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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Miragens do Eu: angústia, desejo e produção estética do corpo feminino ideal

 

Mirages of the Ego: anguish, desire and aesthetic production of the ideal female body

 

Mirajes del Yo: angustia, deseo y producción estética del cuerpo femenino ideal

 

 

Eveliny Barbosa Coelho da SilveiraI*; Shimênia Vieira de Oliveira Cruz**; Roberta de Sousa MéloII***

IInstituto de Ensino Superior em Psicologia e Educação - ESPE - Brasil
IIUniversidade Federal do Vale do São Francisco - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho parte da concepção psicanalítica e socioantropológica de que o corpo, para além de seu estatuto biológico, é o território onde o sujeito produz sentidos e significados sobre si e sobre o mundo a partir da relação que estabelece com o contexto social. Com base nessa concepção, este estudo objetivou investigar os lugares atribuídos ao corpo nas produções subjetivas das mulheres participantes, circunscrevendo as dimensões de angústia e desejo, haja vista a supervalorização da imagem corporal na contemporaneidade e o crescente desencadeamento de diversas modalidades de sofrimento psíquico atrelado a esse processo - especialmente no universo feminino. Trata-se de uma pesquisa de cunho exploratório que utilizou o método de estudo de caso de modo a aprofundar a compreensão dos discursos trazidos por três mulheres, selecionadas por conveniência. A análise dos dados foi feita à luz do referencial teórico da psicanálise de orientação lacaniana e da socioantropologia do corpo. Os depoimentos evidenciam que as construções subjetivas e corporais dessas mulheres são fortemente marcadas pelo sofrimento por não se adequarem aos padrões estéticos em que se colocam a falta e a precariedade do corpo como atributos negativos. Por outro lado, as histórias também nos falam de modos de questionamento e da subversão dessas imposições.

Palavras-chave: Corpo feminino, produção corporal, psicanálise, socioantropologia do corpo.


ABSTRACT

The present work starts from the psychoanalytic and socioanthropological conception that the body, beyond its biological status, is the territory where the subject produces senses and meanings about himself and the world, through the relationship he establishes with the social context. This study aimed to investigate the places attributed to the body in the subjective productions of its participating women, circumscribing the dimensions of anxiety and desire, given the overvaluation of body image in contemporaneity and the increasing triggering of various modalities of psychological suffering related to this process - especially in the female universe. It is an exploratory research that used the method of case studies in order to deepen the understanding of the discourses brought by three women, selected by convenience. The analysis of the data was made in the light of the theoretical reference of the psychoanalysis of Lacanian orientation and of the socioanthropology of the body. The testimonies show that the subjective and corporal constructions of these women are strongly marked by the suffering in not adjusting to the aesthetic standards in which the lack and the precariousness of the body are placed as negative attributes. On the other hand, their stories also tell us about ways of questioning and subversion of these impositions.

Keywords: Feminine body, body production, psychoanalysis, socioanthropology of the body.


RESUMEN

El presente trabajo parte de la concepción psicoanalítica y socioantropológica de que el cuerpo, además de su estatuto biológico, es el territorio donde el sujeto produce sentidos y significados sobre sí y sobre el mundo, a partir de la relación que establece con el contexto social. En este sentido, este estudio tuvo como objetivo investigar los lugares atribuidos al cuerpo en las producciones subjetivas de las mujeres participantes, circunscribiendo las dimensiones de angustia y deseo, hay vista la sobrevalorización de la imagen corporal en la contemporaneidad y el creciente desencadenamiento de diversas modalidades de sufrimiento psíquico atado este proceso, especialmente en el universo femenino. Se trata de una investigación de cuño exploratorio, que utilizó el método de estudios de caso para profundizar la comprensión de los discursos traídos por tres mujeres, seleccionadas por conveniencia. El análisis de los datos se hizo a la luz del referencial teórico del psicoanálisis de orientación lacaniana y de la socioantropología del cuerpo. Los testimonios evidencian que las construcciones subjetivas y corporales de estas mujeres están fuertemente marcadas por el sufrimiento en no adecuarse a los patrones estéticos en que se colocan la falta y la precariedad del cuerpo como atributos negativos. Por otro lado, las historias también nos hablan de modos de cuestionamiento y de subversión de esas imposiciones.

Palabras clave: Cuerpo femenino, producción corporal, psicoanálisis, socioantropología del cuerpo.


 

 

Introdução

O corpo é assinalado pela tradição filosófica como aquilo que demarca a presença do sujeito no mundo, terreno em que se dá o encontro daquilo que é singular de cada um com a esfera social e seus ditames (Barros, 2013). De modo a compreender o fenômeno corporal tal como se expressa hoje, faz-se necessária a tarefa de remontar a períodos pregressos, uma vez que este esforço representa, além de uma simples enunciação, a compreensão de como esse processo se desenrolou até desembocar na contemporaneidade, reiterando a natureza dinâmica do corpo (Barbosa, Matos, & Costa, 2011).

Historicamente, as representações engendradas acerca do corpo assumiram múltiplas facetas, sempre permeadas e marcadas pela cultura. É imprescindível sublinhar, no entanto, que, em cada um dos períodos históricos, o corpo feminino figurou como muito mais impregnado pelos tabus e ditames sociais, representado como incógnito, tácito. Os valores morais gregos com relação ao corpo e ao sexo, bem como a produção dos ideais de beleza, eram pensados somente pelo viés masculino e, assim, os prazeres não eram de domínio das mulheres, que eram reduzidas à função de submissão aos homens (Barbosa, Matos, & Costa, 2011). Nos momentos históricos ulteriores, não há mudança nessa ordem de pensamento e o corpo da mulher é reiterado enquanto negativo em detrimento ao masculino - vide o corpo feminino evidenciado enquanto armadilha demoníaca, na Idade Média, ou a valia assimétrica dada ao corpo do homem branco, heterossexual e de classe abastada nos processos de investigação científicos da Era Moderna, parâmetros de referência a partir dos quais justificavam-se a incompletude e falta das demais formas de existência, continuidade à tradição de silenciamento e precarização feminina (Costa, 2002).

Com Freud e a iniciativa da psicanálise, é inaugurado um discurso de contracorrente à racionalidade científica moderna e seu projeto civilizatório de controle dos corpos: em detrimento de um modelo de subjetividade fundamentalmente marcado pela racionalidade, a psicanálise afirma o sujeito do inconsciente, fendido (Lacan, 2003). A mulher freudiana, pelo discurso histérico, denuncia no corpo a sociedade fálica que sufocava as tentativas de exteriorização do desejo feminino e põe em xeque o saber médico que, até então, se julgava universal e onipotente. Sendo assim, o corpo que é de interesse da psicanálise é o erógeno, pulsional, a totalidade de uma cadeia de elementos significantes (Cukiert, 2004).

Por esse viés se confirma a compreensão de Le Breton (2007) de que o corpo é socialmente construído por suas manifestações no cotidiano, mas também pelas teorias que empreendem o esforço de explicá-lo. Ao passo que a medicina tradicional buscava se apropriar do corpo via intervenções que tinham como objetivo reconhecer e corrigir suas incompletudes e imperfeições, a psicanálise percorre o caminho contrário, legitimando a falta enquanto constituinte do sujeito e condição sine qua non para que ele seja desejante (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

Em contraponto à trajetória ocidental que demarca a falta enquanto fonte de frustração e de produções de relações de poder, a psicanálise inaugura a noção de que, em sua origem, a satisfação do desejo é sempre seccionada, traumática e marcada pela descontinuidade entre um ser e outro, o que impossibilita a vivência total de prazer. Para o ser humano, a satisfação é sempre parcial e a angústia da incompletude é mediada pela palavra, haja vista a insuficiência do objeto eleito - que remonta não à dimensão material, mas a uma "Coisa", uma marca significante constitutiva desse objeto que o torna precioso (Alves, & Almeida, 2017).

Posteriormente, Lacan desdobra os conceitos de Freud sobre o corpo, atrelando este aos três registros fundamentais - Real, Simbólico e Imaginário. O registro Simbólico cumpre a função de ordenador pela via do discurso (Sternick, 2010), marcando o corpo pelo significante (Cukiert, 2004); já do ponto de vista do Imaginário, que trata da relação que o sujeito estabelece com a formação da sua imagem, e, portanto, com o eu (Sternick, 2010), o corpo é delineado enquanto propriamente como imagem (Cukiert, 2004); na dimensão do Real, o corpo é assinalado pelo gozo (Cukiert, 2004) e a repetição que lhe é intrínseca, na tentativa de atribuir sentido ao que não tem sentido (Sternick, 2010).

Ainda posta como fonte inesgotável de estudo para a ciência, a dimensão corporal, atualmente, adquire um novo estatuto graças a disciplinas como a psicologia, as ciências sociais, a filosofia e a psicanálise: nem materialidade dada por Deus aos humanos, como asseverado pelo cristianismo, tampouco exclusivamente orgânico agora é assinalado pela tríade biopsicossocial. Se outrora o regimento social era sustentado pelos dogmas religiosos e determinações das instituições políticas, atualmente verifica-se um declínio desses grandes códigos de conduta propulsionado pelo saber científico e pelas novas tecnologias. Apoiado nessa desagregação dos valores tradicionais, o capitalismo, amplamente estabelecido na cena contemporânea, ao contrário dos discursos predecessores, fomenta o acesso ao gozo, especialmente pela via do consumo (Lustoza, Cardoso, & Calazans, 2014).

A alienação estabelecida pela ciência moderna entre o sujeito e a dimensão corporal trouxe, por um lado, elementos basilares para um posterior entendimento cultural do corpo como fonte de angústia. Pode-se dizer que a perspectiva cartesiana de se reconhecer como sujeito pela capacidade cognitiva, subtraindo, nesse processo, o valor do corpo, traduz, de algum modo, o caráter reconfortante da possibilidade de exercer algum domínio de si mesmo em meio às contingências. Isso parece radicalizado no contexto contemporâneo, o de uma sociedade capitalista de consumo, dadas as inesgotáveis ofertas de recursos do mercado que, em aliança com as inovações tecnológicas, enaltece a plasticidade do corpo como elemento a ser apropriado pelos nossos projetos subjetivos, outorgando-nos, assim, o poder de "dominar a transitoriedade inerente à existência" (Silva Junior et al., 2012, p. 272).

Ao forjar, através de suas representações do corpo, novos sentidos da "imperfeição" humana, a contemporaneidade demarca um modelo de sujeito capaz de remediar, via consumo, uma precariedade socialmente fabricada. Diante disso, nosso interesse pela leitura psicanalítica articulada a uma abordagem socioantropológica do corpo emerge precisamente em relação ao endereçamento do sujeito a uma rede de interlocuções (Marsilac, & Sousa, 2012), no que reconhecemos forças sociais que interpelam sua corporeidade e o atravessam em seu devir, trazendo implicações para o tema de sua singularidade.

A "afirmação da onipotência imaginária dos sujeitos" (Silva Junior et al., 2012, p. 272), emblemática dos arranjos sociais recentes, figura em modelos como o de corpo-rascunho apresentado por David Le Breton (2007) que, por meio de uma perspectiva socioantropológica, analisa os empreendimentos tecnocientíficos de transformação corporal. De tal modo, o corpo vê-se disponível a manipulações incansáveis dentro de um projeto que fomenta tentativas desenfreadas de se distanciar do Real (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

Aliados à voracidade capitalista, os recursos midiáticos promulgam a ideia de um corpo ilimitadamente maleável (Barros, 2013). As práticas relacionadas à corporeidade não mais se dirigem ao saber do corpo que se tem, mas sim ao gozar deste, modificando o incompleto e impossível de suportar. A pergunta que se impõe ao sujeito é do plano do agir: "o que fazer do seu corpo?" (Miller, 1999), em desafio à ameaça da falta.

Aqui reconhecemos que os empreendimentos contemporâneos que pretendem o melhoramento da condição humana pela retificação do corpo (Le Breton, 2007) não deixam de atualizar o processo histórico da fabricação da incompletude feminina, ao qual já nos referimos, e que são as produções corporais e subjetivas de mulheres que continuam sendo mais diretamente atingidas por esse tipo de projeto. Como pontuam Lima et al. (2013, p. 54), "a grande adesão feminina a essas inovações ressalta as implicações psíquicas da constituição do ser mulher". Mas, se antes se esperava da mulher o recolhimento à vida doméstica e ao cuidado da família, preservando sua aura virginal, na contemporaneidade o jogo é invertido: o protótipo atual de feminilidade é o da mulher bela e sensual, que oferta seu corpo como objeto narcísico de gozo e é bombardeada repetidamente por ofertas de manutenção de um corpo intocado pelas marcas do tempo (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013). Assim, a representação de corpo feminino ideal é constituída pela tríade beleza-saúde-juventude, um corpo que se construa pelo usufruto da parafernália de técnicas, intervenções e produtos ofertados às mulheres como garantia de um protótipo total de feminilidade (Silva, & Rey, 2011).

Nesse panorama, a singularidade é articulada às intervenções e demarcações feitas no corpo, via ostentação de um protótipo estético ideal. O sujeito ora oferece o corpo à visão e aprovação do Outro, subjugado a seus ditames, ora tenta evadir o olhar funesto, que devasta o desejo e aponta a insuficiência do objeto que deve ser constantemente atualizado (Sternick, 2010). A falta sinalizada na carne se revela como algo intolerável nesse processo e, assim, o corpo assume o caráter de matéria que deve, por uma via ou outra, ser modificada e retificada, enquanto parte da construção identitária do sujeito contemporâneo (Silva Junior, & Moreira, 2013).

Reconhecendo o valor da experiência subjetiva na construção da imagem de si, este estudo buscou investigar os lugares atribuídos ao corpo nas produções subjetivas das mulheres participantes do estudo.

 

Método

O presente estudo assume um caráter qualitativo que objetiva, primordialmente, compreender de forma aprofundada os significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes de cada sujeito (Minayo, 2009). Sendo assim, não é uma pesquisa que assume a pretensão de quantificar e generalizar os dados coletados para uma determinada população.

Como referencial teórico foram utilizadas a socioantropologia do corpo, com enfoque na leitura de Le Breton (2007), e a teoria psicanalítica de orientação lacaniana - esta última, uma vez aplicada à pesquisa, cumpre seu papel "em extensão", que segundo Lacan (2003, p. 251) implica em "[...] tudo o que se resume à função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo [...]", ou, ainda, àquilo que o psicanalista pode conhecer ao investigar as diversas manifestações subjetivas humanas de acordo com seus contextos de vivência (Silva, 2013).

A socioantropologia aproxima-se da discussão psicanalítica, então, ao conferir ao corpo o lugar de meio em que "[...] nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva", situando-o como "o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator" (Le Breton, 2007, p.7).

Em consonância com a proposta do método qualitativo, este trabalho se configura como estudo de caso, o que permite explorar os sentidos, circunstâncias e motivações de um fenômeno, revelando-o tal como é, ainda que sem uma intervenção direta sobre ele (Fonseca, 2002). O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco (CEP-UNIVASF), em conformidade às diretrizes da Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde e, somente após a sua aprovação (parecer nº 2.677.467), deu-se andamento à seleção de participantes e coleta de dados.

Para a realização da pesquisa foram selecionadas três participantes, recrutadas por convite aberto através de dois meios eletrônicos: grupos de redes sociais (WhatsApp) e pela ferramenta stories da rede social Instagram de uma das pesquisadoras. Foi ressaltada, em ambas as formas de divulgação, a importância de que as interessadas em participar da pesquisa entrassem em contato com a pesquisadora unicamente por via privativa (mensagem privada ou e-mail), de modo a proteger suas identidades e minimizar possíveis constrangimentos.

Um dado metodológico notável a respeito do processo de convite das colaboradoras foi a grande receptividade e disponibilidade das mulheres em falar de suas experiências, demonstrada no grande número de respostas - cerca de vinte - em menos de uma hora, em apenas dois meios de divulgação. Frente à dinâmica histórica de silenciamento e precarização do corpo feminino, o posicionamento dessas mulheres demarca a necessidade de tomada de palavra sobre seus processos subjetivos na relação com seus corpos.

A seleção das participantes foi feita por sorteio aleatório dentre aquelas que se dispuseram a participar da pesquisa, obedecendo a critérios de inclusão pré-estabelecidos, sendo eles: a) quer seja cis ou transgênero, identificar-se com o sexo feminino; b) ter a idade mínima de 18 anos completos; c) residir nas cidades de Petrolina - PE ou Juazeiro - BA e d) estar de acordo com os termos explicitados no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As participantes foram três mulheres cis gênero, que aparecem sob os pseudônimos de Diana, 22 anos, bissexual e assistente social; Ísis, 23 anos, heterossexual e psicóloga e; Kali, 37 anos, heterossexual e psicóloga.

A coleta de dados ocorreu no Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI) da UNIVASF, de modo presencial, entre os meses de junho e julho de 2018, em salas de atendimento individualizado, sendo gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Dispôs-se de um roteiro de entrevista semiestruturado, viabilizando um diálogo informal e espontâneo, mas orientado por algumas perguntas disparadoras. As questões referiam-se às experiências subjetivas das mulheres na relação com seu próprio corpo a fim de compreender como se dá essa vinculação, suas implicações e reverberações nos processos de construção de autoimagem. Assim, a pesquisa foi aqui concebida pela via "[...] da travessia de observações e escutas realizadas pelo seu mundo interior, resultando em produção narrativa significada pelas suas experiências e vivências subjetivas" (Silva, 2013, p. 42).

Para o processo de análise de dados, foram selecionados conteúdos das falas das participantes organizados em categorias segundo a recorrência das temáticas discursivas e que se mostraram relevantes à proposta do estudo. Posteriormente, esses achados foram analisados à luz da socioantropologia do corpo de Le Breton e da teoria psicanalítica lacaniana, com o intuito de elucidar pontos de concordância e discordância, bem como beneficiar a discussão interdisciplinar das problemáticas despontadas.

De modo a conferir uma estrutura metodológica que permitisse organizar e, assim, abordar de forma aprofundada as dimensões reveladas pelos discursos das participantes, estes foram concatenados em três categorias de análise construídas a partir das falas mais presentes das participantes, a saber: "'Espelho, espelho meu...': 'o delineamento de si em paralelo ao Outro'", categoria que propõe o debate em torno das experiências subjetivas dessas mulheres na relação com o próprio corpo, articulando-se, aí, a indissociável esfera social e influência do Outro nessas construções; "O corpo que será", na qual a discussão é dedicada à passagem pela adolescência, um período de vida que se destaca na constituição identitária para essas mulheres; e "Intervenções sobre o próprio corpo para um projeto melhorado de si", categoria de discussão em que se empreende o esforço de debater as projeções feitas pelas mulheres entrevistadas quanto ao porvir de seus corpos, bem como as ações e modificações possíveis para estes, e de que modo essas práticas de manipulação corporal se vinculam às elaborações difundidas culturalmente a respeito do corpo feminino.

 

Resultados e discussão

Desde o momento inicial de cada entrevista, foi possível identificar uma mesma postura nas três participantes, expressa em um misto de inquietude, embaraço e breves segundos de confusão ou receio diante da pergunta disparadora "Como você vê seu próprio corpo?". O silêncio advindo da hesitação dessas mulheres vem reafirmar o pressuposto psicanalítico e socioantropológico de que as questões relacionadas ao corpo perpassam instâncias outras que não somente a anatomia.

"Espelho, espelho meu...": o delineamento de si em paralelo ao Outro

Para o desenvolvimento da presente categoria, centrada nas articulações entre as vivências sociais dessas mulheres e os modos como concebem o próprio corpo, cabe partir de alguns conceitos psicanalíticos que dão substância às discussões sobre os processos de formação do Eu: primeiramente, é necessária a referência ao estádio do espelho, que, de acordo com Lacan (1998), concerne ao momento em que a criança reconhece a imagem do próprio corpo e diferencia-se do mundo exterior, dando consistência à separação do que corresponde ao eu e àquilo que não pertence a ele.

A segunda das premissas diz respeito ao Outro. Grafado dessa maneira, tem o valor de demarcar um lugar não somente de espectador, mas de uma alteridade inconsciente que afirma e bordeia o eu (Lacan, 1988). A ideia geral que Lacan propõe é a de que o sujeito humano é, decisivamente, determinado não por uma ordem orgânica ou intrapsíquica, mas por uma dimensão que lhe é originariamente externa, seja ela circunscrita pelo contexto sociocultural, pela imagem, pelas relações sociais ou com os outros ou pela instituição familiar (Silva, 2017).

Nesse sentido, a cultura, aqui, permeia algo que vai desde o mal-estar na civilização, pensado e escrito por Freud (1930/1996) como forma de o homem dar conta de seu processo civilizatório em detrimento de sua conduta instintiva, até o pensamento e articulação lacaniana que pressupõe na cultura um lugar de significantes constituídos pelo Outro. Portanto, pensar uma cultura é passar pela atribuição de se constituir como elemento de sobrevivência psíquica ao sujeito, enquanto sujeito do inconsciente - este, como nos aponta o axioma lacaniano, "estruturado como uma linguagem".

Dada essa indissociabilidade do sujeito ao Outro, lança-se mão das operações de alienação e separação enquanto constituintes do sujeito: a alienação refere-se ao momento em que o sujeito se identifica a um significante-mestre, excluindo outras partes de si da definição total, o que o torna permanentemente falta-a-ser. Esse processo de assimilação e introjeção da imagem do outro marcará o desenvolvimento subjetivo, a constituição do eu ao longo de todo o seu processo (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

Por sua vez, a operação de separação indica não a independência do Outro, mas uma "torção fundamental" (Lacan, 1998, p. 214), uma vez que é nesse momento que o sujeito é introduzido à lógica de que aquilo que falta ao Outro também lhe falta. Se o Outro também é barrado pela falta e, portanto, não detém a chave para a satisfação plena e ininterrupta, o sujeito pode encontrar brechas nos significantes aos quais se aliena na relação com o Outro e se deparar com seu próprio desejo (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

Ainda assim, é possível vislumbrar as marcas do discurso desse Outro, da cultura, nas enunciações sobre experiências subjetivas: para Ísis, a despeito de afirmar que " não é uma coisa que eu estou o tempo todo assim, [pensando], 'sou uma mulher gorda, sou uma mulher gorda'. Pra mim é um fato: sou mulher gorda" (sic, Ísis), o significante "gorda" frequentemente aparece como ordenador de sua experiência corporal. Ao abordar as partes do corpo que mais lhe apraziam destacar como favoritas, ela fala:

Quando eu era mais nova, e acho que isso é muito recorrente com gente gorda, é, tipo, você sofre todo um preconceito porque você é gorda, e aí você começa a destacar partes do corpo que você acha legal. Se a pessoa perguntasse "qual a melhor parte do seu corpo?", eu achava o olho e a boca. [...] são partes que não denunciam em nada que você é gorda. Não tem o mínimo de gordura ali, e eu achava, tipo, o máximo (sic, Ísis).

No caso de Kali, o significante "mãe" demarca fortemente sua experiência de corpo atual, sendo constantemente trazido à tona:

[...] eu tou insatisfeita com meu corpo por causa dessas experiências: uma experiência de magreza, que eu não tou bem com isso, não tou conseguindo reverter, porque a amamentação tá me deixando cada vez mais magra, e essa cara de cansada que eu tou sempre (sic, Kali).

A partir dos relatos das mulheres e tendo também em vista as operações de alienação e separação, tem-se que o corpo é organizado como uma cadeia de significantes diversos, servindo de suporte ao desejo e à relação com o Outro (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013). Assim, tem- se que a relação entre o sujeito e sua imagem não é imediata, mas sim mediada pela palavra, pelo universo de representações, códigos morais, aparatos tecnológicos e pelos discursos produzidos e reproduzidos de uma determinada cultura (Goellner, 2003).

A despeito dos esforços pessoais dessas mulheres em reconhecerem sua corporeidade exclusivamente pelo prazer, as nuances da insatisfação aparecem no incessante retorno à questão do incômodo com os denotadores da falta: para Ísis, é a gordura em seu corpo, ao ressaltar " eu acho que ainda continua sendo a barriga. Porque pra mim é o maior denunciador de que eu sou gorda e que isso ainda pega pra mim em alguns momentos" (sic, Ísis). Já para Diana, é o corpo marcado pelas estrias e celulites, por suas tatuagens e piercings, e, por vezes, também considerado excessivamente magro:

[...] as pessoas acham que por eu ser magrinha, alta, eu nunca sofri por conta do meu corpo, mas é totalmente o contrário, né? Porque as pessoas esperam que eu seja aquele padrão, só que eu não sou. Ao mesmo tempo que eu sou, eu também não sou, entendeu? Fica uma dualidade muito grande (sic, Diana).

Kali também aborda essa questão, conectando-a à vivência da maternidade:

[...] apesar de estar muito intensa para o lado do cansaço, eu amo muito o Ravi e ver ele se desenvolver tá muito lindo, então eu sei que esses sinais é consequência dessa situação que eu tou passando. Então, assim, eu fico insatisfeita com esses sinais, mas eu não sou insatisfeita com meu corpo (sic, Kali).

A precariedade do corpo, então, aparenta ser aprendida em meio aos seus agenciamentos e experiências na vida social. As participantes localizam, como sinais de seu incômodo, atributos culturalmente mobilizados e negativizados, distribuídos num contexto social amplo, mas que, como se pode notar, são assimilados singularmente, sob diferentes formas. Destarte, se compreende que o corpo não é experienciado em um vácuo de cultura, ele é sempre um corpo do Outro, atravessado por suas ideologias, apreciado segundo seus parâmetros, e reproduz o seu desejo, produzindo, por conseguinte, uma insatisfação intrínseca ao sujeito (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

Outrossim, deve-se reconhecer que, embora a marca do significante produza seus efeitos, algo sempre lhe escapa e, em função disso, a construção da imagem do próprio corpo é sempre vacilante, mutável. Ísis narra:

Quando eu era mais nova, eu achava que, tipo assim, que não encaixava. Eu me achava muito, muito gorda na barriga, tipo assim, aqui e aqui nos culotes, muito gorda. E eu ficava... tipo... "velho, se tirasse isso, botasse um pouquinho, [...] eu ia ficar muito mais bonita, porque eu tenho coxas largas e tal, e acho que ficaria mais legal". Hoje em dia, eu vejo que, tipo, as coisas se encaixam. Minha barriga combina com minhas pernas, combina com meus braços, combina com meu rosto... (sic, Ísis).

Ao rememorar experiências pregressas, Ísis evidencia o reconhecimento de recursos possíveis para retificar os variados pontos de incômodo que ela percebe em sua dimensão corporal, o que nos sugere o atravessamento explícito das narrativas que compõem o imaginário tecnocientífico bem como a espontaneidade com que elas interpelam os cotidianos. E, ainda que ela não tenha concretizado tais reconfigurações, exemplifica a vontade de dominação do corpo e, portanto, uma vivência corporal marcada pelo processo de alienação inerente à propaganda de um "corpo-rascunho", o corpo alter ego exposto a uma "tentação demiúrgica de corrigi-lo" (Le Breton, 2003, p. 17). Por outro lado, há um esforço da participante em recuperar-se singularmente no reconhecimento do corpo com que se vive, de refazer-se dos efeitos da estetização contemporânea que, ao forjar corpos ideais que expressam as qualificações do sujeito, excluem a singularidade (Marsilac, & Sousa, 2012, p. 41).

Diana também ressalta tal questão quando fala sobre uma transformação da visão do próprio corpo pela via do questionamento à norma na qual foi criada:

[...] agora eu tou conseguindo me libertar dessa visão conservadora, tou conseguindo ver meu corpo como uma forma de uma expressão minha, que sou eu, que meu corpo é minha tela e que eu posso fazer com ele o que eu quero, o que eu gosto, mudando do jeito do jeito que eu quero (sic, Diana).

Silva Junior e Moreira (2013) apontam o controle identitário enquanto uma forma possível do uso do corpo, que implica a supressão do abismo existente entre o corpo que se tem e a imagem ideal e que torna o corpo o representante do sujeito. Assim, Diana se desprende das cobranças de seu contexto em busca de dar a seu corpo a incumbência fundamental da construção de sua identidade enquanto mulher.

A mudança de perspectiva sobre o encontro com o próprio corpo se transforma para Kali a partir da experiência do exercício físico:

[...] pra mim foi desconfortável durante um bom tempo: eu me escondia, por ser muito alta; eu ficava um pouco corcunda, porque eu achava que eu era alta demais. [...] E depois, quando eu comecei a entrar na fase mais adulta, com uns 20, 22 anos, que eu tava na faculdade, eu já comecei a ressignificar melhor, acho que minhas experiências, principalmente com o ioga. Ioga me ajudou muito nisso. Ter uma experiência muito positiva comigo [...] (sic, Kali).

Para além de sua relação com o próprio corpo, as três participantes referem-se às imagens corporais como intervenientes em seus relacionamentos interpessoais. Ísis fala sobre esses efeitos que se produzem pelo viés do corpo gordo.

[...] às vezes eu tou flertando com um carinha, e aí o carinha: 'ah, não, não quero', e aí eu começo a pensar, tipo, 'será que ele não quer porque eu sou gorda, ou porque, tipo, ele realmente não quer?', e aí entro na nóia de 'ele não quer porque eu sou gorda, então eu vou emagrecer, porque se eu emagrecer, vou conseguir arrumar mais pessoas para me relacionar'. Só que aí, ao mesmo tempo, também problematizo isso de que [...] se eu emagrecer e começar a me relacionar com mais pessoas, isso quer dizer, então, que as pessoas são extremamente horríveis de só olhar pro meu físico, sendo que eu sou uma pessoa muito legal, entende? (sic, Ísis).

A partir dessa fala de Ísis pode-se ter uma visão do panorama que situa o corpo gordo enquanto um ponto fora da curva do disciplinamento corporal da cultura fitness, o que o faz ser repetidamente moralizado enquanto imperfeito e insuficiente - assim, à mulher gorda está reservado somente o lugar de amiga, dado que suas formas corporais não a permitem exercer sua feminilidade, e consequentemente, sua sexualidade de forma plena (Novaes & Vilhena, 2006).

No caso de Diana, seu corpo, apesar de culturalmente ideal - magro -, também atravessa seus relacionamentos afetivos-sexuais: "[...] não conseguia usar biquíni, até mesmo nas minhas relações sexuais eu tinha uma questão, tinha que ser com a luz apagada, eu não gostava que ficassem me observando [...]" (sic, Diana). Essa experiência nos remete às considerações de Mieli (2002), quando sugere que, ao produzir a precariedade dos corpos, a cultura cria lugares de desconforto neles próprios, colaborando para a demarcação do que a autora denomina como punctum, "o lugar do próprio corpo percebido pelo sujeito como o que insiste no sentido de embaraçar". E, porque insiste, "o punctum é um lugar do próprio corpo de onde nos sentimos olhados", fonte de mal-estar e de perturbação, do que decorre a vontade de ofuscar a sua imagem (Mieli, 2002, p. 15). Logo, entende-se que as faltas impostas pelo imaginário contemporâneo de operacionalização do corpo são correlatas a "novas formas de demanda e de apresentação do sofrimento psíquico que toca o corporal" (Besset, & Espinoza, 2012, p. 307).

Já Kali faz referência ao período da gestação enquanto um momento em que sentiu que seu corpo de mulher foi destronado pelo corpo da gravidez: " eu não me sentia mulher [...], eu não me sentia atraente. E aí eu não conseguia me sentir numa relação sexual, assim, bem, porque [...] parecia que eu tava gorda e eu não me sentia bem daquele jeito [...]" (sic, Kali).

Novaes e Vilhena (2006) pontuam que nem mesmo a gravidez, processo natural e altamente demandado às mulheres, é capaz de justificar o aparecimento de gordura ou das marcas no corpo - o que é possível observar no relato supracitado de Kali. Nesse sentido, apesar do agenciamento social que impele o corpo feminino a tornar-se visível (e, portanto, desejado), Kali e Diana movimentam-se tentando esconder desse olhar mortífero do Outro as características que possam denunciar o furo de um corpo que não desenha suficientemente um Eu para ser tocado (Novaes, & Vilhena, 2006).

Outra questão que se coloca sobre os processos de identificação é o papel da família nessa construção. Ao falar mais sobre o embaraço diante do próprio corpo, Diana atribui isso à criação conservadora que teve:

[...] foi um pudor que foi passado de minha avó pra minha mãe e de minha mãe pra mim, que mulher tem que se resguardar, essas coisas. E eu fui criada extremamente rígida, com um pai policial, uma mãe extremamente católica. Então, tipo, até pra mim usar short curto, era um tabu pra mim. Hoje em dia não tão mais como antes; hoje em dia tá mais tranquilo, mas eu sempre tive muita vergonha. Não vou dizer que eu perdi a vergonha do meu corpo, mas hoje eu consigo lidar melhor com isso do que antes (sic, Diana).

Já para Ísis, a característica que marca a família é o ser gordo. Segundo ela, " [...] (a) família por parte de mãe [...] quase todos são gordos. Minha avó é gorda [...], minha mãe é gorda, tem uma outra tia que é gorda... são seis irmãos; dos seis, dois são magros, o resto é gordo" (sic, Ísis).

Lacan localiza a instituição familiar como elemento constitutivo fundamental da subjetividade, uma vez que ela representa um microcosmo da "[...] ordem original de realidade que constituem as relações sociais" (Lacan, 1981, p. 14), e, semelhantemente, a socioantropologia apreende que o corpo insere o sujeito em seu contexto social e cultural, produtor e produzido pelos discursos em voga (Le Breton, 2007). Assim,

Se a família é a unidade efetiva de composição da sociedade - de qualquer sociedade -, é porque ela desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, afirmação que prenuncia a tese posterior de que o discurso parental, de alguma maneira, "inocula" o simbólico no infans, ou melhor dizendo, que o sujeito potencial está aí capturado antes mesmo de nascer, sendo o discurso em que se articula o desejo dos pais a seu respeito o veículo com o qual ele ingressa na ordem da linguagem, que lhe pré-existe e sobredetermina (Simanke, 2002, p. 250).

Ainda como parte de seu processo de identificação, as participantes também versam sobre as dores e os prazeres - por muitas vezes, concomitantes - na relação com o próprio corpo

Eu gosto de ser subversiva, [...] apesar de ser uma coisa que a gente sofre, porque é muito ruim você ser fora do padrão, porque você não tem as mesmas regalias que uma pessoa dentro do padrão tem, obviamente. Você meio que acaba sofrendo. Mas eu acho que eu gosto, eu acho que é político, é militante, você tipo "vou me expor sim! Ser fora do padrão, e o que é que tem ser assim?" (sic, Ísis).

Essas ambivalências também são enunciadas por Kali:

[...] eu tenho reumatismo, então em alguns momentos eu tive dores muito fortes no meu corpo. A minha experiência com meu corpo é sempre uma mistura de prazer e dor, sempre, o tempo inteiro, mas eu fico muito satisfeita com meu corpo (sic, Kali).

De acordo com Roudinesco e Plon (1998, p. 300), Lacan estabelece um ponto de virada de máxima importância ao diferenciar prazer e gozo. Esse último apresenta-se como a "[...] tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Esse movimento, ligado à busca da coisa perdida que falta no lugar do Outro, é causa de sofrimento; mas tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo".

A articulação entre corpo e gozo, em psicanálise, é mediada pela noção de que o corpo humano apreende as relações simbólicas e imaginárias e que só é possível fazer uso de um corpo na medida em que este é socializado, e, ainda assim, é um uso que tem seus limites (Soler, 2012).

Pode-se retomar, a título de exemplo, o caso de Ísis, que afirma usar seu corpo como uma forma de militância em um movimento de contracontrole ao padrão de beleza vigente. A bandeira levantada por ela denuncia, essencialmente, a forma como o corpo gordo é estigmatizado, marginalizado e forçosamente dominado pela cultura, para que, desse modo, possa se adequar ao que é socialmente desejado. Ainda assim, isso não se dá sem consequência: é possível eleger o roteiro, "[...] mas não é possível programar o efeito de gozo: ou é encontrado ou não" (Soler, 2012, p. 196).

O corpo que será

Nos discursos das três participantes foi marcante a menção à adolescência enquanto um período de construção de identidade e, mais do que isso, de expectativas com relação ao corpo que se modificava, muitas vezes vinculadas também ao sofrimento psíquico - temática em torno da qual a presente categoria de análise se organiza. Sobre esse período, Diana fala da procura por médicos, no intuito de engordar bem como da busca por modelar o próprio corpo através do exercício físico:

[...] eu acho que a época de escola e adolescência é a pior fase pra qualquer mulher, pra qualquer adolescente. [...] eu via as outras meninas, toda bonitinha, com a bundinha empinada e eu tipo "porra, eu queria ser assim...". Tanto que eu, na época, pedia a minha mãe pra fazer academia, fazia academia porque eu queria ser assim, só que eu queria ser assim porque eu achava que era pra eu ser assim (sic, Diana).

Esse anseio por modificar o corpo para adequá-lo aos padrões de feminilidade também ocorreu com Kali, que menciona ter colocado algodão no sutiã, por volta dos 12, 13 anos, pois desejava ter seios maiores como suas amigas da época. Outro ponto destacado por ela é a questão do tamanho do pé, trazido como uma característica física que frequentemente era apontada por outrem como anormal e fora do protótipo de " princesa" e de " menina" (sic, Kali):

Eu já calçava 39 acho que com uns treze anos. E aí quando eu comecei a calçar 39, eu me neguei a comprar sapato 39. Então, eu usava e comprava 38... e tinha vergonha de falar que eu calçava 39. Então eu usei 38, acho que até uns 14 anos de idade, e ficava usando sapato apertado. Hoje em dia eu tenho dois calos no pé, nos dedos laterais, calos bem grandes, por causa dessa época. [...] Acho que pra mim era tão importante ter um pé menor que eu nem ligava pra dor (sic, Kali).

No caso de Ísis, a adolescência foi marcada por uma série de intervenções mais diretivas de outrem sobre sua aparência:

[...] as pessoas ficavam enchendo o saco, e antes eu era uma pessoa muito sem vaidade; eu roía unha, eu não arrumava o cabelo, eu não passava maquiagem. Inclusive, eu tinha uma agonia enorme com maquiagem, tipo, eu era leiguíssima, não sabia de nada. Aí eu tinha duas melhores amigas, [...] elas ficavam o tempo todo "Alisa teu cabelo! Deixa eu fazer chapinha no teu cabelo! Deixa eu passar maquiagem em você!", e meio que pressionando. Toda vez que a gente se encontrava, era isso. Aí uma vez eu deixei elas alisarem com chapinha meu cabelo, fazer maquiagem, e elas se sentiram as mulheres mais realizadas do Brasil com isso (sic, Ísis).

Sotelo (2013) define a adolescência como um período de despertar, dadas as transformações da forma anatômica e a introdução de novos modos de sentir, pensar e agir, que reverberam, sobretudo, na forma como o sujeito olha para si mesmo e é olhado pelas outras pessoas.

As participantes, muito ou pouco, direta ou indiretamente, trazem a mesma marca em seu discurso: o empuxo do abandono do corpo infantil em direção a uma corporeidade - e, por conseguinte, subjetividade - adulta. Diante da queda da imagem infantil idealizada que lhe conferia garantia fálica, o adolescente tem de se defrontar com um corpo instável e endereçado ao olhar do Outro como potencialmente fértil, em busca de um reordenamento de suas vivências que oscila entre o assujeitamento e a autoria (Garritano, & Sadala, 2010).

É necessário o retorno constante à noção de que o corpo é biológico, mas também erógeno e, assim sendo, sua vivência é sempre a de um projeto inacabado, inconstante, com expectativas de construção e reconstrução. Essa oscilação aparece para Ísis e Diana quando elas narram suas experiências:

[...] tem dias bons e dias ruins. Nos dias bons, eu vejo meu corpo como meu corpo, enfim, que é meu, que me acompanha, que tem a minha história marcada nele. [...] hoje em dia sou muito mais ok com meu corpo, com as marcas do meu corpo, na forma que ele é do que eu era antes. Só que também tem os dias ruins, tem dias que eu acordo e fico "meu Deus, essa banha aqui, caída..." (sic, Ísis).
Acho assim... eu não tou 100% ainda, né? Porque eu acho que ninguém tem a autoestima extremamente elevada [...], mas, às vezes, eu me sinto 'nossa hoje eu não tou bonita', aí vou lá uso maquiagem e aí 'ah, agora melhorou'. É por dia, entendeu? Mas é uma questão que nem todo dia a gente acorda e se acha bonita; tem dia que a gente se acha mais, sei lá, estranha, mais... (sic, Diana).

Além disso, as participantes fazem surgir outras estratégias para tentar costurar as expectativas com relação a seu corpo: " O meu padrão de beleza sou eu mesma. Isso pra mim é muito claro. [...] porque meu corpo não é só estético, ele é a experiência que eu vivo" (sic, Kali); " [...] eu gosto do meu corpo porque é o meu corpo, são as marcas que eu trago nele" (sic, Ísis).

A essa postura das participantes pode ser atrelado o ganho de força dos movimentos feministas, que questionam, entre outras coisas, os usos e desusos do corpo feminino, culturalmente invisibilizado e subordinado pelo patriarcado (Le Breton, 2007). Com isso, não é que essas mulheres se posicionem por não querer saber de seu corpo faltante: pelo contrário, sabem e optam por não seguir as demandas de um antigo Outro social - ainda forte, pois marcante em seus discursos.

Impulsionado e estabelecido como um novo Outro, o feminismo aparenta estar no outro lado da moeda. A obediência passa a ser, então, não a um imperativo de incômodo com o próprio corpo e a modificação compulsória deste (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013), mas sim a uma aceitação incondicional do corpo, o que igualmente pode produzir processos de adoecimento psíquico.

Soler (2012) argumenta que o processo de identificação é sempre anticonformista e que, embora os sujeitos possam escolher contramodelos e se agrupar em tribos, isso não implica em estar livre da regência do desejo do Outro. Se na adolescência havia um esforço incomensurável para pertencer ao padrão de beleza vigente, essa perspectiva é expressa de forma abrandada na vida adulta, embora não seja totalmente abandonada, como há de se ver na categoria seguinte.

Intervenções sobre o próprio corpo para um projeto melhorado de si

Diante do que tem sido construído ao longo do presente trabalho, resta ainda um ponto a ser desenvolvido e que é caro à discussão sobre corporeidade no cenário contemporâneo: uma vez que a relação entre sujeito e sua experiência corporal não mais se refere ao saber, mas sim à ordem do que fazer com o corpo (Miller, 1999), quais usos cabem a essas mulheres fazerem de seus corpos?

Para Diana, a afirmação de seu próprio corpo caminha junto às modificações de body art, ainda que isso signifique desapontar a figura materna:

[...] a primeira coisa que eu fiz no meu corpo foi colocar um piercing, e foi um fuzuê lá dentro de casa, e eu não tiro, porque eu acho que é minha marca registrada [...], fiz uma tatuagem e ela [a mãe] 'ah, tá bom'. Fiz a segunda, ela não gostou. Fiz a terceira, quase fui expulsa de casa (sic, Diana).

Há, portanto, um caminho em que as marcas corporais se configuram como o registro de sua vontade própria sobre o corpo, a tentativa de "restauração da identidade" (Le Breton, 2007, p. 43), até então subsumida aos desígnios da família, sobretudo da mãe. Uma questão interessante a ser destacada acerca da narrativa dessa participante é que ela sempre pauta o quanto tem estado confortável com o próprio corpo ultimamente, negando, inclusive, quando questionada se gostaria de modificar algum aspecto de sua aparência. Ainda que ela não tenha se referido às tatuagens e piercing como elementos que compõem a produção de um corpo ideal para si, é necessário afirmar que esses são artifícios para moldar o corpo tanto quanto as cirurgias plásticas (Soler, 2012).

Outras manobras de uso do corpo altamente difundidas atualmente são as de exercício físico e da alimentação saudável. Estas aparecem no discurso de Kali pela prática da ioga e pelo vegetarianismo, que segundo ela, a fazem desfrutar de sua experiência corporal de forma mais plena:

[...] quando eu tou praticando atividade física com frequência, e me alimentando do jeito que eu gosto de alimentar - sou vegetariana -, tendo todo um cuidado com a minha alimentação, eu me sinto superbem, e aí eu me sinto mais bonita, me sinto mais satisfeita, eu fico bem comigo e com diminuição de dor [...] (sic, Kali).

Para Kali, essas rotinas de exercício e alimentação, assim como outras dimensões de sua vida, acabam sendo atravessadas pela experiência recente de ser mãe. A noção de maternidade contemporânea ainda faz apelo ao modelo tradicional, situando esse papel social como aquele que deve ser ambicionado pela figura feminina, uma vez que é a partir desse lugar, vinculado ao espaço do privado, do lar, que é possível para a mulher exercer sua plenitude e fazer uso de valores morais tidos como de seu domínio, tais como a paciência, a delicadeza e a gentileza (Goellner, 2003).

A compulsoriedade que orbita a maternidade na vida de uma mulher diz respeito, frequentemente, não somente ao procriar e criar, mas também implica a abdicação da pessoa-mulher em prol do papel social de mãe. Não obstante, há uma hiância entre a mãe e a mulher, o que se comprova pela experiência dessa participante: o filho, saldo da relação sexual, pode vir a tamponar a falta feminina temporariamente, entretanto não é o objeto causa de desejo para a mulher, o que a impele à busca de coisas outras independentes da esfera do ser mãe (Soler, 2005).

Também surge para Kali, pela primeira vez na vida, a possibilidade de aderir à cirurgia plástica para corrigir uma discrepância entre o tamanho dos seios decorrente do processo de amamentação de seu bebê. Ela fala:

[...] eu ainda tenho um desnível dos meus seios, e aí eu comecei a pensar 'será que eu vou ficar desse jeito pra sempre?', e daí eu pensei que se eu ficar desse jeito, depois que acabar a amamentação de vez, que eu desmamar o Ravi e eu ficar ainda desse jeito, e eu sentir que isso é um desconforto pra mim, eu colocaria silicone, entendeu? Pra dar uma nivelada nos peitos, assim (risos) (sic, Kali).

É marcada a relevância dos seios enquanto signo do modelo hegemônico de feminilidade, demonstrada na procura exponencial por procedimentos cirúrgicos de correção desse atributo físico - segundo uma pesquisa de censo da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (2016), no ano de 2016 foram realizadas mais de 637 mil intervenções cirúrgicas em seios. A circunscrição dos seios enquanto incômodo corporal também surge para Ísis. Admite, ainda, que já chegou a considerar que os seus eram disformes devido ao fato de ser gorda:

Às vezes eu penso também em botar um siliconezinho, uma coisa assim, mas... eu não sei se eu realmente faria. Porque eu fico meio assim, às vezes eu acho meus seios muito caídos. Enfim, eu acho eles caídos e eu fico meio "ah, que feio". [...] se um dia eu tiver dinheiro e não tiver me entendido bem com essa parte, faço. Se eu tiver dinheiro, mas tiver me entendido bem com essa parte, ótimo (sic, Ísis).

Outro ponto de incômodo trazido por Ísis é o nariz, em uma construção um tanto dissonante: ao passo que afirma o nariz enquanto congruente com suas feições faciais também o define como desconforto, a ponto de arriscar uma cirurgia plástica para corrigi-lo:

É um nariz de coxinha. Se bem que é uma marca da minha família, por parte de mãe; todo mundo tem o nariz... pam! E aí, às vezes eu olho assim pra ele e acho que mudaria. Mas não é algo que eu pense muito nisso, porque eu também acho ele harmônico com meu rosto, tipo, combina, está ali, ok. Mas... se acontecesse, eu faria de boaça (sic, Ísis).

Embora seja um processo contraditório, é precisamente nessas inconsistências do discurso onde o sujeito do inconsciente emerge. Entre outras formas de intervenção, mais ou menos intrusivas, a cirurgia plástica é um recurso que busca o reajuste da falta que se exprime no real insuportável do corpo, provendo à mulher uma possibilidade de simbolização de sua feminilidade (Lima, Batista, & Lara Junior, 2013).

É de responsabilidade do capitalismo e dos veículos midiáticos a difusão do juízo de que a construção de uma identidade própria implica, necessariamente, o remodelamento corporal (Silva Junior, & Moreira, 2013). Outras ferramentas de potencialização da imagem feminina evocadas pelas participantes foram os cosméticos. Ísis e Diana trazem, aparentemente, em suas experiências com maquiagem, uma possibilidade de se enxergarem de forma diferente, mas de forma reversível, um realce de suas características naturais sem a pretensão de camuflar algo:

Porque eu me acho bonita sem maquiagem, [...] na maioria das vezes eu saio de casa de cara lavada. [...] E eu me acho bonita assim. Só que eu também me acho muito bonita de maquiagem e foi algo que eu aprendi a apreciar, e eu acho legal fazer. Tipo, você conhece muito do seu rosto fazendo isso, entendeu? (sic, Ísis).
É muito difícil eu usar maquiagem pesada, geralmente minha maquiagem é muito simples, bem básica e eu me sinto muito bem, muito maravilhosa. Mas também tem momentos que eu vou usar uma maquiagem "super tchan!" e eu vou "porra, que mulher é essa? mulherão da porra!" (sic, Diana).

Já o relato de Kali aponta mais para sua aproximação com os dermocosméticos e para o enfoque aos cuidados com a pele:

Teve uma época que eu comprava, sei lá, creme pra celulite, assim, achando que ia acabar com a minha celulite, entendeu? Mas hoje eu já não acredito mais, eu acho que a indústria também vende muita coisa que não funciona, só pra acalmar essa angústia que a gente tem. [...] hoje eu não pretendo acabar com a minha celulite, eu convivo com ela de boa. Não acho que vai acabar as minhas rugas, por exemplo, mas acho que a textura da pele pode melhorar com o creme. [...] não soluciona, melhora, né? Então acho que também aceitar que algumas coisas só ajudam, mas não vão mudar (sic, Kali).

O entendimento de que, a despeito de qualquer que seja a intervenção, alcançar um corpo perfeito é impossível é comum às três participantes do estudo. Nesse horizonte, as três também se demonstram preocupadas com o excesso de edição do corpo e as consequências dessas práticas:

[...] um caso que eu fiquei extremamente chocada e que fiquei extremamente abismada, que foi Camilla Uckers, [...] ela praticamente perdeu o movimento das pernas por conta de uma das intervenções. [...] Eu acho que a partir do momento que afeta a saúde, [...] eu acho que é um ponto de se pensar e dar uma paradinha (sic, Diana).

Ísis também reconhece o respeito ao limite da saúde e pontua que "[...] pessoalmente, pra mim o limite é quando você coloca a sua saúde em risco" (sic, Ísis), referindo-se também ao absurdo que lhe parece a ideia da carboxiterapia - procedimento estético que consiste na injeção de gás carbônico na pele, objetivando eliminar a flacidez e as marcas advindas de celulite, estrias e gordura localizada, mencionando o caso de uma moça que fez o procedimento de carboxiterapia e pouco tempo depois sofreu uma embolia pulmonar - para os médicos e para a dita moça permanece a interrogação sobre a correlação entre os dois eventos, para Ísis fica o horror ante essa possibilidade.

Já Kali estende-se mais em seu discurso, assinalando que o limite é definido por uma aliança de corresponsabilidade: " Eu acho que é uma responsabilidade da própria mídia [...], da indústria da moda, da indústria da estética, [...] dos médicos, [...] e acho que da gente também, né?" (sic, Kali).

Seja pela via das tatuagens e piercings, da cirurgia plástica ou do uso de cosméticos, as práticas de manipulação corporal dizem de um ensaio de reformulação corporal atravessado pela dor (Silva Junior, & Moreira, 2013) expressa no encontro com as pluralidades e hiâncias, bem como no reparo que cada sujeito é capaz de fazer para elas.

 

Considerações finais

O presente trabalho se constitui como uma oportunidade de enriquecimento teórico-prático a respeito do tema em questão, expressando também as negativizações às quais os corpos, especialmente os femininos e aqueles que não correspondem aos ideais de beleza vigentes, sofrem de forma espontânea e automatizada cotidianamente, demarcando a centralidade do corpo dentro das narrativas de construção da feminilidade (Silva, & Rey, 2011).

A partir dos discursos das participantes deste estudo, foi possível vislumbrar o corpo situado em uma dimensão que suplanta o estatuto biológico ao qual frequentemente é conformado. A cultura enquanto construída pelo sujeito e igualmente constitutiva de sua identidade, demarca o corpo enquanto ferramenta de apropriação da realidade vivida através da qual o humano cria representações e imagens constantemente mutantes de si próprio para se fazer ser reconhecido em sua singularidade, servindo-se dos recursos simbólicos socialmente compartilhados (Le Breton, 2007).

Nesse sentido, cada imagem de si produzida é uma miragem, pois é transitória, denota a volubilidade do processo identitário. Cada uma a seu modo, Ísis, Diana e Kali demarcaram um ponto em comum: a noção do corpo atravessado pela experiência. Observou-se que as vivências corporais são tidas de modo extremamente significativo, dando consistência às identidades singulares de cada mulher participante do estudo. No decorrer da realização das entrevistas foi possível perceber quão valioso o espaço de fala sobre o próprio corpo se mostrou para essas mulheres diante do grande número de inquietações, reflexões e até mesmo do silêncio ante alguns questionamentos - aspecto em que se confirma a marca da linguagem sobre o corpo, tornando-os indissociáveis dentro do prisma psicanalítico (Cukiert, & Priszkulnik, 2002).

Diante dos relatos das participantes do estudo, é possível entrever que os regulamentos estabelecidos culturalmente não constroem um refúgio seguro contra o sofrimento, pois o mal-estar não deixa de estar presente, ainda que se busque estruturar os laços sociais para remediá-lo, - há que se considerar a falta, o estatuto se sujeito faltante ($) naquilo que ele não é todo saber, o que Freud traz como "[...] a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável - dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica" (Freud, 1930/1996, p. 93).

Assim, "[...] constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento fazem parte dessa mesma cultura" (Freud, 1930/1996, p. 93). Ou seja, ainda que a fragilidade do corpo humano seja apontada como fonte de sofrimento, para que isso aconteça há a vigência de uma estrutura de pactos discursivos que se repetem na cena cultural de modo a não apenas reconhecer o sofrimento, mas também estruturar seus arranjos de reconhecimento e de experiência (Zaher, & Ravanello, 2018).

A despeito do pouco espaço de tempo em que a pesquisa foi realizada e do pequeno número de meios de divulgação utilizados, contou com a resposta de mais de vinte mulheres, o que demonstra que a corporeidade permanece sendo uma temática que demanda escuta e investigação. Uma limitação do presente trabalho foi que, a despeito da abertura à escuta das mulheres transexuais e suas narrativas sobre seus corpos, não foi possível a participação de nenhuma mulher desse grupo específico, sendo essa uma lacuna que demanda aproximação em futuros estudos, dada a invisibilização que os corpos trans sofrem maciçamente dentro do atual contexto social.

Há, ainda, a necessidade de que as disciplinas que se proponham a aproximar-se do fenômeno corporal o façam tendo em vista a superação do modelo cartesiano de cisão entre mente e corpo, dado que esse modelo produziu um processo de precarização cultural dos corpos - especialmente os femininos - que se delonga até os dias de hoje. Se pretendida uma concepção holística de sujeito, é fundamental o diálogo entre múltiplas disciplinas, como proposto neste estudo, de modo a expandir a discussão sobre corpo, que, estando em constante mudança, jamais se esgota.

 

 

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Artigo recebido em: 11/01/2019
Aprovado para publicação em: 27/09/2020

Endereço para correspondência
Eveliny Barbosa Coelho da Silveira
E-mail: evelinysilveira@live.com
Shimênia Vieira de Oliveira Cruz
E-mail: shimeniax@gmail.com
Roberta de Sousa Mélo
E-mail: rdesmelo@gmail.com

 

 

*Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), atua no contexto clínico desde 2019 e é pós-graduanda em Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica, pelo Instituto de Ensino Superior em Psicologia e Educação (ESPE).
**Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia e é doutora pela Universidade Federal da Bahia, no eixo de Psicologia do Desenvolvimento. Atualmente atua também no contexto clínico.
***Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrado e doutorado em Sociologia pela mesma instituição. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Vale do São Francisco. É coordenadora do LECCORPO - Laboratório de Estudos da Cultura Corporal. Tem experiência na área da Sociologia do Corpo; Estudos de Gênero; Aspectos Sócio-Antropológicos das Práticas Corporais; Sociologia do Esporte; Estudos das interfaces Tecnologias, Cultura e Sociedade.

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