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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.26 no.51 Belo Horizonte Dec. 2004

 

ARTIGOS

Contratransferência, perversão e o analista in-paciente

 

 

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

A partir do conceito de contratransferência, investiga-se a hipótese de que atuações perversas dirigidas ao inconsciente do analisando possam partir de analistas estruturalmente neuróticos ou perversos. Para elas se propõe o termo acting-in.

Palavras-Chave: Contratransferência, Perversão, Técnica psicanalítica, Ética em Psicanálise, Acting-in


ABSTRACT

From the concept of countertransference, a hypothesis is investigated: that perverse acting outs directed towards the patient's unconscious may come from analysts, both structuraly neurotic or perverse. The term "acting in" is proposed for them.

Keywords: Countertransference, Perversion, Psychoanalytic technique, Ethics in Psychoanalysis, "Acting in


 

 

"A contratransferência é o melhor dos servos, mas o pior dos mestres." (Hanna Segal)

"Quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal" (Anatole France)

 

Introdução

Entre os vários conceitos que formam o arcabouço teórico psicanalítico, talvez o que tenha gerado a maior controvérsia e a conseqüente confusão sobre seu real significado, ao longo de sua tortuosa trajetória, seja o de contratransferência. De obstáculo ao trabalho analítico a instrumento potencial para a condução de uma análise, a contratransferência teve, desde sua identificação inicial por Freud, aliados e inimigos quanto a seus potenciais efeitos danosos e terapêuticos. Outros mudaram o foco da discussão, como Lacan, que a abordou a partir da questão de existir ou não o "Desejo do Analista". Independentemente da linha teórica pela qual seja estudada e de seus potenciais efeitos numa análise, pode-se dizer que a contratransferência sempre dirá respeito à atitude do analista em relação ao analisando. O nosso propósito é investigar a possível relação dessa atitude com os conceitos psicanalíticos de contratransferência e perversão.

O conceito de contratransferência sofreu profundas transformações desde sua descrição original por Freud e, para situá-lo na visão psicanalítica contemporânea e tentar articulá-lo com a perversão por parte do analista, objetivo central deste trabalho, torna-se necessária uma breve revisão histórica dos pontos centrais de sua conturbada evolução.

 

História

As três primeiras referências de Freud acerca da contratransferência foram feitas em 1910, numa das reuniões da "Sociedade das Quartas-Feiras", no congresso de Nuremberg e numa carta a Binswanger. Em todas estas oportunidades ele a identificou como um apego afetivo do analista em relação ao analisando e, como tal, um obstáculo ao trabalho analítico a ser prontamente reconhecido e completamente superado pelo terapeuta. Esta posição está de acordo com a visão freudiana do analista como um espelho, que só reflete aquilo que lhe é mostrado pelo paciente, para o qual o terapeuta deve apresentar-se sempre opaco. Mais tarde, Freud acrescenta a essa visão a imagem do inconsciente do analista como um receptor do inconsciente transmissor do paciente, através da atitude técnica da atenção equiflutuante por ele proposta, como forma a captar e decodificar o material trazido pela livre associação solicitada ao analisando (Freud, 1912). Esta visão permaneceu praticamente inalterada no movimento psicanalítico enquanto Freud viveu e, à exceção da significativa contribuição de Ferenczi sobre o tema, só veio a ser seriamente questionada a partir da década de 1950.

Ferenczi, a partir de 1919 e de forma mais contundente em 1928 em seu artigo "A plasticidade da técnica psicanalítica", com sua característica perspicácia clínica, empreende uma inversão lógica a partir da descoberta freudiana e intui que, se o analista pode captar e decodificar o inconsciente do analisando, este também poderia fazer o mesmo em relação ao inconsciente do analista, o que o leva a defender uma atitude de absoluta franqueza deste sobre seus sentimentos para com o paciente, base da "técnica ativa" e do "sentir com" por ele propostos. A visão da contratransferência como instrumento potencial de trabalho analítico abre as portas para que, mais tarde, outros autores venham a defender frontalmente esta posição e a consolidar a ampla controvérsia existente hoje acerca do conceito. Porém, Ferenczi foi muito além disto, ao perceber que o afã interpretativo do analista muitas vezes atende à sua necessidade de satisfação narcísica, através do poder fálico atribuído ao seu saber pelo paciente. Esta observação o preocupava, por ver nela a possibilidade de utilização errônea de sua proposta técnica do uso ativo e prudente da contratransferência no trabalho analítico. O mesmo rigor ético o fez denunciar o fato de que alguns analistas vinham usando sua proposta "para dar livre curso às suas propensões para a aplicação de medidas de coerção inteiramente não analíticas e até, por vezes, impregnadas de sadismo". No mesmo sentido advertiu que outros poderiam tomar suas "considerações sobre a indispensável paciência e tolerância do analista como base para uma técnica masoquista..." (os grifos são meus). As preocupações de Ferenczi aqui pontuadas demonstram claramente como contratransferência e perversão poderiam, para ele, vir a expressar uma mesma atitude do analista.

A partir do trabalho de Ferenczi, o foco sobre o processo psicanalítico começou a se deslocar do paciente para o próprio analista e surgiu a grande série de trabalhos dedicados a este tema, iniciada com "Ódio na contratransferência" de Winnicott (1947). Mas o chamado boom da contratransferência foi deflagrado pelos trabalhos simultâneos e independentes de Paula Heimann na Inglaterra (1950, 1960) e Racker na Argentina (1952, 1953, 1957, 1958, 1959, 1960), que marcaram uma nova visão sobre o tema e o incluiram oficialmente como parte do desenvolvimento da técnica analítica quase meio século após sua descrição inicial por Freud, já que as valiosas contribuições de Ferenczi foram marginalizadas no seio do movimento psicanalítico. Este longo hiato suscita profundas interrogações sobre seu significado, que podem ser resumidas na seguinte observação de Blenda de Oliveira:

Este atraso na aceitação, por grande parte dos analistas, de um fenômeno tão importante não é por acaso; ele tem razões inconscientes e político-institucionais. O tema, bastante incômodo, coloca o analista diante de sua própria privacidade - de seus mais íntimos conflitos, sentimentos, fantasias, desejos e limites - e acaba com a agradável ilusão de superioridade em relação a seus pacientes (in Figueira, 1994, p.87).

O cerne da proposta de Heimann é de que a contratransferência engloba a totalidade dos sentimentos do analista em relação a seu paciente, sejam eles conscientes ou não, e de que eles devem ser utilizados como um recurso terapêutico, após sua necessária contenção, elaboração e transformação em interpretações sobre o funcionamento psíquico do paciente, visão por ela assim resumida:

Minha tese é a de que a resposta emocional do analista ao seu paciente dentro da situação analítica constitui um dos mais importantes instrumentos para seu trabalho. A contratransferência do analista é um instrumento para pesquisar o inconsciente do paciente (Heimann, 1950).

É interessante notar que o conceito de contratransferência fez percurso histórico semelhante ao de transferência, inicialmente associada por Freud como uma forma de resistência ao tratamento por parte do paciente e logo depois identificada por ele mesmo como valioso instrumento para o trabalho analítico. Freud descreveu a contratransferência como um obstáculo à análise a ser radicalmente eliminado pelo analista, mas foi incapaz de nela reconhecer seu potencial terapêutico, embora admitisse a existência da projeção do paciente na intimidade do processo analítico, como fica claro na seguinte observação:

Sem dúvida, o fazem, mas não projetam no ar, por assim dizer, nem onde não há nada semelhante, mas deixam-se guiar por seu conhecimento do inconsciente e deslocam sobre o inconsciente do outro a atenção que subtraem ao seu próprio (Freud, 1922).

Outra particularidade desse percurso histórico é que a contratransferência motivou a traumática ruptura entre Melanie Klein e sua discípula Paula Heimann, a exemplo do que ocorreu entre Freud e Jung em relação ao conceito psicanalítico da libido. Klein discordava frontalmente da posição defendida por Heimann, alegando que o uso da contratransferência poderia constituir "uma licença para o analista projetar defensivamente qualquer de seus sentimentos no paciente", e tentou inutilmente persuadi-la a não apresentar seu trabalho no congresso de 1950, publicado no mesmo ano. Ruptura semelhante viria a ocorrer também entre Klein e duas outras de suas discípulas, Margaret Little e Hanna Segal.

A partir deste trabalho despertouse um enorme interesse sobre a contratransferência como potencial recurso terapêutico, expresso pela publicação de inúmeros artigos, entre os quais se destacam os de Little, Nacht, Reich, Balint e Bion, entre muitos outros. Porém, ao contrário de convergirem para uma visão unificadora, os diversos autores dividiram-se entre vê-la como obstáculo à análise e como instrumento terapêutico valioso e, como observa Nasio, polarizaram-se em duas grandes correntes teóricas: a que toma a contratransferência como o conjunto de todas as reações do analista diante do paciente e aquela que a considera unicamente como a percepção direta e inconsciente, por parte do analista, do conjunto de manifestações da emergência do inconsciente do paciente. Esta divisão teve outros desdobramentos teóricos e gerou a conseqüente imprecisão e confusão conceitual que hoje existe acerca da contratransferência, assim denunciada por Orr (1954):

A discussão do manejo técnico da contratransferência inevitavelmente varia com as diferenças na definição do próprio conceito. É ela simplesmente a resposta do analista à transferência do paciente, e isto significa sua resposta consciente, inconsciente ou ambas? Ou ela significa reações transferenciais do analista ao paciente, seja à sua transferência, a outros atributos do paciente ou a ele como um todo? Ou a contratransferência inclui todas as atitudes e sentimentos do analista em relação ao paciente?

A mesma fragmentação e ambigüidade conceitual fica explicitada na seguinte definição, presente na Encyclopeadia of Psychoanalysis (Eidelberg, 1968):

Contratransferência. O termo é usado por alguns analistas em conexão com todos os sentimentos do analista em relação ao paciente, enquanto outros preferem usá-lo apenas quando desejos infantis reprimidos estão envolvidos. O analista ideal deveria estar livre de todas estas emoções infantis, mas a experiência mostra que este objetivo é difícil de atingir e que o trabalho analítico pode mobilizar desejos inconscientes que de outra forma talvez permanecessem adormecidos. Sempre que circunstância semelhante ocorra, o analista deve ser capaz de reconhecê-la e analisá-la em si mesmo ou solicitar que um colega o faça para ele.

Esta definição cita uma outra idéia polêmica relacionada ao confuso conceito de contratransferência, que motivou acaloradas discussões no meio psicanalítico: o mito do analista perfeitamente analisado (Silverman, 1985). Um dos mais incisivos pronunciamentos a este respeito foi o de Sharpe (1947), que afirmou: "Dizer que um analista tem complexos, pontos cegos, limitações, é apenas dizer que ele ainda é um ser humano. Quando ele deixa de ser um ser humano comum, ele deixa de ser um bom analista." A mesma autora acrescenta: "Nós nos iludimos se pensamos que não temos contratransferência. É a sua natureza que interessa" (in Sandler, 1976, p.60).

Diante de tal imprecisão conceitual e da conseqüente divergência sobre o papel que a contratransferência pode ocupar na condução de uma análise, é natural que se busque na literatura uma visão técnica balizadora sobre o tema que auxilie o analista a se posicionar diante do paciente. Neste sentido, a contribuição de Lacan é particularmente valiosa.

 

Lacan

Como pontua Leda Barone, "não há propriamente uma teoria da contratransferência para Lacan, mas uma crítica" (in Figueira, 1994, p.245), que pode ser resumida na seguinte afirmação feita por ele em seu Seminário 1 (1953-4): "... a contratransferência nada mais é do que a função do ego do analista, o que chamei a soma dos preconceitos do analista". Ele rejeita o termo por considerar a contratransferência como "a implicação necessária do analista na situação de transferência" (idem, p.257) e por ver na "transferência um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista" (idem, p.258). Assim, Lacan muda o foco de discussão sobre o tema, deslocando-o da relação entre analista e paciente para situá-lo na relação do analista com ele mesmo, ou seja, com o lugar que ele deve ocupar na análise: o de Sujeito Suposto Saber sobre o desejo do paciente. Para tanto, exatamente como Freud sempre defendeu, o analista "deve, em sua relação com o analisante, desaparecer enquanto subjetividade, colocando-se como suporte da transferência" (idem, p.258). Para exercer sua função na análise é imprescindível que o analista sustente aquele lugar e faça semblant de um objeto precioso, o agalma, "maravilha das maravilhas", "tesouro de significantes", o objeto a criado por Lacan.

Embora Lacan já houvesse abordado a querela conceitual sobre contratransferência em seu artigo "Intervention sur le transfert" (1951), foi no artigo "Variantes do tratamento-padrão" (1955) que ele, como pontua Nasio (1999, p.105-6), consolidou a relação analista-lugar como o elemento decisivo num tratamento psicanalítico contemporâneo. Esta relação, que garante ao analista a função de objeto atrator para o paciente, é sustentada pela função significante do Desejo do Analista, definida por Lacan como a causa do desejo de análise. O conceito de contratransferência, nesta concepção teórica, define o conjunto de obstáculos imaginários que dificultam ou impedem o analista de ocupar esse lugar. Nas palavras de Nasio, "se o Desejo do Analista designa o fato de ocupar efetivamente o lugar de objeto, a contratransferência designa tudo o que se opõe a isso". Assim, é fácil perceber a absoluta fidelidade de Lacan à visão freudiana da contratransferência como um obstáculo ao trabalho do analista e como nenhum dos dois autores creditam ao conceito o potencial terapêutico defendido por vários outros. Nasio sintetiza bem esta posição ao afirmar que "sobre estes dois pontos nós nos opomos à corrente que diz: 'todas as reações do analista + sua instrumentalização'. Nossa posição é: certas reações narcísicas, imaginárias, egóicas = não instrumentalizá-las" (idem, p.116). Sustentar o lugar que lhe cabe no dispositivo analítico, fazendo valer seu Desejo de Analista, é a orientação técnica de Lacan que resume o significado de um postulado ético para o psicanalista.

 

Técnica

Lacan, em seu artigo "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958), também teorizou que o direcionamento técnico do tratamento psicanalítico, em analogia às guerras, comporta os níveis da política, da estratégia e da tática. Nesta concepção, ética, manejo da transferência e interpretação devem ser, respectivamente, os princípios norteadores no confronto que se trava, no setting analítico, entre o Desejo de Analista e as resistências do paciente. No que se refere ao próprio terapeuta, pode-se dizer que o embate ocorre entre o Desejo de Analista e suas eventuais resistências contratransferenciais. Estas podem manifestar-se sob várias formas de imposturas éticas, que inviabilizam o progresso do tratamento. Para facilitar sua identificação, creio ser útil diferenciar as intervenções do analista em três categorias: analíticas, não-analíticas e anti-analíticas.

A intervenção analítica é, em essência, a interpretação, seja ela feita pela palavra ou pelo ato analítico. Sua direção é apontada pela construção da fantasia inconsciente do analisando, feita a partir do deslizamento de sua cadeia significante no discurso e das outras formações de seu inconsciente - sonhos, lapsos, atos falhos e atuações. Ela só é passível de se originar, a partir do inconsciente do analista, se este se situa em seu lugar ético de Sujeito Suposto Saber e objeto causa de desejo, sustentado por seu Desejo de Analista. Somente nesse lugar é que lhe será possível suscitar e manejar a transferência do analisando, suporte indispensável para a interpretação. Nela, ética, estratégia e tática estão simultaneamente contempladas no tratamento analítico.

Intervenção não-analítica talvez pudesse ser definida como aquela que, apesar de não contribuir diretamente para a abertura do inconsciente do analisando, seria eticamente aceitável por visar, pelo manejo estratégico da transferência, preservar a continuidade do tratamento analítico e a possibilidade de sua efetiva aplicação, através de futuras interpretações. Ela seria justificável em fases do tratamento em que a transferência ainda não se estabeleceu, se encontra enfraquecida ou quando predomina a necessidade de acolhimento do analisando por parte do analista, como pode ocorrer no início da análise ou em momentos de crise. Assim, o Desejo de Analista existe e sustenta a ética, a estratégia se resume momentaneamente em preservar a transferência e a tática é postergada até instante mais propício do tratamento, para que a interpretação possa ser tolerada pelo analisando.

Por antianalítica deve ser entendida toda intervenção que fira a ética da Psicanálise e na qual não esteja inscrito o Desejo de Analista. Definitivamente ela não é interpretação e usa a transferência como veículo de uma impostura ética que destitui completamente o analista de seu lugar e, portanto, de sua função no processo analítico. Porém, a grande gama possível de atitudes antianalíticas torna necessário tentar identificá-las melhor. Proponho que sejam divididas em contratransferenciais e perversas. As primeiras, motivadas por afetos inconscientes gerados no analista pela transferência do paciente, se expressariam por erros técnicos do terapeuta que, deslocado momentaneamente de seu lugar por uma afânise transitória e pontual de seu Desejo de Analista, perde o discernimento ético que o sustenta. Freud já havia identificado "duas formas típicas de contratransferência: o amor mal concedido e o saber excessivamente aplicado" (Nasio, 1999, p.110). Há na literatura inúmeras descrições desse tipo, podendo-se citar como exemplos de erros contratransferenciais referentes ao saber "a falta de uma palavra esperada ou, ao contrário, uma palavra proferida em tempo inoportuno, silêncios impróprios, excessivos, mal situados, intervenção comunicada ao analisando em linguagem demasiado técnica ou intelectual, etc" (idem, p.112). No nível do amor, estão as manifestações referentes à "paixão, isto é, o amor ou o ódio, a atração erótica ou a aversão sensual, por exemplo o odor. Há analisandos de quem não gostamos, por seu odor, sua postura, sua presença. Há reações sensíveis, sensuais, no analista que consideramos como contratransferenciais" (idem, p.122). Nasio acrescenta uma terceira classe de manifestação contratransferencial: a angústia, "signo da iminência de um perigo para o analista. Esse perigo é duplo: o primeiro significa o medo de aprofundar a análise, de impulsionar e conduzir o analisando, de acompanhá-lo na travessia e na vivência da seqüência dolorosa da transferência ... prova dolorosa não só para o paciente mas também para o analista, e nada garante que ela tenha um resultado favorável. É o que Freud chama de 'rochedo da castração'. Nunca estamos certos de poder contornar este rochedo, atravessá-lo e passar para outra etapa. ... Um outro perigo provoca angústia no analista: é o de ter que ocupar efetivamente o lugar de objeto" (idem, p.116-7). Porém, Nasio enfatiza que a angústia é "a expressão mais franca, mais pura, diríamos até a mais saudável, a mais madura da contratransferência do psicanalista. ... Se um psicanalista pode perceber que está angustiado, isso significa que está a caminho de ocupar o seu lugar. Atribuo à contratransferência não só a função de um obstáculo, mas também a função de ser o signo da proximidade do acesso ao lugar do analista" (idem, p.122-3), observação clinicamente valiosa.

A outra categoria de intervenções antianalíticas aqui proposta, objeto central desta discussão - a das intervenções perversas - envolveria sempre uma atuação por parte do analista, dirigida ao inconsciente do analisando. Para investigar esta hipótese é necessário abordar o conceito de perversão e articulá-lo com a contratransferência.

 

Perversão

Em "Fetichismo" (1927), Freud faz a intrigante afirmação de que na perversão, antes de definir-se o desmentido como mecanismo defensivo dominante no confronto com o horror da castração, há a passagem anterior pelo recalque, apontando, a nosso ver, para a possível coexistência dos dois processos entre os perversos. Ao olhar a genitália feminina pela primeira vez e vivenciar a angústia da possibilidade de sua própria castração, a criança, como afirma Freud, recalca este afeto e recusa (ou desmente) a idéia de que as mulheres não têm pênis. A aversão à genitália feminina, presente em todo fetichista, permaneceria como estigma indelével do recalque que se efetuou. Tal constatação, a partir do texto freudiano, levanta a possibilidade teórica de que o mesmo possa ocorrer em relação à neurose, ou seja, de que ao lado do recalque como mecanismo defensivo dominante no confronto com a castração, possa permanecer latente a alternativa do desmentido, clinicamente inaparente no sujeito estruturalmente neurótico. Na hipótese da presente discussão, isto seria válido também para o analista. Argumentos a este favor podem ser encontrados em "Análise Terminável e Interminável" (1937) no qual, nas duas partes finais, Freud alerta para o fato de que o sucesso de uma análise não depende apenas de aspectos inerentes ao paciente, mas também daqueles relacionados à individualidade do analista. Freud cita Ferenczi para afirmar que os objetivos finais idealizados por este para uma análise - o homem superar sua resistência à passividade em relação a outro homem e a mulher abandonar completamente seu desejo de possuir um pênis - são definitivamente inatingíveis. Unifica estes objetivos ideais no conceito de "repúdio à feminilidade" e o associa, em última instância, à resistência em aceitar-se a angústia de castração, situação definida por ele como o "rochedo da castração". Tomando tal afirmação de Freud no contexto do tema aqui em discussão - a perversão do analista -, pode-se chegar à construção teórica de que, apesar de presumidamente ter-se havido com a castração na travessia de seu fantasma durante sua própria análise, determinado analista estruturalmente neurótico pode desmentir inconscientemente esse percurso durante a análise de algum paciente, pela reatualização de contéudos intoleráveis de seu psiquismo intocados ou abordados de forma insatisfatória em sua experiência de analisando. Desta forma, a clássica fórmula de Mahony para o perverso em relação à castração - "eu sei, mas mesmo assim..." - pode ser atuada no setting analítico pelo analista, quando ele se vê forçado pelo analisando a assumir uma posição "feminina" e a se mostrar como "não todo", como ser de falta e como "falta a ser", condições éticas inerentes à sua função de objeto causa de desejo para o paciente, mola mestra da análise. Em se tratando de um analista, o saber sobre a castração extrapola a experiência inconsciente supostamente vivenciada na própria análise, por ser reforçado pelo conhecimento adquirido ao longo de sua formação teórica em Psicanálise. Este fato coloca em relevo um possível fator consciente acerca de suas atuações e agrava seu significado ético. Se a esta situação acrescentarmos a possibilidade de que esse analista reconheça algo de errado em seu trabalho e se omita a submeter-se a uma nova análise e/ou a enfrentar o problema em supervisão, o caráter perverso de suas atuações fica caracterizado.

Neste ponto, surge inclusive a questão acerca da estrutura psíquica de tal analista: trata-se de um neurótico com um "núcleo perverso" refratário à análise (teria sido ele inadequadamente analisado por um terapeuta portador de "pontos cegos" similares?) ou de um sujeito estruturalmente perverso que, como mestre da retórica, apropria-se do discurso e do dispositivo analíticos para colocá-los a serviço do próprio gozo? Esta possibilidade mais grave - a de um analista estruturalmente perverso -, de difícil aceitação à primeira vista, tem também em Freud uma sustentação téorica indireta, se nos reportarmos ao seu inacabado "Esboço de Psicanálise" (1940) no qual, no capítulo VIII, afirma textualmente:

Deparamo-nos com fetichistas que desenvolveram o mesmo temor da castração dos não-fetichistas e reagem da mesma maneira a ela. Seu comportamento, portanto, expressa simultaneamente duas premissas contrárias (o grifo é meu). ... As duas atitudes persistem lado a lado por toda a vida, sem se influenciarem mutuamente, o que pode ser corretamente chamado de divisão do ego, circunstância que capacita-nos a compreender como é que o fetichismo, com tanta freqüência, é apenas parcialmente desenvolvido. Ele não governa exclusivamente a escolha de objeto, mas deixa lugar para um maior ou menor comportamento sexual normal; às vezes, na verdade, contenta-se com o desempenho de um papel modesto ou se limita a uma mera alusão.

Não seria o voyeurismo, entre tantas outras possibilidades de gozo propiciadas pelo dispositivo analítico, uma "mera alusão" da perversão no analista? Neste sentido, a própria "escolha" de se tornar um analista estaria inconscientemente condicionada por uma formação de compromisso, que busca gratificar derivados pulsionais primitivos como os desejos de ver alguém sofrer ou de satisfazer a curiosidade sexual, sublimados em versões modificadas vivenciadas no trabalho psicanalítico (Brenner, 1985).

 

"Acting-in"

Assim, a tese aqui defendida é que intervenções antianalíticas perversas seriam aquelas que extrapolam o plano dos afetos gerados no analista na sua interação com o analisando e de suas eventuais manifestações contratransferenciais, sejam elas no nível do saber, da paixão ou da angústia. A intervenção perversa é da ordem do ato, do fazer, independente da estrutura psíquica que a produz e do recurso utilizado pelo analista para impô-la ao analisando. Seu instrumento ideal é a palavra, já que ela é invasiva, é esperada pelo analisando e não deixa rastros de sua emissão. Proponho que as atuações perversas do analista, por serem endereçadas ao inconsciente do analisando, sejam identificadas com o termo específico de acting-in.

O psicanalista Jean-Claude Maleval faz, em seu livro Lógica del delírio, um confronto das estruturas clínicas em sua relação com o gozo e pontua que, se o psicótico mantém uma relação de certeza sobre o gozo e o neurótico supõe sobre ele, o perverso testemunha um saber fazer gozar. O que particulariza o perverso é que ele realiza em ato sua fantasia inconsciente. Por outro lado, a atuação perversa é o que defende o sujeito do horror inconsciente do confronto com a angústia de castração, seja ele ou não estruturalmente perverso - como indiretamente nos foi possível intuir a partir do texto freudiano -, seja ele ou não um analista.

Como diferenciar uma intervenção contratransferencial de uma perversa? A angústia, como observaram Nasio e outros autores, é um sinal para o analista de que a instabilidade por ele vivenciada diante de determinados conteúdos inconscientes do analisando aponta para "restos" latentes de sua própria análise, agora reatualizados. A presença de um desconforto diante de uma manifestação contratransferencial é uma sensível indicação para o analista de que ele percebe estar incorrendo em alguma impostura ética e lhe permite a possibilidade de uma retificação subjetiva posterior, seja em uma nova análise, seja sob supervisão. O acting-in, ao contrário, é cômodo e isento de angústia por parte do analista que, nesse instante como qualquer perverso, se esforça inconscientemente em mantê-la no campo do outro.

Logo, a atitude ética do analista aparece em transferência na interpretação. As intervenções não-analíticas são eticamente neutras pois, embora não favoreçam o progresso da análise, não a impossibilitam e permitem seu posterior prosseguimento. As manifestações contratransferenciais, embora antianalíticas, permitem ao analista seu reconhecimento pela angústia que nele elas suscitam e seu reposicionamento ético no dispositivo analítico. O acting-in, em relação ao inconsciente do analisando, é, entretanto, uma impostura ética da ordem da invasão, da intrusão, da interferência, da influência, da intromissão. O não-consentimento do outro é o que, como qualquer ato perverso, o caracteriza e o distingue. Mas sob que formas este ato pode surgir? Antes de explicitá-los, lembremo-nos do significado do termo "ato" em Psicanálise.

Muito cedo Freud intuiu que não só as palavras do analista influenciavam o analisando e tentou, muitas vezes inutilmente, evitar ele mesmo imposturas éticas, como pode-se entender da seguinte citação de Forrester:

A prática de Freud indica que ele havia percebido que qualquer coisa que dissesse ao paciente ... era o mesmo que interpretar. Mas não apenas isso: percebeu que suas interpretações eram atos e que suas ações corporificavam interpretações. E, no entanto, mesmo sabendo disso, ele continuou a servir comida aos famintos, a esmurrar o braço de sua poltrona e a repreendê-los por acharem-no velho demais para ser amado. Atos, não resta dúvida; não há perigo de vermos Freud esgueirandose timidamente por trás do muro do silêncio, com medo de perturbar o processo analítico (Forrester, 1990, p.19).

Assim, mesmo Freud incorreu, no início de sua prática, em manifestações contratransferenciais expressas em atos e palavras mas, por seu compromisso ético com a Psicanálise, sabemos que ele foi capaz de reconhecê-las e procurar evitá-las. O acting-in, entretanto, é refratário à retificação subjetiva por parte do analista que, ou não se dá conta dele, ou se omite em corrigir-se caso o reconheça. Isto nos remete à possibilidade de que o acting-in se origine tanto de uma estrutura perversa quanto de um analista estruturalmente neurótico insatisfatoriamente analisado. Cito Quinet:

Será que um sujeito pode funcionar como psicanalista se sua fantasia não foi tocada em análise? O que fará ele com seus analisantes? Se sua fantasia não foi atravessada no sentido de uma desarticulação entre sujeito e objeto, o analista tenderá a se situar em um dos pólos colocando o analisante no outro. Se se situa como sujeito, o analisante virá no lugar de objeto de sua fantasia (S a), acentuando a densidade fantasiosa com que o neurótico se defende da confrontação com o desejo enigmático do Outro. Se o analista se situa como objeto e o analisante como sujeito (a S), ele estará reproduzindo a estrutura da fantasia perversa. Ocupar o lugar de objeto da fantasia para o analisante é distinto de bancar o objeto no faz-de-conta ocupando o lugar de agente do discurso analítico (a ? S). Na hipótese de o analisante interromper sua análise sem ter atravessado a fantasia, mas provocando um curto-circuito da fantasia, em vez do ato analítico teríamos o acting-out ou a passagem ao ato (Quinet, 2000, p.107).

Logo, se o analista interrompeu prematuramente sua análise por um acting-out, abortando assim o nascimento de seu Desejo de Analista, ele estará predisposto a repetir essa atuação no dispositivo analítico e a dirigir seu acting-in ao seu paciente, eternizando seu desconhecimento sobre a castração pois, como conclui Quinet:

Supomos que a modalidade de interrupção da análise pelo analisante marcará seus atos como analista. Assim, o "analista do acting-out", ao acentuar o objeto a em sua encenação, faz, com seu ato, um endereçamento ao Outro para lhe devolver o objeto que lhe pertence. O analista situaria então o analisante no lugar do Outro, a quem ele dirige a mensagem cifrada de sua atuação, numa mostração de sua própria pulsão. Se o ato analítico está à mercê do acting-out é, a nosso ver, pelo fato de o analista estar tanto num como no outro lado do objeto, sendo que toda a diferença reside entre o bancar o (a) do primeiro e o mostrar o (a) do segundo. ... A passagem ao ato do analista se dá quando ele está afetado pelo analisante. Em outros termos, quando o analista age, e não cala, a sua contratransferência. Em ambos os casos, o analista age movido não pela certeza do ato psicanalítico, mas pela segurança que lhe garante a fantasia (idem, p.108).

Enfatizada a diferença essencial entre ato analítico e atuação do analista, é possível tentarmos identificar situações que poderíamos denominar de acting-ins. A mais comum talvez seja a eternização do processo analítico redundando em "análises intermináveis", resultado da análise interrompida do próprio analista. A dificuldade, por parte deste, de deixar o sedutor lugar de "maravilha das maravilhas", de agalma que ocupa para o analisando e de, nas palavras de Lacan, passar "de objeto a dejeto" no final de análise, aponta para a dimensão narcísica de sua resistência e se expressa por "um tácito acordo de mútuo acompanhamento interminável que não atravessa a barreira narcicista (pacto perverso). Nestes 'pares terapêuticos', há uma verdadeira evitação fóbica à penetração da elaboração final do tratamento que conduziria à sua separação" (Arbiser, 1977). Nestes casos, como de qualquer acting in, o analista tipicamente sente-se cômodo com a situação e não angustiado, como ocorreria diante de um impasse na condução do tratamento, denunciando o perfeito conluio de suas fantasias contratransferenciais de onipotência e imortalidade com a complacência masoquista do paciente. Este analista é incapaz de incorporar o conceito de que "toda psicanálise é interminável, mas todo tratamento deve ser terminável" (idem). Nacht (1955) afirma que uma análise aparentemente interminável pode ocorrer também nos "casos em que o psicanalista aparentemente respeitou a técnica clássica de tratamento. ... É na contratransferência que se encontra a chave de neuroses de transferência sadomasoquistas. O masoquismo inconsciente do paciente desperta o sadismo inconsciente do analista" (idem). Esta relação perversa é habitualmente "objeto de racionalização por parte do analista como é geralmente a atividade perversa manifesta. ... Esta racionalização se apóia no esquema referencial teórico e técnico do analista, consolidando a cristalização da relação" (Baranger et al, 1978). A racionalização do analista é elemento essencial neste tipo de acting-in, já que é ela que lhe garante a patognomônica ausência de angústia, "porque a atividade perversa é racionalizada e integrada no esquema referencial, aparecendo como totalmente inocente" (idem). Por outro lado, a interferência do analista no processo visando o prolongamento da análise por motivações financeiras, caracteriza típico acting-in e permite escansão reveladora: in - ter (o paciente) - ferir (a ética).

A relação sadomasoquista pode aparecer na análise de outras formas, seja como "o analista martirizado ... pelo conluio inconsciente do masoquismo do analista com o sadismo do paciente" expresso por depreciações e insultos dirigidos por este ao terapeuta, seja como "o paciente flagelado" (idem) e vitimizado pelos acting-ins intrusivos, fragilizantes e indutores de dependência vindos do analista.

O envolvimento erótico do analista com o analisando é outra expressão clara de acting-in, seja ele explícito, seja subliminar na forma de um jogo velado de sedução entre os envolvidos, para o qual a paciente histérica é particularmente afeita. Este tipo de impostura é reconhecidamente mais comum entre analistas masculinos, embora também ocorra entre mulheres em torno de uma questão da feminilidade:

A mulher analista que perpetua seu desejo de maternidade mantém o paciente prisioneiro de uma sedução originária, caracterizando assim uma relação perversa onde, embora não haja envolvimento sexual explícito, ela é muito mais efetiva, já que não pode ser denunciada como tal (Salles et al, 1995).

Outra expressão clínica freqüente de acting-in é a que se refere à pulsão escópica, que encontra no dispositivo analítico o ambiente ideal para sua instalação:

Podemos admitir que a perversão polimorfa do analisando, ainda que não esteja a princípio focalizada no exibicionismo, encontra na situação analítica uma oportunidade ótima de cristalizar-se em exibicionismo, já que é "dever" do analisando mostrar-se ao analista. Todas as perversões, ao expressar-se na análise, passam então por intermédio do exibicio-nismo, que além do gozo próprio que pode proporcionar, se transforma no veículo necessário de outras múltiplas situações perversas. Se por sua vez o analista não tem suficientemente discriminadas e elaboradas as fantasias voyuerísticas que determinaram em parte sua vocação (ou seja, se restou um núcleo perverso voyeurístico isolado e recalcado) [o grifo é meu], as condições existem para a constituição de um par em torno do ver e exibir" (Baranger et al, 1978). Neste sentido, a própria "regra fundamental" da Psicanálise, ao expor pela livre associação as fantasias, experiências e desejos do analisando ao analista, pode representar para este uma vivência voyuerística típica que, por garantir ao terapeuta um gozo não denunciado, pode se prestar à eternização da análise.

Há na literatura referências à sonolência e à letargia do analista durante as sessões de determinados pacientes como manifestações contratransferenciais (Boyer, 1992) (Athanassiou, 1993). Interpretá-las como acting-ins é possível se lembrarmos que o silêncio absoluto do terapeuta pode ser intensamente disruptivo e angustiante para o paciente que atravessa um período doloroso de sua análise ou que vive um momento de crise, podendo significar uma atuação perversa inconsciente do analista.

Por fim, a sugestão por parte do analista poderia ser aceita, como intervenção não-analítica, em períodos cruciais da análise em que o paciente demanda orientações do terapeuta e este responde a elas, total ou parcialmente, com a intenção consciente de preservar a transferência quando ela se acha amea-çada ou enfraquecida, visando a continuidade do tratamento. Neste sentido, o princípio ético da neutralidade cederia espaço à prioridade momentânea, mas também ética, de sustentação da análise. Por outro lado, a sugestão é manifestação contratransferencial e potencialmente um poderoso instrumento de acting-in, se ela é inconsciente e se expressa "como condutas de onipotência ou narcísicas, por parte do analista. Por exemplo, a sugestão na qual o analista toma o lugar, exerce o poder que a consciência e a autoridade atribuídas pelo analisando lhe confiam" (Nasio, 1999, p.119).

 

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