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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021
RESENHAS
No início, era o corpo
Antonio Henrique Ruiz NakashimaI*; Érico Bruno Viana CamposI**
IUniversidade Estadual Paulista - Unesp - Brasil
Resenha: Rank, O. (2016). O trauma do nascimento: e seu significado para a psicanálise. (E. G. de Castro, Trad.). São Paulo: Cienbook. (original publicado em 1924). 191p.
Pertencente à primeira geração de analistas, entre seus colegas Otto Rank era o único que não possuía formação médica. Sua participação no movimento psicanalítico foi marcada por intensa colaboração, ocupando cargos de secretário na Sociedade Psicanalítica de Viena, redator de revistas e diretor da Editora Internacional de Psicanálise. Manteve interesse profícuo pelo campo das artes e da mitologia, como é possível observar por suas produções intelectuais. O livro ao qual dedicamos a presente resenha, O trauma do nascimento, foi publicado em 1924. Pela primeira vez, dispomos de uma tradução em português vertida diretamente do alemão.
Nele, Rank parte dos construtos teóricos freudianos, esboçando uma breve história do desenvolvimento da psicanálise, que se assenta em um trabalho alicerçado na primazia do inconsciente na vida psíquica. Salienta que a pesquisa psicanalítica sempre parte da superfície rumo às profundezas mais recônditas e de difícil acesso. Nesse movimento, o analista inevitavelmente se deparara com um limite natural que constituiria a fundamentação do próprio psiquismo. Ele propõe que o inconsciente teria um fundamento biológico, correspondente ao momento do nascimento, com sua característica de ruptura, o trauma do nascimento. Assim, a origem do psiquismo coincidiria com esse trauma.
Enfocando o que ocorre na situação analítica, Rank observa que, em muitos casos, o processo de cura expressa-se simbolicamente como um segundo nascimento. A fantasia do segundo nascimento era muito conhecida, sendo fartamente observada por outros analistas. Porém Rank incomodava-se com o fato de não existir um substrato real para ela. Suas proposições tomam o ato no nascimento como a referência a partir da qual toda a inteligibilidade sobre o psiquismo deveria ser elaborada. Dessa forma, entende que o investimento libidinal sobre o analista, que fundamenta o fenômeno da transferência, é derivado da fixação na mãe. "[...] A verdadeira libido de transferência [...] é uma libido maternal, tal como ela se dá no elo fisiológico pré-natal entre a criança e a mãe" (p. 28). O tratamento transcorre lastreado por uma relação primordial, "puramente fisiológica" (p. 27), estabelecida entre o bebê e o corpo materno. Tal como ocorre no ato do nascimento, a fantasia do segundo nascimento implica uma separação: a libido fixada no analista é libertada, de modo que o tratamento reproduz o nascimento de maneira completa, proporcionando uma separação do corpo da mãe. É sublinhado o caráter biológico de tal reprodução, não se pautando somente pela dimensão metafórica. "[...] Na situação analítica, o paciente reproduz, por assim dizer, biologicamente o período de gestação e, no fim da análise, na separação do objeto de substituição, ele reproduz o ato do nascimento, praticamente em todos os seus detalhes" (p. 27).
A dimensão biológica do corpo focalizada no momento do nascimento é tomada como elementar para a compreensão dos fenômenos psíquicos. Reconhece-se o nascimento como "o último substrato biologicamente compreensível do psíquico, chegando assim ao exame do fundamento e do núcleo do inconsciente, sobre cuja compreensão se ergue a estrutura criada por Freud da primeira psicologia abrangente e fundamentada psiquicamente" (p. 22, grifos nossos). Toda a estrutura conceitual psicanalítica, oferecendo uma explicação ao psiquismo, teria como lastro o fundamento biológico constituído pelo momento de ingresso à vida. Dessa forma, Rank coloca em destaque a força essencialmente biológica do inconsciente. A realidade psíquica, composta por fantasias que sustentam as formações sintomáticas, estaria subordinada a uma realidade biológica e a angústia, afeto princeps, seria definida pelo ancoramento psíquico de prejuízos fisiológicos atinentes ao momento do nascimento, ou seja, todo o mal-estar relacionado à passagem do meio intrauterino para o mundo.
O principal objetivo da obra é o reconhecimento dessa "lei de formação biologicamente fundamentada" (p. 23) que determina todas as produções psíquicas, procurando antever os problemas que dela decorrem. O segundo objetivo corresponde ao "estabelecimento de um quadro sintético de toda a evolução psíquica da humanidade" (p. 23), partindo do referente atribuível ao trauma do nascimento: o significado último de todas as produções psíquicas corresponderia à tentativa de superar esse trauma. O autor, ao longo do livro, dedica-se ao desenvolvimento das formas segundo as quais o trauma do nascimento comparece nos âmbitos da reprodução neurótica na adaptação simbólica, na idealização estética, nas formações religiosas e na especulação filosófica. Dedica-se um capítulo para cada um desses temas.
O trauma do nascimento constitui um marco que instaura a divisão de dois estágios: a vida intrauterina, à qual está relacionada toda experiência de prazer; e a vida extrauterina, que requer um processo de adaptação. A situação intrauterina corresponderia ao horizonte para o qual está vetorizada toda ação humana, de maneira que há uma tendência a voltar para dentro do corpo materno em busca da original vivência de prazer. A adaptação é entendida como os esforços para superar o trauma do nascimento, biológica e culturalmente, procurando aproximar o mundo exterior do estado primitivo vivido anteriormente. Nesse sentido, o homem procura restabelecer o estado primitivo prazeroso por meio das elevadas criações culturais: arte, religião, filosofia, mitologia. Os esforços humanos na direção da construção de habitações mais confortáveis, climatizadas e seguras podem ser entendidos sob essa perspectiva da adaptação. Tal diretriz segue seu curso tendo como referência a substituição da mãe por uma parcela cada vez maior do mundo exterior. "[...] O recém-nascido não poderia viver se não substituísse a mãe pela porção do mundo exterior que lhe é mais próxima e, por conseguinte, pelo mundo exterior em sua totalidade". (p. 100, grifos nossos). O mundo exterior vai, aos poucos, tornando-se uma "segunda mãe" (p. 164).
Embora reconheça a castração como elemento próprio ao desenvolvimento, Rank relativiza sua importância na configuração das neuroses, propondo que ela seria subsidiária ao trauma do nascimento. A preocupação infantil concentrada nos genitais ocorre "precisamente por causa de sua relação obscuramente intuída (ou lembrada) factual e biológica com o nascimento (e com a concepção)" (p. 39, grifos nossos). A angústia atinente à castração esconde aquela que é original, referente à "castração primitiva" (p. 40), da separação do nascimento, esta de fato vivida em sua dor: o corte instituído na fruição do prazer intrauterino.
A tese de Rank concernente ao trauma do nascimento nos remete ao tema clássico das origens do psiquismo. Podemos considerar que tal visada está alinhada à perspectiva freudiana, na qual a busca por um referente esteve sempre no horizonte das investigações. "A busca da realidade e a busca ascendente de um primeiro evento sobre o qual se possa dizer que tudo decorre" (Laplanche, 1987, p. 134). O ato do nascimento, em sua dimensão factual, marcaria o bebê na passagem pelo canal vaginal. A impressão traumática seria chancelada no corpo, a partir do que a subjetividade se desdobraria em suas particularidades, aí então sendo aplicáveis os aportes teóricos freudianos. Rank chega a adotar o conceito de uma conversão às avessas para descrever tal passagem, referindo-se ao "[...] surgimento do psíquico a partir de uma inervação somática" (p. 164). Segundo ele, portanto, no início era o corpo. Porém não o corpo libidinizado, ou erógeno, dado que tal configuração se constitui no campo da alteridade e das representações. Rank insiste nas lembranças do trauma inaugural, nas diversas tentativas de superá-lo. Então, a qual registro de corpo se refere? De que maneira algo poderia ser registrado em momento tão precoce? Não se pode esquecer que a argumentação tecida também nos indica uma vivência de prazer durante a fase intrauterina. São questões a que a leitura do livro nos incita.
Já dispomos da clássica arguição crítica realizada por Freud acerca do livro de Rank, expressa em " Inibição, sintoma e angústia" (Freud, 1926/2014). Alguns autores (Obaid, 2012; Campos, 2014), inclusive , afirmam que o impacto da tese de Rank foi o principal motivador para a revisão freudiana da teoria da angústia. Como se sabe, Freud levanta o argumento de que o neonato não teria condições sensoriais e psíquicas para perceber e reter as impressões atinentes ao momento do nascimento, ou seja, sua crítica resume-se ao aspecto do registro mnêmico do fenômeno. Entretanto, a leitura de Rank nos parece interessante não apenas para tomar parte da discussão que Freud empreende, mas por nos remeter àquilo que, da experiência humana, não é recoberto pelo campo do simbólico. Na verdade, entendemos que a contribuição de Rank está em consonância com os próprios limites da teoria centrada na angústia de castração e por isso a necessidade de réplica por parte de Freud. Nesse sentido, como em muitas outras vezes na história da psicanálise (Jung é apenas o caso mais ilustrativo), observamos Freud lutando contra os próprios fantasmas recalcados do movimento de seu pensamento, que retornam por meio de seus discípulos.
Desse modo, a argumentação do livro é paradoxal por propor um arcabouço representacional a um ponto irrecuperável do vivente. O registro do traumático aponta para certas dimensões fundamentais da nossa existência que estão excluídas da experiência. Dentre elas, justamente, figura o corpo da mãe, dentro do qual estivemos e de onde fomos expulsos (Kehl, 2000). Destaca-se a condição de passividade absoluta em que nos encontramos nesse momento, entregues ao poder supremo de um Outro. Rank focaliza este recorte da vida humana, atribuindo estreita relação entre a angústia e o corpo em sua condição de carne, ou biológica. As contribuições de Lacan (2005) sobre a teoria da angústia indicam o ponto falta-de-significante; o corpo não organizado pela linguagem; a angústia como sinal da ruptura do eixo simbólico-imaginário; enfim, o Real. Rank assinala a dimensão de corte, atinente ao nascimento. Entretanto, aborda o traumático a partir de uma referência empírica, passando a dar nomes ao desamparo, ao horror, enfim, àquilo que é essencialmente indizível.
Por conta disso, é hoje comum uma certa compreensão de que o trabalho de Rank seja importante pelo pioneirismo, ao buscar essa dimensão originária da vida psíquica. Essa preocupação se dá não apenas do âmbito da teoria, mas na própria condução do tratamento e na dinâmica da transferência. Nesse sentido, seu trabalho se alinha a de outros psicanalistas da época, em especial os de Ferenczi, que também abordou a questão das origens da vida psíquica em uma perspectiva biológica, além de propor modificações na teoria da técnica para contemplar um analista em posição feminina e maternal (Figueiredo, 1999). Por conta de divergências intelectuais, Freud afastou-se tanto de Ferenczi quanto de Rank. Por sinal, a ruptura definitiva com este deu-se a partir da publicação do livro O trauma do nascimento (Gay, 2012). Tal afastamento levou ao ostracismo das obras de ambos por muitas décadas, sendo só mais recentemente resgatadas. Embora a contribuição de Ferenczi já venha sendo retomada e republicada há alguns anos no Brasil, só na última década começou o movimento de publicação das obras de Rank, do qual este livro é certamente o melhor e mais importante exemplo.
A contextualização histórica da obra, indicando o pioneirismo de Rank na atenção ao feminino, ao maternal e ao corpo é muito bem-feita na apresentação a esta edição brasileira. O que cabe acrescentar é que Rank também faz sua tese alicerçado no mais puro espírito freudiano de investigação psicanalítica, articulando de forma muito convincente e consistente fontes clínicas, culturais e teóricas. Além disso, sua discussão sobre o trauma certamente ultrapassa o julgamento de mérito sobre o peso determinante da experiência empírica do nascimento, o ponto que Freud enfatizou corretamente em sua crítica. Diante das discussões contemporâneas sobre o originário, pensado como horizonte irrepresentável da experiência e tomado pela perspectiva traumática da pulsão de morte e do desejo do Outro (Campos, 2014, Nakashima, 2019), certamente é uma contribuição pioneira que não só merece ser ressignificada como também revisitada.
Referências
Campos, E. B. V. (2014) Limites da representação na metapsicologia freudiana. São Paulo: Edusp. [ Links ]
Figueiredo, L. C. M. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta. [ Links ]
Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929) (pp. 13-123). São Paulo: Companhia das Letras. (original publicado em 1926). [ Links ]
Gay, P. (2012). Freud: uma vida para o nosso tempo (2a. ed). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Kehl, M. R. (2000). O sexo, a morte, a mãe e o mal. In Nestroviski, A., & Seligman-Silva, M. (Orgs.), Catástrofe e representação (p. 137-148). São Paulo: Escuta. [ Links ]
Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [ Links ]
Laplanche, J. (1987). Problemáticas I: a angústia. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Nakashima, A. E. R. (2019). Contrapontos entre Freud e Lacan sobre a angústia: perspectivas do Seminário 10 para Inibição, sintoma e angústia. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP. [ Links ]
Obaid, F. P. (2012). Sigmund Freud and Otto Rank: debates and confrontations about anxiety and birth. International Journal of Psychoanalysis, 93(3): 693-715. [ Links ]
Endereço para correspondência
Antônio Henrique Ruiz Nakashima
E-mail: henri.nak22@gmail.com
Érico Bruno Viana Campos
E-mail: erico.bv.campos@unesp.br
*Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Psicólogo do SEAPES (Serviço de Apoio Psicológico ao Estudante) da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB – Unesp).
**Doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp).