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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.27 n.52 Belo Horizonte set. 2005

 

RESENHA

 

Psicanálise e literatura: destino dos restos

 

 

Carlos Antônio Andrade MelloI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para Correspondência

 

 

Apenas um momento do passado? Muito mais, talvez: alguma coisa que, comum ao passado e ao presente, é mais essencial do que ambos1.

A propósito da memória involuntária em Proust, Walter Benjamim menciona que o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. (...) Ou do esquecimento?2

Contrariamente à concepção berg-soniana que denuncia e rejeita a metamorfose do tempo em espaço, Proust faz dessa condição a nervura central de sua mais vasta obra, buscando não somente o tempo, mas, também, o espaço perdido. Também no sonho, formação fidelíssima do inconsciente, espaço cênico e temporalidade se entrecruzam, se confundem, numa operação pouco ou nada atenta ao sentido e, talvez, por isso mesmo, produtora de tantos restos.

Sobre a escritura de Maria Gabriela Llansol, bem marca Lúcia Castello Branco3: Sulco, rasura, litura, littera, essa Lituraterra de Llansol, se é “acomodação dos restos”4, certamente não é acomodação daquele que escreve e daquele que lê. Felizmente, para nós, há o véu da beleza, último anteparo ante o horror do Real, como diria Lacan, a recobrir a cicatriz dessa escritura e a repetir, no momento em que a tememos mais, que “a escrita e o medo são incompatíveis.”5

O texto psicanalítico muitas vezes aproxima-se do texto literário – por um lado no que se refere à ordem do inevitável para seu autor, por outro, pela divisão em que também coloca o leitor, irremediavelmente atravessado pelo escrito.

Também assim é o trabalho do psicanalista, escritor de seu próprio texto e leitor de tantos outros em sua escuta.

A psicanálise se ocupa dos restos... Quem ignora?

Em versos, Marília Brandão, uma vez mais, se pôs a escrever: Resíduos. Também como resíduos, Freud denominou os afetos e os estados de desejo originados das experiências de dor e de satisfação em seu Projeto6. Restos que resistem e tudo impregnam, demandando trabalho de poeta e psicanalista. Instantâneos de vida, sonho, fantasia? Não importa.

Impossível não recorrer a Proust quando nos traz: “... para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro, um grande escritor não precisa, no sentido corrente da palavra, inventá-lo, pois já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo. O dever e a tarefa do escritor são as do tradutor.”7

Em sua textualidade, a evocação do passado é urdida, sobretudo, com os fios das sensações que bordam as cenas: a sonoridade da pequena frase de Vinteuil, o sabor da madeleine impregnada do chá de tília, o perfume dos pilriteiros em flor, a conjunção e a disjunção no espaço dos campanários de Martinville e todo aquele ar que envolve o caminho, às margens do Vivonne, lá pelos lados de Guermantes.

Em Marília, além das imagens que são, também, muito caras, faz corte profundo a marcação das lembranças pela via dos afetos: o agridoce mistério da maternidade, a fantasia de transmutação, aquele bicho carpinteiro que trabalha na noite insone, a insistência que resulta inútil da palavra saudade – e porque inútil, não cessa de se escrever – o aconchego na cadeira de balanço.

Em sua escrita, espaço e tempo se entretecem, produzindo letra marcada, transmutada, como o cristal da jarra, outrora transparente de água, vinho ou flor e, agora, com a trinca côncava, vasos como este (...) não há consertá-los mais.8

E, ao leitor, impregnando as cenas e os momentos, chegam os afetos, pulsá-teis, refratários ao recalque, sobreviventes, como a rolinha fogo-apagou, rubra, ainda tisnada do incêndio, insistente, que voa, que canta, incisiva. E aponta:

as rugas
a vertigem
a imagem aponta
o ponto nevrálgico
o relógio marca infinitamente
o tempo
de murchar as rosas do jardim.9
a solidão
vazia
transmutada
em poesia.
10

É permitido falar de uma especifici-dade da escrita feminina? Ponto polêmico capaz de gerar controvérsias não só entre leigos e ingênuos leitores como entre pensadores da literatura. Considera Lúcia Castello Branco: “...penso que é necessário situar a escrita feminina em seu devido lugar, com toda a paixão que ela me provoca, mas talvez sem a compaixão que ela é capaz de provocar em outras apaixonadas.”11

Na poética de Marília Brandão, a mulher, desde menina, percorre os labirintos da feminilidade e, trilhando-os, desafia enigmas, invoca mistério, vive sobressaltos, muitas vezes angústia, tantas outras esplendor. Se a irrupção de tristeza invade, amarga, desampara e pranteia, tudo em vão ... Não consegue aniquilar seu objeto, que deixa, em seu rastro, uma cálida réstia de esperança... ainda12.

 

 

Endereço para Correspondência
Av. Brasil, 283/1502 - São Lucas
30140-000 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31)3241-4647
E-mail: andrademello@terra.com.br

Recebido em junho de 2005
Aceito em agosto de 2005

 

 

I Médico. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
1 PROUST, M. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto, 1985.
2 BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, 1996.
3 CASTELLO BRANCO, L. Os absolutamente sós Llansol-A Letra-Lacan, 2000.
4 LACAN, J. Le Séminaire – Livre 18: D’un discours qui ne serait pas du semblant, Leçon 7, 12 mai 1971.
5 LLANSOL, M. G. Um falcão no punho: diário 1, 1985.
6 FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira, 1976, v. 1.
7 PROUST, M. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto, 1985.
8 LEMOS, M. B. Não há consertá-los mais, p.67, in Resíduos, 2004.
9 LEMOS, M. B. Tea Rose, p.58, in Resíduos, 2004.
10 LEMOS, M. B.. Só se mente, p.59, in Resíduos, 2004.
11 CASTELLO BRANCO, L. SILVIANO BRANDÃO, R. Literaterras: as bordas do corpo literário, 1995.
12 LEMOS, M. B. Senhora Tristeza, p.66, in Resíduos, 2004.

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