vetor de uma união cada vez mais forte entre Freud e Fliess, promovendo ricos debates, foi também o pivô da ruptura da amizade. As diferenças conceituais em torno da questão já se acentuavam entre os dois e Freud foi acusado por Fliess de apossar-se de sua ideia. O impasse levou o criador da psicanálise a reafirmar, mais de uma vez, sua contribuição genuína à teoria de bissexualidade, salientando nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" que, sem levar em conta essa noção, "dificilmente poderemos chegar à compreensão das manifestações sexuais que realmente se observam no homem e na mulher" (Freud, 1905b/2016, p. 140).

 

O lugar central da bissexualidade nas neuroses

Ainda que Freud tenha mantido ambiguidade com relação à participação efetiva de Fliess na introdução do conceito, àquela altura ele radicalizaria sua concepção acerca da importância do fator psicológico em detrimento do biológico. Entendemos que essa convicção lhe deu o campo necessário para trabalhar o tema nas psiconeuroses. Desde a análise de Dora, estava convencido de que a bissexualidade ocupava um lugar central nas neuroses, como escreveu a Fliess em 1901, e insistiu cada vez mais na importância do fenômeno nos processos psíquicos.

Como sabemos, os sintomas histéricos de Dora revelaram a Freud, tardiamente, um sofrimento amoroso derivado de um conflito bissexual em relação ao desejo. Já em 1897, durante sua autoanálise, Freud atentara para a importância das fantasias na construção dos sintomas histéricos. A análise posterior do caso Dora levou-o a formular nova relação entre fantasias e sintomas. Ao reconhecer seu erro técnico de não ter percebido a tempo o impulso amoroso homossexual de Dora pela Sra. K., Freud (1905a/2016) admitiu ter ficado atrapalhado no tratamento de certos casos. Afirmaria depois, no artigo "As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade", de 1908, que a resolução de certos sintomas requer duas fantasias sexuais, uma de caráter feminino e outra, masculino.

Vemos que Freud reafirmava ali a natureza bissexual dos sintomas histéricos, que não apenas representam uma conciliação entre um impulso libidinal e um impulso repressor, como também a união de duas fantasias libidinais de caráter sexual oposto. Para ele, mais uma vez se confirmava a disposição bissexual inata do ser humano.

É interessante destacar como Freud desenvolveu seu conceito de recalcamento, inicialmente acreditando que tal mecanismo psíquico só era possível através da reação entre duas correntes sexuais, conforme escreveu a Fliess em 7.8.1901, e elegendo a bissexualidade como a mola propulsora deste mecanismo (Masson, 1986). Mas esse foi também o ponto central de divergência com Fliess, que conferia o motivo do recalque à constituição biológica bissexual: o que forçaria tal defesa seria a luta entre os caracteres sexuais e o sexo dominante afastaria para o inconsciente a representação mental do sexo oposto. Nessa perspectiva a bissexualidade permaneceria na configuração do recalcado. No texto "Batem numa criança", Freud (1919/2010) critica Fliess, sem citá-lo nominalmente, pela franca simplicidade de sua teoria, frágil por apoiar-se na certeza sobre o sexo do indivíduo, baseada no sexo anatômico.

Em vários momentos Freud reagiria à concepção de que o biológico determinaria os processos mentais relativos à sexualidade. No relato do caso de "O homem dos lobos", no qual discute os impulsos bissexuais observados na análise do paciente, Freud (1918/2010) relativiza sua ideia anterior afirmando que a relação com a bissexualidade não é exclusiva para explicar o recalque. O autor ressalta que certos casos podem levar a crer que é o conflito entre tendências masculinas e femininas que dá origem ao recalque e à formação de neuroses, mas, na verdade, é o Eu que põe em ação essa defesa, em benefício de uma das tendências sexuais, incluindo suas tendências morais.

O que está em jogo, para Freud, é a ideia reducionista de que o recalcado inconsciente, no homem, se restringe às moções pulsionais femininas e, na mulher, às masculinas. Já não é novidade para o autor que moções pulsionais podem ser igualmente reprimidas, tanto em meninas quanto em meninos.

Recordemos que Freud (1905b/2016, 1919/2010) contava com a bissexualidade para compreender as manifestações sexuais em homens e mulheres e suas escolhas de objeto, portanto, a oposição entre heterossexualidade e homossexualidade. A correlação inicialmente estabelecida por Freud entre os conceitos de masculino e ativo e de feminino e passivo, empregados como sinônimos, desencadeou grande controvérsia no meio psicanalítico. Embora o autor tenha feito ressalva quanto à ambiguidade desses termos, ainda hoje sua posição, por vezes biologicista e falocentrada, ecoa de forma a prejudicar uma leitura crítica que considere as aberturas deixadas pelo texto freudiano para se pensar a complexidade da sexualidade humana.

A obscuridade desses conceitos está colocada à psicanálise desde os primeiros registros de Freud. Quando escreve a Fliess, em 1899, que se acostumou a encarar cada ato sexual como um processo envolvendo quatro pessoas, de acordo com a hipótese aqui estabelecida, Freud não apenas se refere às implicações psíquicas de uma relação heterossexual e à bissexualidade. Ele remete, ainda que de forma implícita, ao problema da masculinidade e da feminilidade que vai permanecer em toda a sua obra, à mescla dessas identificações encontradas em cada pessoa e à posição a partir da qual desejamos e nos colocamos diante do mundo, o que nos expõe à questão do masculino e do feminino, para além da ordem biológica.

A ideia de uma libido única, de natureza masculina e ativa, apresentada por Freud nos "Três ensaios", parece ter reforçado suas convicções sobre a relação masculino-ativo versus feminino-passivo na dinâmica psíquica. É conhecida sua afirmação no terceiro ensaio que trata da diferenciação de homem e mulher: se soubesse dar um conteúdo mais preciso aos conceitos de masculino e feminino, seria possível defender que "a libido é, por necessidade e por regra, de natureza masculina, apareça ela no homem ou na mulher, e independentemente de o seu objeto ser homem ou mulher" (Freud, 1905b/2016, p. 139).

Mas a multiplicidade do pensamento freudiano possibilitou ao criador da psicanálise rever sua obra constantemente e buscar novos caminhos para a elucidação de conceitos complexos como o par masculino-feminino. Lacuna que ele nunca viria a solucionar, mantendo uma ambiguidade sobre o tema e antecipando o declínio desses conceitos, que ocuparia o debate psicanalítico entre os seus sucessores até a cena contemporânea.

 

O declínio do feminino e do masculino

O esforço de Freud é confirmado nas ressalvas feitas em extensas notas aos "Três ensaios". Em nota de 1915, destaca que os conceitos de masculino e feminino, se são inequívocos para o senso comum, na verdade estão entre os mais confusos da ciência. Ressalta no adendo que a diferença entre o saber popular e o campo científico estabelece pelo menos três sentidos para as noções de masculino e feminino: o de atividade e passividade, o biológico e o sociológico.

O sentido de atividade e passividade relaciona-se à descrição que Freud faz da libido como masculina, por ser a pulsão sempre ativa - ainda que esta possa buscar metas passivas. No sentido biológico, Freud observa que a atividade e suas manifestações, como a agressividade, são relacionadas à masculinidade. O sentido sociológico remete à relação de seres masculinos e femininos em sua realidade social, aos papéis por eles desempenhados culturalmente.

Na acepção do social, masculinidade e feminilidade são resultado das identificações que estruturam o Eu de acordo com os ideais de gênero atribuídos pela cultura. Desde quando chegamos ao mundo e somos designados menina ou menino, essa atribuição, nas palavras de Jacques André (2015, p. 1715), "ultrapassa muito a simples constatação, implicando uma massa de representações em rosa ou azul que precedem em alguns séculos, ou milênios, a criança que vem ao mundo" e submetendo-a a um destino social.

A toda essa problemática em torno do masculino e do feminino soma-se a posição que Freud tomaria no decorrer de sua obra, de que masculinidade e feminilidade puras não existem no sentido psicológico, nem no biológico. Em nota de 1915 aos "Três ensaios", sustenta que, em cada pessoa, pode-se ver uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os do outro sexo e uma conjugação de atividade e passividade, "tanto na medida em que esses traços de caráter psíquicos dependam dos biológicos como em que sejam independentes" (Freud, 1905b/2016, p. 139). Freud anteciparia em um século a convicção, hoje fundamentada por pesquisas genéticas, de que sexo masculino e feminino puros simplesmente não existem; ao contrário, como aponta Ainsworth (2015), são infinitas as combinações de componentes masculinos e femininos nos seres humanos.

Assim, masculinidade e feminilidade puras só podem ser vistas como construções teóricas e imprecisas, na medida em que os caracteres masculinos e femininos vão se apresentar de modo singular em cada pessoa, influenciados pela disposição bissexual e pela herança genética cruzada, como admitiu Freud (1925a/2011). O social participa dessas formações psíquicas a partir das produções dos ideais de gênero determinados pela cultura e, a nosso ver, os estudos de gênero trazem uma grande contribuição à psicanálise ao problematizar o campo imaginário do masculino e feminino. Não obstante, como nos indica Ayouch (2015), a bissexualidade psíquica permitiu a Freud desconstruir qualquer essencialização do masculino e do feminino.

Sabemos que o pensamento de Freud nunca se caracterizou como uniforme, mas por uma reavaliação de suas teorias à medida que se deparava com dificuldades clínicas. Entretanto, se masculinidade e feminilidade percorreriam toda sua obra como conceitos imprecisos, de difícil delineamento, a ponto de Freud admitir sua ignorância a respeito da sexualidade feminina, que fatores o teriam influenciado a insistir numa lógica binária para marcar a diferença sexual?

Embora Freud reconhecesse toda a complexidade na definição de masculino e feminino, em sua dimensão psíquica, não se pode desconsiderar o contexto histórico-cultural no qual emergia seu pensamento, na Viena vitoriana do final do século XIX. Não é difícil presumir que o revolucionário Freud, o primeiro analista a escutar e dar voz às mulheres e a compreender suas angústias de modo inteiramente novo, também incorporava os valores culturais vigentes, os quais vinculavam o feminino a atributos relacionados à passividade e o masculino, por sua vez, à atividade (Kehl, 2008; Vieira, 2009).

Muitas passagens da biografia de Freud levam a essa constatação: sua relação amorosa com Marta Bernays; sua inserção nos valores da época e na cultura judaica, ainda que fosse crítico severo desta; seu perfil conservador que dava grande importância à diferença (social) entre os sexos (Roudinesco, 2016).

Por outro lado, a dificuldade em tratar os conceitos de masculino e feminino parece estar também relacionada a um aspecto presente no pensamento freudiano e constante em sua obra: a equiparação das dicotomias fálico-castrado, ativo-passivo, presença-ausência, masculino-feminino. Glocer Fiorini (2015) ressalta que Freud nunca renunciou totalmente à ideia de que, no desenrolar do complexo de Édipo e de castração, a posse do pênis pelo menino e seu caráter ativo são equiparados ao masculino, e a vagina como receptora do pênis e seu caráter passivo se equiparam ao feminino. Baseando-se nessa sua premissa, podemos entender por que Freud negligenciou o caráter passivo das vivências psicossexuais do menino e o poder ativo da vagina - concepção que viria a ser explorada por vários pós-freudianos.

Tanto que, no trabalho "A organização genital infantil", Freud faz uma reparação do que considerou uma negligência nos "Três ensaios" acerca do desenvolvimento sexual infantil. No texto de 1923, a primazia do falo torna-se a principal característica da organização genital infantil. São introduzidos os três pares que, na teoria freudiana, caracterizam o desenvolvimento psicossexual a partir da primeira oposição sujeito-objeto: o par ativo-passivo, de organização sadicoanal; o par fálico-castrado, de organização fálica; e o par masculino-feminino, que na puberdade vai sustentar a diferença dos sexos. Freud (1923b/2011, p. 175) mantém a dicotomia masculino-ativo-fálico e feminino-passivo-castrado textualmente: "O masculino reúne o sujeito, a atividade e a posse do pênis, o feminino assume o objeto e a passividade".

Segundo Schaeffer (2002, 2009), somente o par masculino-feminino designa uma verdadeira diferença, a diferença dos sexos, enquanto o par ativo-passivo designa um par de opostos ou de polaridades e o par fálico-castrado remete a um funcionamento para tudo ou nada. A esses três pares, que vão permanecer operantes ao longo da vida, a autora acrescenta um quarto par, introduzido por Freud no artigo "Análise terminável e interminável": a bissexualidade e a recusa do feminino nos dois sexos. Essa nova dupla reporta à negação da diferença dos sexos, que se impõe como entrave à elaboração das pulsões bissexuais, no sentido de sua integração no psiquismo.

Deve-se ressaltar que a insistência de Freud na relação masculino-ativo e feminino-passivo foi rejeitada desde a primeira geração de pós-freudianos, reação disseminada na psicanálise pelos críticos do modelo binário e falocêntrico da teoria sexual de Freud. Muitos desses autores destacam-se pela expressão de seus trabalhos, a título de exemplo citamos André (1996), Chasseguet-Smirgel (1988), Horney (1967), Perelberg (2018), Schneider (2006).

Na trilha dessas contribuições, os processos de subjetivação podem ser hoje pensados a partir de uma ordem heterogênea e complexa, embora os discursos que sustentam o binarismo masculino-feminino estejam impregnados na cultura. Concordamos com Glocer Fiorini (2017) na ideia de que a lógica da complexidade ultrapassa a lógica binária do par masculino-feminino e isso não significa desconhecer os binarismos inseridos na cultura, mas incluí-los numa lógica hipercomplexa.

O próprio Freud novamente recuaria de suas afirmações anteriores, admitindo, em "O mal-estar na civilização", que a oposição entre os sexos se torna fraca diante da oposição entre atividade e passividade e reconhecendo seu engano em ter identificado a atividade com a masculinidade e a passividade com a feminilidade:

Estamos habituados a dizer que cada pessoa mostra impulsos instintuais, necessidades, características tanto masculinas como femininas; a natureza do masculino ou feminino, porém, pode ser indicada pela anatomia, mas não pela psicologia. Para esta, a oposição dos sexos empalidece ante aquela entre atividade e passividade, na qual identificamos precipitadamente a atividade com a masculinidade e a passividade com a feminilidade, o que de maneira nenhuma se confirma invariavelmente no reino animal (Freud, 1930/2010, p.70-71).

Uma importante discussão deve ser colocada quanto à teoria da bissexualidade pretendida por Freud. Na sequência do trecho citado acima, Freud reconhece a obscuridade da teoria da bissexualidade e lamenta a grave lacuna de não ter conseguido incorporá-la à teoria das pulsões. Sendo a pulsão sempre ativa e a libido de natureza masculina, como propôs Freud, a noção de bissexualidade constitucional não se articularia com esse corpo pulsional. Se nascemos pura pulsão, como conciliar essa premissa freudiana à de uma bissexualidade originária? Entendemos que esse dilema reforça nossa ideia de que a disposição bissexual do ser humano não deve ser tomada como fenômeno independente, mas está intimamente relacionada com seus objetos primordiais.

Os impasses teóricos surgidos a partir dos anos 30, no esforço freudiano para uma definição da feminilidade, intensificaram o problema em torno da associação dos pares ativo-passivo e masculino-feminino. Novamente Freud (1933) reviu suas formulações e, na famosa conferência sobre a Feminilidade, afirmou não ser possível dar nenhum conteúdo novo aos conceitos de masculino e de feminino; portanto, qualquer distinção desses termos associados a homem e mulher seria apenas convencional.

Desse modo, Freud parece ter percebido as influências dos costumes sociais nas suas teorizações sobre a sexualidade. Ayouch (2015) e Vieira (2009) destacam que os sujeitos bissexualmente construídos são uma resposta a uma demanda cultural, na divisão naturalizada do mundo por meio de uma lógica binária e assimétrica de compreensão da sexualidade humana. Ou seja, não é a anatomia, mas a cultura que se fixa como base de referência às noções de homem-mulher, masculino-feminino, ativo-passivo, heterossexualidade-homossexualidade.

Essa premissa nos convoca a novas questões: como se processa a construção desse sujeito inserido na cultura por meio da narrativa edípica, do modo como Freud propõe os processos de subjetivação e o acesso à diferença sexual? E como a bissexualidade intervém nesses processos, influenciando os destinos do complexo de Édipo? Mais ainda, nesse atravessamento do Édipo, quais os destinos possíveis à própria bissexualidade na psique?

 

A trama das identificações iniciais e o Édipo

Essas indagações remontam à complexa trama das primeiras identificações do indivíduo e sua relação com as escolhas de objeto. Na perspectiva freudiana, o mecanismo psíquico da identificação remete a um modo primeiro de relacionamento com o outro e está entre os processos constitutivos da psique. Antecede a escolha do objeto; pode-se dizer que é o primeiro e mais antigo modo de escolha do outro. Freud (1923a/2011) postulou que os primeiros objetos, alvos dos processos identificatórios do eu, são os pais.

Cabe aqui elucidar que mãe e pai são mencionados no presente trabalho como objetos em suas funções, ou seja, função materna e função paterna (Lacan, 1957-1958/1999), que podem ser tomadas por outros distintos da mãe e do pai reais e, desse modo, internalizadas. Assim a função pode ocorrer por ausência do objeto, como no caso de separação ou morte de um dos pares do casal parental, ou ainda remeter às diversidades sexuais e de gênero. Os estudos das neoparentalidades enfatizam que as funções materna e paterna se apresentam para além dos gêneros masculino e feminino e da diferença sexual anatômica.

A despeito da clareza de seu sentido simbólico para a psicanálise, esses termos geram polêmicas nas discussões contemporâneas. Glocer Fiorini (2015) tenta uma solução para a designação de função paterna, por entender que essa nomenclatura está sujeita a uma ordem androcêntrica que ocultaria o sentido da função simbólica (função do terceiro). A autora propõe o termo função terceira, a qual, no seu entendimento, reportaria exclusivamente ao sentido de função simbólica.

O fato é que esses objetos primordiais existem, na condição de objeto presente ou ausente, na fantasia do bebê. E é no tecido das primeiras identificações da criança com os objetos primários, supondo as funções materna e paterna, que surge a problemática edipiana e abre-se o caminho para a diferença sexual. É nesse sentido que Freud, no texto O eu e o id, faz alusão aos complexos processos identificatórios e às escolhas objetais relativas a pai e mãe, no primeiro período sexual. Nesse ponto, o autor atribui a dificuldade de esmiuçar o modo como se dão tais escolhas à "natureza triangular da situação edípica e à bissexualidade constitucional do indivíduo" (Freud, 1923a/2011, p. 39).

Em outras palavras, esses fatores respondem pela complexidade de explicar, por exemplo, o estatuto da heterossexualidade como provável destino do Édipo. Destino, para Freud, que não é traçado sem a interferência da bissexualidade originária, e esta impede que as primeiras identificações e escolhas objetais sejam claramente determinadas. Parece responder, também, pela ambivalência da criança com relação aos seus objetos primários.

Na descrição do complexo de Édipo em "O eu e o id", compreende-se a dificuldade mencionada por Freud e como ele recorreu à noção de bissexualidade constitucional para dar um sentido à natureza ambivalente das identificações da criança e às suas escolhas de objeto. Para Mezan (2014), é possível presumir que, desde Dora e seu conflito bissexual que não fora analisado a tempo, Freud debruçou-se a investigar a ambivalência em relação aos dois genitores, o que o teria levado a construir a versão completa do complexo de Édipo.

Inicialmente, Freud (1923a/2011) descreveu o Édipo no menino em sua forma positiva, sendo o seio materno protótipo da escolha de objeto e ponto de partida de todo o investimento da criança, que toma a mãe como objeto e se identifica com o pai. Durante algum tempo, objetos pai e mãe coexistem internamente desse modo, mas a intensificação dos impulsos sexuais da criança pela mãe torna o pai um obstáculo a esses impulsos. É quando se instala o complexo de Édipo e com ele a atitude ambivalente de ternura e hostilidade em relação ao pai. Diante da ameaça de castração, o desmoronamento do complexo edípico força o abandono do investimento na mãe, o que leva o menino a identificar-se com ela ou a fortalecer sua identificação com o pai. Para Freud, esse segundo desfecho permitiria uma consolidação da masculinidade no caráter do menino.

O Édipo na menina dar-se-ia da mesma forma, ou seja, sua atitude ambivalente com relação à mãe poderia resultar num fortalecimento ou estabelecimento de sua identificação com ela, fixando o caráter feminino da criança. Freud ressaltou que essas identificações, todavia, não ocorrem do modo esperado, pois não introduzem no eu o objeto abandonado, e apontou outro desfecho para o Édipo. Este, segundo o autor, mais observado nas meninas. Tendo que renunciar ao pai como objeto de amor, a menina pode se identificar com ele (o objeto perdido), no lugar da mãe, o que acentuaria sua masculinidade.

Esse trecho de "O eu e o id" evidencia, mais uma vez, a dificuldade de Freud (1923a/2011, p. 41) de lidar com o destino da sexualidade na mulher, quando afirma que a questão, na menina, é "se suas disposições masculinas são fortes o bastante". Portanto, a força relativa das disposições sexuais masculinas e femininas parece direcionar o desfecho do Édipo, para o menino e para a menina, em uma identificação com o pai ou com a mãe. Para o autor, é uma das formas pela qual a bissexualidade original interfere no destino do complexo de Édipo.

É nessa linha que Freud propõe o caráter duplo do complexo - o Édipo positivo clássico e o Édipo negativo -, que seria a outra forma como a bissexualidade original da criança intervém no destino de sua psicossexualidade. Ou seja, a atitude ambivalente do menino para com o pai e a sua escolha objetal terna pela mãe coexistem com uma atitude feminina carinhosa para com o pai e ciúmes e hostilidade com relação à mãe.

Freud (1923a/2011) assinala que a forma completa do Édipo, no caso da menina, ocorre com nuances específicas e a partir de 1931 ele detalha suas novas descobertas nos textos sobre a sexualidade feminina. Para a menina, a mãe é também o primeiro objeto de amor, com quem manterá um investimento intenso e duradouro e, no transcorrer do tempo, precisará fazer um duplo caminho pelo Édipo, tendo que mudar não somente o objeto do desejo, mas também a zona erógena dominante, diferentemente do menino para o qual ambos são conservados. Nesse sentido, para Freud, o clitóris é a principal zona erógena da menina na fase fálica, mas este deve ceder lugar à vagina. Na situação edípica, a menina deve deixar a mãe e o pai torna-se seu objeto amoroso.

Dessa maneira, na forma dupla do Édipo o destino do conflito na menina, para Freud (1931/2010, 1933/2010), pode tomar o caminho da identificação com a mãe e a busca pelo amor do pai; ou, negando-se a aceitar a castração, pode conservar a identificação com o pai em função da hostilidade em relação à mãe e da preponderância do fator masculino de sua constituição bissexual. Uma terceira via para a sexualidade feminina seria a inibição da atividade sexual levando à formação de sintomas neuróticos.

Com essa virada imposta à teoria da sexualidade infantil, Freud (1931/2010) declara no trabalho "Sobre a sexualidade feminina" que não se pode compreender a mulher, caso não se considere essa fase de ligação pré-edípica com a mãe. A mudança profunda admitida por ele àquela altura, acerca das relações precoces da menina com a mãe, caiu-lhe como uma surpresa, o que o fez comparar a fase pré-edípica da garota à "descoberta da civilização minoico-micênica por trás da grega" (Freud, 1931/2010, p. 374).

Mais tarde, em 1935, o pai da psicanálise faria uma retificação à sua "Autobiografia", reconhecendo as profundas diferenças entre o desenvolvimento sexual dos homens e das mulheres e admitindo que o paralelismo que manteve entre os dois sexos demonstrou ser infundado, pois era fundamentado na análise de homens e a teoria, daí derivada, ajustada para o menino (Freud, 1925b/2011). Podemos entender sua posição como uma nova confissão da insuficiência de sua teoria para abranger todas as vicissitudes da experiência psíquica que nos caracterizam como seres pulsionais que somos.

O masculino inscrito em uma mulher não é idêntico ao masculino inscrito em um homem, ou mesmo em outra mulher. Do mesmo modo, o destino do feminino em um homem é essencialmente diferente daquele em uma mulher, ou em outro homem. David (1997, p. 154) reitera que os esquemas conscientes e inconscientes são sempre diferentes e não invalidam os modelos teóricos e a lógica determinante do inconsciente, mas refletem a complexidade psicossexual humana, para ele, uma característica "não tanto incognoscível, mas inesgotável de Eros".

Com isso, pode-se considerar que o Édipo completo responde com mais clareza às complexidades e ambiguidades dos processos de subjetivação. Como reforçam os estudos atuais, esses processos emergem de modo heterogêneo e singular, nas identificações plurais, e se despregam de uma lógica binária restrita ao dualismo masculino-feminino para uma sobreposição de identificações. Masculino e feminino se misturam. É notável como, àquela época, Freud (1923a/2011) referiu-se a uma gradação no complexo de Édipo e a elos intermediários que exibiriam um peso maior ou menor dos componentes masculinos e femininos nas diferentes intensidades das identificações. Assim escreve em "O eu e o id":

A experiência analítica ensina, então, que em bom número de casos um ou outro componente dele se reduz a traços quase imperceptíveis, de modo que se produz uma série, numa ponta da qual está o complexo de Édipo normal, positivo e na outra ponta aquele contrário, negativo, enquanto os elos intermediários exibem a forma completa, com participação desigual dos dois componentes (Freud, 1923a/2011, p. 42; grifo nosso).

Pode-se entender a bissexualidade originária postulada por Freud como uma potencialidade a partir da qual se processa o Édipo em múltiplas vertentes. No nível edipiano, a bissexualidade atravessa as identificações cruzadas do Édipo. A elaboração das pulsões bissexuais, no encontro com os objetos primordiais, e a aceitação da castração tornam-se determinantes para a dissolução do complexo edípico no amplo movimento de diferenciação que ele promove e para o surgimento de seu herdeiro, o supereu. Por outro lado, de acordo com Chabert (2016), o impasse diante da ambivalência afetiva e da castração imobiliza o sujeito e o coloca frente a uma escolha impossível, num estágio inacabado de elaboração da bissexualidade originária.

Esses conflitos sob influência da bissexualidade podem ser identificados nas análises de Dora, do Homem dos Ratos, do caso Schreber e do Homem dos Lobos, nas quais a função da bissexualidade pode ser rastreada na negação, no desmentido ou na rejeição da castração. Na análise desses casos clássicos de Freud, Delouya (2003) observa que, qualquer que seja o movimento em relação à castração, todas essas defesas expressam um recuo para a bissexualidade originária. Se a bissexualidade tem ação organizadora ao nível das identificações, especialmente as cruzadas do conflito edípico, por outro lado a fantasia da bissexualidade constitui uma defesa da castração e da elaboração da diferença dos sexos, como Freud posteriormente avaliou no caso Dora.

Chabert (2016) e Haber (1997) propõem que esses movimentos defensivos, a dificultarem o trabalho de aceitação da diferença dos sexos e de alteridade, estão relacionados a uma ação dominante do narcisismo. Os autores aludem ao polo narcísico da bissexualidade psíquica, prevalente em certas psicopatologias. Em um estudo com pacientes narcísicos, Haber relata personalidades muito frágeis que reagem intensamente a separações, e ao mesmo tempo não podem reconhecer o outro na dimensão relacional, sugerindo um apelo ao reconhecimento de sua singularidade em sua dimensão narcísica. Para o autor, prevalece nesses estados uma bissexualidade psíquica não hierarquizada por uma identidade sexuada.

Um destino esperado da bissexualidade seria, no atravessamento do Édipo, sua elaboração e consolidação no psiquismo, que acompanharia, segundo Guignard (2009, p. 27), "a instalação serena de uma identidade de gênero", na qual masculinidade e feminilidade se entrelaçam progressivamente. Ou seja, os desejos bissexuais confluiriam para uma integração, num efeito organizador do desenvolvimento e do enriquecimento psíquico. Como se sabe, a expressão "identidade de gênero" foi utilizada por Stoller (1993) para indicar uma mescla de masculinidade e feminilidade no indivíduo, sendo que tanto uma quanto outra são encontradas em todas as pessoas, em formas e graus diferentes. Nessa acepção, identidade de gênero abraça a noção de bissexualidade psíquica, termo que o próprio Stoller nunca utilizou.

Nos possíveis destinos da bissexualidade, se o trabalho psíquico levar a uma integração mais harmoniosa dos afetos decorrentes da experiência edípica, o sujeito adulto poderá interagir satisfatoriamente em suas diferentes instâncias psíquicas com mais liberdade na expressão de suas qualidades de masculinidade e de feminilidade. No funcionamento psicossexual adulto, os recursos da bissexualidade podem servir para satisfação e para defesa do sujeito e se revezar em favor de uma maior maleabilidade psíquica e autonomia.

Pode-se sugerir que a condição de maleabilidade do psiquismo relaciona-se com a criatividade e suas origens, exposta por Winnicott (1971/1975). A integração entre os elementos feminino e masculino da personalidade, como propõe o autor, vai implicar em condições de maior flexibilidade do ser e na possiblidade de se viver criativamente a vida. Por outro lado, a dissociação desses elementos pode ser de tal gravidade que a pessoa pode não ser capaz de estabelecer vínculo algum com a parte expelida da personalidade, conforme Winnicott. A criatividade pode deixar de existir, ou se perde.

Essas proposições se aproximam da ideia de uma convivência pacífica do sujeito com a diferença, na forma proposta por Glocer Fiorini (2015). A autora parte de uma ressignificação do conceito de diferença sexual para abordar diversas perspectivas sobre a diferença e propor distintos níveis de significação: diferença anatômica, de gênero, psicossexual, imaginária e simbólica, diferença como reconhecimento do outro. Nesse contexto, para a autora, a diferença sexual - destino do Édipo freudiano e base da compreensão psicanalítica da sexualidade - responde a um dualismo fortemente impregnado na cultura e no psiquismo.

 

A diferença sexual e a virada de Freud

No percurso da obra freudiana, constata-se que o autor aponta progressivamente para uma mistura e sobreposição das noções de masculino e feminino, amparado nos conceitos da bissexualidade e do Édipo completo. Como buscamos demonstrar neste trabalho, uma leitura atenta das ideias de Freud permite pinçar de seu texto várias passagens que sugerem um descentramento da diferença binária de sexos (conceito que inclui o sexo biológico, investido dos valores da cultura) e da heterossexualidade como saída ideal, para uma heterogeneidade de posições, tendo em vista as múltiplas correntes psíquicas em jogo.

No entanto, ao final de sua obra Freud (1937/1987) faz nova virada, sugerindo devolver ao campo biológico a marca última e inelutável no estabelecimento da diferença dos sexos. No artigo "Análise terminável e interminável", em que relaciona as disposições masculinas e femininas em homens e mulheres e as resistências apresentadas por ambos no processo terapêutico, Freud refere-se ao repúdio da feminilidade como característica marcante da vida psíquica dos seres humanos e um desafio ao analista. Declara que a fonte mais poderosa de resistência à análise é, na mulher, a inveja do pênis e seu esforço para possuir um órgão genital masculino, e no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro homem.

Num visível pessimismo com relação aos esforços terapêuticos para superar tais resistências, Freud afirma no texto que as defesas do Eu não seriam suficientes para justificar o insucesso da análise. Segundo ele, o desejo da mulher de possuir um pênis e o protesto masculino contra a atitude passiva para com outros homens adentram todas as camadas do psicológico até "alcançarem o fundo" (Freud, 1937/1987, p. 270). Àquela altura de sua obra, Freud parecia convencido da ação subjacente do biológico no campo psíquico, o que o levou a afirmar que o repúdio da feminilidade "pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo" (Freud, 1937/1987, p. 270).

Ao assumir de certo modo um determinismo biológico, Freud não privilegiou a noção de bissexualidade implicada nas relações de objeto e nas identificações e posições do Édipo, ainda que tenha insistido no fato de que a recusa da feminilidade é uma atitude para com o complexo de castração. Sinalizando o biológico como fato dominante no repúdio da feminilidade, pareceu reaproximar-se da ideia de Fliess, de que o sujeito recalca o componente contrário ao seu sexo - posição tão combatida por Freud que, no mesmo texto, desautorizou o ex-amigo de explicar o recalque em termos biológicos, em vez de puramente psicológicos.

A afirmação de Freud permite conjecturar: na medida em que reconhece a recusa do feminino como uma rocha no caminho para o desfecho da análise, Freud sinaliza para outra rocha no destino da organização psíquica da bissexualidade. O quarto par indicado no texto de 1937 e sugerido por Schaeffer (2002, 2009) - a bissexualidade e a recusa do feminino - coloca-se como obstáculo ao reconhecimento da diferença sexual, uma vez que as pulsões bissexuais podem agir como defesa à elaboração da diferença.

A partir dessas observações, pode-se afirmar que a atitude psíquica de negação da diferença está inevitavelmente vinculada à recusa do feminino nos dois sexos. Schaeffer (2002, 2009) afirma que a recusa do feminino é a negação do que é mais difícil numa lógica anal ou fálica, ou seja, um sexo feminino invisível, estranho e temido. O feminino, desse modo, remeteria o homem à imagem do sexo castrado e lhe imporia o temor por seu próprio sexo: a abertura do corpo feminino e sua busca pelo gozo sexual são fonte de angústia, para o homem e a mulher.

Portanto, não se trata de renunciar à bissexualidade (no sentido psíquico) ou ao feminino. O destino dos desejos bissexuais dependerá de seu envolvimento na resolução do conflito edípico, com todas as suas variantes possíveis.

 

Nada existe de novo?

Freud elaborou alguns dos fundamentos teóricos da bissexualidade e recorreu a ela para compreender o latente que constitui os seres sexuados, suas condutas e escolhas inconscientes. Entendeu que esse fenômeno estava na base dos complexos processos do desenvolvimento da psicossexualidade, incluindo aí o jogo de afetos, fantasias e conflitos decorrentes destes. Mas não pôde dar uma resolução para a teoria da bissexualidade, como admitiu em 1930, ao reconhecer a obscuridade dessa noção e os embaraços à psicanálise por não conseguir integrá-la com a questão da feminilidade e com a teoria pulsional.

Entretanto, como lembra Haber (1997), as contradições do pensamento de Freud e as lacunas metapsicológicas deixadas pela bissexualidade psíquica não o impediram de recorrer a essa ideia ao longo de sua obra e de creditar sua importância para a teoria psicanalítica. Nas contradições e nos parâmetros colocados por Freud, seus sucessores buscaram redesenhar o percurso traçado por ele na busca de novas leituras para o enigma da bissexualidade. Percurso somente possível ao psicanalista na experiência do trabalho analítico e no conhecimento de sua própria bissexualidade psíquica, que será convocada no diálogo analítico.

Se nenhum psicanalista, depois de Freud, pôde descrever a bissexualidade estando livre de confusões e ambiguidades, como apontado por Haber, a complexidade do tema volta nossa atenção para a subjetividade do analista que é colocada em jogo e exige dele um intenso trabalho psíquico. Haber (1997) faz uma crítica sincera à dificuldade que o tema imprime nos analistas: cada um que se aproxima dessa noção "revive as incertezas, as contradições solicitadas pela dimensão bissexual nele e no outro, a dialética viva do masculino e do feminino, os problemas identitários e paradoxos do narcisismo" (Haber, 1997, p. 52).

As incertezas teóricas em nenhum momento reduziram a força do postulado de Freud. Winnicott, ao apresentar em 1966 sua teorização sobre a clivagem dos elementos masculino e feminino do indivíduo, o fez a partir da noção freudiana da bissexualidade. Declarou na ocasião que "nada existe de novo, dentro ou fora da psicanálise, na ideia de que homens e mulheres possuam uma 'predisposição no sentido da bissexualidade'" (Winnicott, 1971/1975, p. 103).

Essa premissa estabeleceu-se no movimento psicanalítico e não foi por menos que as interrogações deixadas por Freud deram margem a uma releitura do problema da bissexualidade. As novas gerações de psicanalistas desenvolveram a noção no campo da clínica, numa articulação dialética, considerando os aspectos positivos no caminho de uma integração no psiquismo, e os aspectos defensivos, no recuo a fantasias primitivas e totalizantes de poder ser tudo e ter tudo. A obra de Christian David publicada em 1992, La bisexualité psychique, é referencial na abordagem da bissexualidade psíquica no processo analítico.

Se a proposição freudiana é que no âmago da sexualidade humana impõe-se uma falta de objeto, seus sucessores buscaram destacar a importância do objeto e do outro (terceiro), que o modelo freudiano, centrado no aparelho psíquico individual e mais voltado à teoria pulsional, havia negligenciado. Jorge (2005) propõe que as dificuldades de Freud em definir claramente a bissexualidade e articular essa noção com a teoria pulsional devem-se ao fato de ele não ter isolado o objeto do desejo enquanto objeto radicalmente perdido, conceito resgatado por Lacan (1964/1985). Sendo o desejo causado por um objeto que falta, esse objeto do desejo que responde pela estrutura faltosa do sujeito é o inexorável como tal, propõe Lacan (1958-1959/2016). Falta que vai dizer respeito à inscrição na psique do objeto perdido.

Para Jorge (2005), esse conceito dá o alcance da ideia freudiana, não de uma bissexualidade constitucional e orgânica, mas da falta estrutural de inscrição do objeto do desejo no inconsciente. Nesse sentido, a disposição bissexual caracteriza-se por uma constante busca do Outro, daquele e daquilo que falta, remete à condição de incompletude do sujeito humano. Este, portanto, está implicado com o outro em sua condição pulsional, uma disposição que se caracteriza como uma potencialidade de vir a ter e que dependerá de como as figuras parentais entrarão em cena nesse psiquismo em construção.

Como visamos uma abordagem na perspectiva do pensamento psicanalítico contemporâneo, em sua dimensão de maior liberdade e intercâmbio entre distintas correntes - evitando, assim, reducionismos centrados exclusivamente nas relações de objeto -, nossa pesquisa dirigiu-se a autores que buscaram um diálogo entre a teoria da pulsão e a do objeto. Encontramos em Winnicott e em Bion o referencial teórico para a continuidade desse estudo.

Em Winnicott (1971/1975) temos um fio que conduz aos estágios precoces da bissexualidade psíquica, tomando como panorama a influência do objeto desde os primeiros movimentos pulsionais do sujeito. O psicanalista britânico dispôs suas ideias sobre a bissexualidade em uma teoria da constituição do ser humano que considera a teoria dos instintos - entendidos como impulsos biológicos - e a das relações de objeto com suas identificações iniciais (Lins, 1999). Convém ressaltar que a noção de falta para Winnicott (1958/2000) remete a um espaço que deve permanecer em estado potencial. Nesse espaço surgirão os objetos transicionais e o fantasiar.

Na concepção do espaço transicional, área intermediária que une mãe e filho e possibilita o encontro e a separação, Winnicott (1951/1975) entrelaçou suas ideias sobre a relação com a posse não-eu, oferecendo uma nova solução para o enigma da bissexualidade. Ao definir o objeto transicional como posse não-eu, propôs uma leitura diferenciada para o conceito de objeto, tanto como objeto que satisfaz, objeto de desejo, quanto como objeto fantasiado.

Winnicott (1951/1975) p artiu da noção freudiana de bissexualidade constitucional para tentar superar as dificuldades clínicas que identificava no processo analítico e teorizou sobre elementos masculinos e femininos em homens e mulheres, sua dissociação e a importância da integração entre eles.

Seu trabalho, publicado em 1971 no livro O brincar e a realidade, desenvolve a ideia de elementos feminino e masculino existentes tanto em meninos quanto em meninas. Nas análises de seus pacientes, Winnicott observava uma recorrente dissociação desses elementos da personalidade, resultando em que um ou outro poderia ser expelido, independentemente do sexo do indivíduo.

O que Winnicott percebeu não consistia em um conflito entre instâncias psíquicas, mas um mecanismo de defesa mais primitivo. Estava disposto a investigar as relações arcaicas entre mãe e bebê, diferentemente da relação edípica, que não explicava todas as patologias. Lins (1999) assinala que a dissociação observada por Winnicott tem a ver com o modo como a mãe, identificada a seu bebê, segura-o e o manuseia durante os cuidados corporais.

É importante destacar o modo como Winnicott (1971/1975) deslocou a noção de bissexualidade daquela formulada por Freud, de oposição entre masculino-fálico-ativo e feminino-castrado-passivo. Ele diferenciou as relações resultantes dos impulsos sexuais daquelas que ocorrem na primeira identificação com o objeto. Para Winnicott, ativo e passivo não eram termos corretos e por isso recorreu à terminologia "elementos masculinos e femininos" (Winnicott, 1971/1975, p. 109).

Winnicott relaciona o elemento masculino ao instinto (o fazer); e o feminino, ao seio (o ser). Se em Freud a libido é de essência masculina (ativa), e esta pode ter metas passivas, em Winnicott ativo e passivo são partes de um mesmo processo no elemento masculino. Desse modo, o elemento masculino puro está ligado ao erotismo e à satisfação das moções pulsionais, o que pressupõe separação e um processo mais complexo de elaboração. O elemento feminino puro, por sua vez, remete a uma identidade com o objeto indiferenciado do sujeito e constitui a base de todas as experiências de identificação posteriores. Embora Winnicott proponha a coexistência desses dois elementos no psiquismo do sujeito, independentemente de seu sexo biológico, nessa concepção parece restar uma essencialização de gêneros, ao sugerir manter, de certa forma, um atrelamento dos termos masculino/fazer/ativo e feminino/ser/passivo.

Ao descrever o elemento feminino puro, Winnicott (1971/1975, p. 115) faz uma crítica à psicanálise tradicional, que centra a teoria da sexualidade em um aspecto da natureza humana, o elemento masculino puro, e reporta à inveja que homens teriam das mulheres:

A psicanálise talvez tenha concedido atenção especial a esse elemento masculino ou aspecto impulsivo da relação de objeto, e negligenciado, contudo, a identidade sujeito-objeto para a qual chamo a atenção aqui, identidade que se encontra na base da capacidade de ser. O elemento masculino faz, ao passo que o elemento feminino (em homens e mulheres) é. [...] aqui encontramos inclusive uma maneira de afirmar a inveja profundamente localizada que uma pessoa do sexo masculino sente das mulheres, cujo elemento feminino os homens tomam como evidente, às vezes erroneamente.

Essa relação negligenciada do elemento feminino puro, Winnicott afirma não ser ainda experiência de satisfação ou frustração, porém a mais fundamental, a experiência de ser. Bebê e objeto são um. A mãe, como personalidade total, possui os elementos masculino e feminino. Sendo o seio que faz (masculino, em sua face ativa ou passiva), estabelece relações pulsionais com seu bebê. Sendo o seio que é (feminino), identifica-se com ele.

É nesse jogo de identificações que o bebê estabelece uma dependência absoluta e, posteriormente, perde a ilusão de onipotência. O objeto mãe passa a ser percebido como separado, tendo o bebê a experiência de satisfação ou frustração, como também a experiência de ser ou de não ser, quando poderá obter, ou não, o sentimento de si mesmo.

A relação primitiva com a mãe é a condição para se edificar o self e se estabelecer uma identidade. Premissa que leva Winnicott a referir-se a uma bissexualidade alcançada, em outras palavras, a expressão do eu (self) total: a experiência de ser tem continuidade na experiência de fazer criativo e cria a possibilidade de integração entre os elementos feminino e masculino da personalidade. O masculino, no entanto, já estaria presente no indivíduo, através da bissexualidade psíquica da mãe.

A leitura de Winnicott permite pensar que é na relação primeira com o objeto materno que se constitui a bissexualidade psíquica, e no espaço potencial entre mãe e bebê se inscreve o outro objeto - o lugar simbólico do pai (terceiro) presente no psiquismo da mãe. Inclui-se aí a função fundamental do psiquismo da mãe e do outro objeto nas primeiras representações da criança.

A contribuição de Winnicott para a ideia da bissexualidade psíquica deve ser entendida no sentido do deslocamento que ele propõe à noção apresentada por Freud: em vez dos pares masculino-fálico-ativo e feminino-castrado-passivo, elementos masculino e feminino integrados (ou dissociados) formando a personalidade da criança. Winnicott (1951/1975) descreveu um ambiente inicialmente não diferenciado entre o bebê e a mãe, cujas qualidade e quantidade de provisões ambientais estão, para ele, diretamente relacionadas à possibilidade de indivíduos viverem criativamente ou terem dúvidas sobre o valor do viver.

O conceito de rêverie de Wilfred Bion (1962/1991, 1967/1994) permite avançar nesse entendimento. Bion pressupõe uma capacidade de devaneio da mãe, um estado mental aberto que dá um sentido à atividade do bebê e pode receber, decodificar e significar as angústias dele e somente depois devolvê-las, metabolizadas. Vê-se que Bion supõe uma relação de objeto desde as origens da vida psíquica: segundo o autor, o bebê busca em primeiro lugar o psiquismo da mãe, para que este possa conduzi-lo ao seio. Bion parte da ideia de uma preconcepção inata do seio, um estado de expectativa por parte do bebê.

Para esse autor, a mãe que dispõe de rêverie oferece ao bebê sua capacidade de conter os sentimentos e angústias, nomeando-os e transformando-os. Isto possibilita à criança, num segundo momento, desenvolver sua própria continência psíquica. O termo rêverie serviu a Bion (1962/1991) para designar um movimento ativo na base da origem do psiquismo. Note-se que o bebê não faz uma simples expulsão de conteúdos intoleráveis de sua mente; ele tem a expectativa (preconcepção) de encontrar um espaço aberto disposto a receber e a conter suas necessidades e angústias. Esse espaço (psique materna) onde o bebê projeta seu conteúdo, Bion chamou-o de continente.

O autor supõe que a mãe com rêverie é capaz de adaptar-se às necessidades da criança e tem uma razoável elaboração de sua própria bissexualidade psíquica. Esse processo depende da internalização do casal parental no psiquismo da mãe e de sua relação com cada um dos pais, favorecendo à mãe acolher seu bebê em sua singularidade.

Entendemos que, nessas condições específicas e favoráveis, a criança tem um solo favorável para internalizar uma dupla parental amorosa e criativa e elaborar sua bissexualidade psíquica, que dependerá ainda de seus movimentos identificatórios e suas inter-relações com os objetos da travessia edípica. É aqui que se dá a contribuição de Bion ao tema.

A relação com os objetos primários internalizados e o investimento amoroso trazem a possibilidade de uma integração da bissexualidade psíquica do bebê. Essa ideia corrobora nossa hipótese de que são os objetos que nos fazem bissexuais, nas relações que se constituem nas origens da vida psíquica.

 

Considerações finais

Nosso propósito de apresentar o desenvolvimento da noção de bissexualidade psíquica na obra de Freud e suas implicações teóricas para a psicanálise, das quais se ocuparam gerações sucessivas de psicanalistas, leva-nos a considerações sobre as condições em que se dá a internalização dos objetos parentais no psiquismo, com espaço para um e outro coexistirem no inconsciente do sujeito. Esse processo somente é possível levando-se em conta a elaboração do complexo de Édipo em sua configuração dupla - positivo e negativo - que resultará na dupla identificação do sujeito com as referências do masculino e do feminino.

Como sintetizou Delouya (2003), lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade originária. Defendemos que essa tarefa pressupõe um percurso do sujeito pelos processos complexos de identificação com as figuras parentais, de modo a acolher a diferença em suas distintas perspectivas, implicando também acolher a si mesmo em sua subjetividade e acolher o outro que comporta a diversidade. Pode-se afirmar que, potencialmente, a bissexualidade tem função organizadora nos processos de subjetivação e de aceitação do diverso, na medida em que abre o caminho para a coexistência dos objetos primordiais; sua integração na vida psíquica dependerá da elaboração dos conflitos existentes com esses primeiros objetos.

A importância do tema da bissexualidade para o campo psicanalítico pode ser atestada pelos múltiplos alcances que essa noção comporta na teoria freudiana e de seus sucessores. Ao longo deste trabalho quisemos destacar as várias relações que Freud estabeleceu, no decorrer de sua obra, entre a bissexualidade e os processos psíquicos que interferem no desenvolvimento da psicossexualidade - as identificações, escolhas de objeto, fantasias e conflitos da constelação edípica. Essas relações reforçam a ideia de uma função mediadora e de ligação da bissexualidade psíquica (David, 1992), o que nos impulsiona a conjecturar sobre um trabalho psíquico da bissexualidade, no sentido de uma interação progressiva das polaridades sexuais e, desse modo, da integração das disposições bissexuais no psiquismo, determinante para o desfecho do complexo edípico e a formação do supereu.

A elaboração da bissexualidade no sentido de integração dos aspectos masculino e feminino da sexualidade presentes no indivíduo - o que David (1992) nomeou processo inconsciente de bissexualização - favorece o reconhecimento da alteridade. Esse fato evidencia a importância clínica do conceito nos processos de diferenciação para a construção subjetiva e a autonomia da pessoa, o que justifica pensar a bissexualidade como um elemento ordenador de todo processo de subjetivação. Não é demais afirmar que se trata de um pilar da teoria da sexualidade e da própria teoria psicanalítica, dada a relevância que Freud lhe atribuiu.

Antes de ser vista como um fenômeno que interfere e confunde as intrincadas relações do sujeito sexual, a bissexualidade evidencia a existência de dois no psiquismo, a marca do objeto em sua dupla referência do masculino e do feminino. Configuração que, como defendemos ao longo do artigo, não segue uma ordem binária e restritiva, mas uma ordem complexa e diversa, que considera o ser humano em sua singularidade e sua pluralidade, condição própria da experiência psicanalítica.

 

 

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Artigo recebido em: 01/05/2018
Aprovado para publicação em: 26/11/2019

Endereço para correspondência
Cláudia Aparecida Carneiro
E-mail: claudiacarneiro@hotmail.com
Eliana Rigotto Lazzarini
E-mail: elianarl@terra.com.br

 

 

*Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília/UnB. Psicóloga, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica Internacional/IPA e da Sociedade de Psicanálise de Brasília/SPBsb.
**Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília/UnB, com Pós-Doutorado pela Université Sorbonne Paris XIII. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.

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