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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.26 n.51 Belo Horizonte dez. 2004

 

ARTIGOS

A perversão sob a ótica da Medicina Legal

 

 

Karla Cristhina Alves*; Silas Prado de Sousa

*Faculdade de Medicina da UFMG

 

 


RESUMO

Caracteriza-se a abordagem da Medicina Legal sobre a perversão e o seu embate com a psicanálise, descrevendo questões envolvidas neste conflito. Fez-se uma pesquisa bibliográfica no banco de dados da MEDLINE usando o termo perversão combinado com os seguintes termos: psiquiatria forense, psicanálise, parafilias e transtornos sexuais, sem limite de datas. Independentemente da linha de investigação, boa parte dos estudos mostra que a visão da Medicina Legal sobre a perversão é circunscrita estritamente à esfera sexual. É o resultado de um processo histórico polêmico e cheio de moralismo acerca da sexualidade. A psicanálise vem questionar essa visão reducionista, mostrando-se um instrumento de especial importância na caracterização da perversão enquanto uma conjuntura estrutural do ser humano. Apesar da ampliação da abrangência conceitual do termo perversão ao longo da história, para a Medicina Legal a perversão adquire o caráter puramente sexual, caracterizando a chamada perversão sexual sob o ponto de vista jurídico. Tal posição insiste em deixar de fora do debate a psicanálise e as verdadeiras questões éticas envolvidas.

Palavras-Chave:Perversão sexual, Parafilia, Psicanálise, Medicina legal


ABSTRACT

Perversion from the medical-legal perspective
The present paper looks to characterize the approach of Medical Law to perversion and its clashes with psychoanalysis, describing the important issues involved in this conflict. A bibliographic search was carried out in the database of MEDLINE employing the term perversion combined with the follo-wing: forensic psychiatry, psychoanalysis, paraphilias and sexual disturbances; no date limit was used. Independent of the line of investigation, a significant number of studies show that the Medical-Legal view of perversion is restricted to the area of sex. This is the result of a controversial historical process replete with moralism with respect to sexuality. Psychoanalysis questions this reductionist view, offering itself as instrument of especial importance in the characterization of perversion as a complex of structures in human beings. In spite of enlarging the conceptual reach of the term perversion throughout history, to Medical Law perversion has a purely sexual nature, characterizing the so-called perversion as sexual, from the legal point of view. Such a position insists in leaving psychoanalysis and the true ethical questions involved out of the debate.

Keywords: Sexual Perversion, Paraphilia, Psycoanalysis, Medical Law


 

Introdução

A visão da Medicina Legal sobre a perversão é circunscrita estritamente à esfera sexual. É o resultado de um processo histórico polêmico e cheio de moralismo acerca da sexualidade. A psicanálise vem questionar essa visão reducionista, mostrando-se um instrumento de especial importância na caracterização da perversão enquanto uma conjuntura estrutural do ser humano.

 

Aspectos Históricos

O termo perversão, derivado do latim pervertere - práticas sexuais consideradas desviantes da norma sexual e social, traz já em seu significado original sua conotação sexual.

Na base deste julgamento encontrase a noção de uma sexualidade normal segundo a natureza, cujo desvio, a depravação (pravus), é definido como "contra a natureza". Tal discurso se baseia na concepção teológica de uma Natureza (physis), herdeira do pensamento grego, em particular de Aristóteles. Sustenta-se que existem inclinações naturais nas coisas, e que tudo que é natural apraza a Deus, logo é bom. É nesta perspectiva que São Tomás de Aquino qualifica certas práticas sexuais como "contra a natureza" alegando uma natureza comum aos homens e aos animais. Assim, toda vez que a sexualidade desvia da finalidade primeira que a referência animal nos mostra - união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie -, estamos diante de uma perversão: pedofilia, necrofilia, masturbação, heterossexualismo separado da procriação, homossexualismo, sodomia.

No século XIX nasce o discurso psiquiátrico que, à sua maneira, retoma a definição de perversão em função de uma finalidade natural e universal, dando uma continuidade às posições teológicas e jurídicas: o que é penal passa a ser da ordem médica. Algumas práticas sexuais são então qualificadas de "patológicas", o que faz surgir novas formas de perversões em que o outro é usado para obtenção de prazer e, mais uma vez, a finalidade natural é subvertida. Voyerismo, exibicionismo, sadismo, masoquismo vêm juntar-se à infindável nosografia psiquiátrica da época.

É no ambiente moralista da Viena do princípio do século que Sigmund Freud lança, em 1905, um ensaio de 40 páginas que constitui, na época, apenas mais uma publicação dentre muitas outras. Os "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" fez de Freud uma figura extremamente impopular. A sua contribuição para a compreensão das perversões não vem do tipo de material clínico observado, mas da afirmação escandalosa de que as tendências perversas, catalogadas pelos seus colegas como aberrações humanas, assombram os espíritos de todos os homens, inclusive daqueles que as catalogaram, estando também presentes nas crianças: "a criança é um perverso polimorfo".

 

Visão Psicanalítica

Para a psicanálise, a perversão marca um lugar no qual o sujeito evita, a qualquer preço, a experiência de castração e o reconhecimento da diferença sexual. O sujeito perverso não abre mão de sua relação narcísica com a mãe. Ele percebe a castração e justamente por isso a recusa.

Nesse sentido, a perversão não está apenas relacionada ao ato sexual, mas também com a lei. A figura paterna é destituída de seu valor simbólico e o perverso impõe sua própria lei, a lei de seu próprio desejo. Trata-se de um sujeito cuja lei não se impõe pela angústia de castração, mas sim pelo próprio desejo, pautado por aquilo que o faz gozar. Assim, ele desafia a vivência edípica, recusa a castração e a ausência como causa de desejo. A lógica perversa regula seu gozo através da anulação do campo simbólico enquanto produtor das diferenças, o corpo do outro se torna apenas um fetiche e isso encontra ressonância nos laços sociais contemporâneos.

 

Visão da Medicina Legal

Apesar da ampliação da abrangência conceitual do termo perversão ao longo da história, para a Medicina Legal - em especial para a Psiquiatria Forense - a perversão adquire o caráter puramente sexual, caracterizando a chamada perversão sexual sob o ponto de vista jurídico.

Na década de 80, o termo parafilia vem substituir a idéia de perversão sexual na literatura médica psiquiátrica. Parafilia (do grego pará = ao lado de, funcionamento desordenado ou anormal, oposição + philos = amante, que tem afinidade, atraído por) traduz melhor o sentido psicanalítico, que, segundo Laplanche (1998), é o "desvio em relação ao ato sexual normal, definido este como coito que visa à obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma pessoa do sexo oposto".

A definição médico-legal de parafilia proposta por Fávero (1951), sob o título de transtorno do instinto sexual, era: "As perversões sexuais são modificações qualitativas e quantitativas do instinto sexual, quer no que se refere à finalidade do ato, quer no que diz respeito ao objeto sexual".

 

Psicanálise x Psiquiatria

A preferência de uma pessoa por partes do corpo de outra (quaisquer que sejam elas) ou por peças de roupa pode ser considerada perversão sexual sob o ponto de vista psicanalítico mas não na psiquiatria. Isto ocorre porque segundo o DSM-IV-TR, o conceito de parafilia inclui obrigatoriamente dois critérios:

Critério A: Presença de fantasias, anseios sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitantes, em geral envolvendo objetos não-humanos, sofrimento ou humilhação próprios ou do parceiro, crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento, ocorrendo durante um período mínimo de seis meses.

Critério B: É necessário que tais anseios e/ou fantasias causem sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

Porém, já pela CID-10, as parafilias são incluídas entre os transtornos de preferência sexual e, na descrição de cada tipo, se referem a tendências recorrentes, preferências e dependência de objetos inanimados para obter satisfação sexual, sem referência aos aspectos do Critério B do DSM-IV-TR.

 

Avaliação psiquiátrico-forense na perversão sexual

É errôneo atribuir automaticamente aos crimes sexuais a redução ou anulação da imputabilidade, já que eles por si só não implicam diagnóstico psiquiátrico.

Segundo o art. 26 do Código Penal Brasileiro e o seu parágrafo único, a inimputabilidade se refere a pessoas com "doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado e perturbação da saúde mental".

Os criminosos sexuais parafílicos têm inteira capacidade de entender o caráter ilícito do ato praticado já que o transtorno não lhes confere perturbação da consciência, distorção perceptiva ou do juízo da realidade.

Já a segunda parte do art. 26 do Código Penal Brasileiro - "ser capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento" -, é discutível nos indivíduos puramente parafílicos. Por um lado, o transtorno se caracteriza por tendências e desejos que passam a maior parte do tempo sob seu controle e se houve passagem ao ato foi porque a contenção foi intencionalmente desativada. Por outro lado, pode-se alegar que esses atos, por serem de motivação e determinação inconscientes, escapariam do controle do indivíduo.

Segundo a psicanálise, os processos mentais inconscientes ocorrem em todas as pessoas o tempo todo, alterando a percepção do que ocorre consigo e por projeção objetivante do que é percebido do mundo externo. Há um conflito estrutural e não conjuntural entre os registros da pulsão e da civilização. A condição estrutural de desamparo do ser humano ocorre em função do constante descompasso entre a exigência da força pulsional e a capacidade simbólica. Assim, o indivíduo pode ser privado de entender a extensão dos motivos e o significado dos próprios sentimentos e atos.

Em contrapartida, se a intervenção dos processos inconscientes nos atos dos indivíduos os privasse da capacidade de determinar-se, todos seriam inimputáveis. Assim, do ponto de vista psicanalítico, a referência do art. 26 ("inteira capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento" - caráter ilícito do fato) seria uma abstração.

Portanto, apesar de a grande maioria dos parafílicos sem co-morbidade psiquiátrica ser inteiramente capaz de determinar-se, admite-se a possibilidade de existir um desequilíbrio entre o instrumental psicológico de autocontrole e a intensidade do impulso.

 

A psicanálise no exame do criminoso sexual

A entrevista psicanalítica é inadequada enquanto instrumento pericial. Isto ocorre por três motivos. Primeiramente, o uso da psicanálise enquanto método investigativo pressupõe o interesse do paciente em esclarecer, mesmo com a repressão, os aspectos inconscientes. Em segundo lugar, a situação da perícia envolve no mínimo três pessoas (e não duas como exige a psicanálise - o psicanalista e o paciente): paciente, perito e autoridade solicitante. Terceiro, o exame pericial não deve ser subjetivo.

Sendo assim, o perito não pode se valer da psicanálise para avaliar os casos de perversão sexual, mesmo que a vertente psicanalítica seja essencial na caracterização de um parafílico.

 

Conclusão

Vemos que a visão da Medicina Legal sobre a perversão a limita dentro da vertente sexual e hoje não abrange nada além das consideradas parafilias. Tal posição, reducionista e perigosa, reflete um moralismo que insiste em discutir problemas de alcova, deixando fora do debate as verdadeiras questões éticas.

O fato de todo parafílico ser um perverso porém nem todo perverso ser um parafílico gera enorme confusão no campo jurídico, diante de um crime sexual.

A psicanálise acaba sendo eliminada do instrumental pericial - mesmo sendo fundamental ao se analisar a perversão sexual - já que do ponto de vista penal suas idéias não são possíveis nem praticáveis.

Sendo assim, tanto o parafílico como a sociedade saem no prejuízo. O parafílico fica impossibilitado de ter acesso a um julgamento tendo em vista o seu transtorno e, como tal, não tem como ser tratado com uma psicoterapia, por exemplo. A sociedade perde a oportunidade de identificar os vários tipos de perversão presentes nos indivíduos e de abordá-los socialmente de forma adequada.

 

Bibliografia

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