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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

HOMENAGEM AOS 150 ANOS DO NASCIMENTO DE SIGMUND FREUD

 

Sigmund Freud e as interseções entre psicanálise e cultura

 

Sigmund Freud and the intersections between psychoanalysis and culture

 

 

Eliana Rodrigues Pereira MendesI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda as interseções entre Psicanálise e Cultura, enfocando o impacto científico-cultural que a Teoria do Inconsciente provocou, para depois apresentar um breve panorama sócio-político da criação da Psicanálise. Por fim considera o legado que a psicanálise trouxe à cultura contemporânea.

Palavras-chave: Interseção, Cultura, Inconsciente, Discurso, Mal-estar, Subjetividade, Culpa, Gozo


ABSTRACT

This article approaches the intersections between Psychoanalysis and Culture, focusing on the cultural and scientific impact that the Theory of the Unconscious provoked. The author also presents a brief social and political panorama of the beginnings of Psychoanalysis and concludes with considerations on the legacy that Psychoanalysis has brought to the contemporary culture.

Keywords: Intersection, Culture, Unconscious, Discourse, Discontents, Subjectivity, Guilt, Enjoyment


 

 

A comemoração dos cento e cinqüenta anos do nascimento de Sigmund de Freud nos dá o pretexto para a elaboração desse pequeno artigo. Ao falar das interseções entre Psicanálise e Cultura vamos primeiro abordar o impacto da Teoria do Inconsciente na cultura da época, para depois apresentarmos um breve panorama político-cultural da criação da Psicanálise e finalmente considerar sobre o legado que a psicanálise trouxe à cultura de nossos dias.

 

O impacto científico-cultural da teoria do inconsciente

No final do século XIX, o chamado Século das Luzes, Freud vem trazer a ruptura da racionalidade através de sua descoberta do inconsciente, junto de outros contemporâneos seus como Nietzsche (que ao desmantelar a teologia que sustentava o sistema político mostrou como os valores são condicionados) e como Marx (ao mostrar que a razão é balizada pelas condições político-econômicas).

Essa noção de inconsciente vem confirmar o terceiro grande descentramento do Homem, na sua concepção narcísica.

Antes de Freud, Nicolau Copérnico já havia demonstrado que a terra não é o centro do universo, mas gira em torno do sol. Charles Darwin mostrava que o homem é apenas um elo de uma longa cadeia evolutiva. Sigmund Freud vem falar que a capacidade de escolha do homem é limitada, pois ele tem uma instância, em seu psiquismo, que é capaz de gerar efeitos e que não se confunde com a consciência. O fato de que o bebê humano nasça sempre do desejo de um outro e de que tenha uma dependência total deste outro para a sua sobrevivência, faz com que ele seja "falado" por uma polissemia de vozes e discursos que vêm ressoar em seu inconsciente, formado de significantes que "falam" por ele.

No tempo de Freud, as idéias de um inconsciente já eram muito ventiladas por vários autores, inclusive por Franz Brentano, de quem Freud foi aluno, que falava de uma pré-consciência. No entanto, Freud representou o amadurecimento de um processo desse conceito que já vinha sendo elaborado. A genialidade de sua descoberta foi a de dar ao inconsciente um status de alteridade radical e não apenas o de uma gradação da consciência. O inconsciente de que fala Freud não é acessível em termos volitivos e cognitivos e tem suas leis próprias como atemporalidade, lógica singular e não dependência da razão. Foram essas afirmações de Freud que fizeram dele um criador original, e que mesmo tendo sido atacadas pelo meio científico de então, revolucionaram o conhecimento humano. Como Ciência do Inconsciente, a psicanálise ainda não foi confrontada com nada que a superasse. A ótica freudiana enfocou desde os atos mais corriqueiros da vida cotidiana, como um lapso de memória ou uma troca de palavras, passando pela compreensão dos sonhos como realização de desejos latentes, pela sexualidade como sendo um continuum na vida do sujeito, até as questões mais altamente estimadas, como a sublimação das pulsões pelo trabalho intelectual e pela arte. As questões que têm a ver diretamente com as instituições da cultura como a ordem social, a religião, a moral e a ética também foram minuciosamente trabalhadas em seus textos.

Ao considerar a psicanálise primordialmente como Ciência do Inconsciente, deixando em segundo plano o seu lugar de procedimento terapêutico, Freud quis evitar que ela se transformasse apenas num capítulo a mais da psicopatologia e que fosse colocada como tal nos manuais de psiquiatria.

Aliás, uma grande preocupação de Freud sempre foi colocar a psicanálise no estatuto científico, pois ele não queria vê-la ligada à religião (um dos motivos de seu afastamento de Carl Jung) ou à ideologia. Tampouco quis considerá-la como uma visão de mundo ou um sistema filosófico, porque a psicanálise nunca se encarrega de preencher os furos do edifício universal. Ao contrário, ela fala do que há de inconsciente na cultura, daquilo que se manifesta no discurso da cultura. Embora a ciência não se preocupe com o sujeito que opera como produtor dela mesma, a psicanálise parte do que a ciência deixa de lado, que é justamente o sujeito do inconsciente e o mal-estar nas relações com a cultura. Apesar disso, Freud usou o referencial científico para construir as ficções teóricas com as quais o discurso analítico opera, o que fez também Lacan na inclusão da lingüística e da topologia nas suas teorizações.

A psicanálise não é aplicável como a ciência, mas ela é um discurso que se constitui como um efeito da interdiscursividade, ou seja, ela possibilita que diferentes discursos da cultura se relacionem.

Freud sempre foi um homem atento aos sinais de seu tempo e, por isto, sempre se interessou em pensar a cultura, tanto quanto se dedicou à prática clínica. Somos agora levados, então, a um passeio a Viena de Freud, onde tudo teve seu início.

 

Breve panorama sociocultural da criação da psicanálise

A criação da psicanálise em Viena, localizada no coração geográfico da Europa, na encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente, teve sua razão de ser. A situação sociopolítica que predominava na Europa Central durante a maior parte do século XIX era: de um lado, o Império Multinacional sediado em Viena, com dezenas de grupos etnolinguísticos, e do outro a fragmentação das populações de língua alemã em mais de trinta territórios autônomos, sobre os quais Viena mantinha sua influência política, por meio da flexível estrutura da confederação germânica. A dinastia dos Habsburgo teve início em 1805, com a dissolução do Sacro Império Romano-Germânico. Em 1815 formava-se um estado que congregava alemães, húngaros, poloneses, tchecos, croatas, romenos, ucranianos, entre outros. O elemento integrador era, sobretudo, a dinastia reinante que procurava manter-se acima das querelas nacionalistas, que iriam confrontar esses diversos grupos ao longo de todo o século XIX (e que se estenderam até os dias de hoje com os cismas políticos das repúblicas dos Bálcãs). Francisco José I foi o governante da Áustria desde 1848 até o ano de sua morte em 1916. O Império Austro-Húngaro foi formado em 1867, com o compromisso da Áustria com a Hungria. Francisco José era o imperador da Áustria, onde havia um Parlamento, e rei da Hungria, politicamente mais atrasada e que funcionava como celeiro do Império.

No seu desejo de unir forças para fortalecer a Coroa, o imperador decreta, em 1869, a emancipação dos judeus. Esse fato beneficiou Freud diretamente, pois se essa emancipação tivesse demorado mais, ele não poderia ter estudado medicina e estaria condenado ao confinamento nos guetos judaicos. Essa abertura à comunidade semita propiciou que se formasse uma brilhante elite judaica no Império Austro-Húngaro, ansiosa por uma atuação significativa em todas as áreas que lhe foram franqueadas (as carreiras tanto militar quanto política ainda lhe eram vetadas). No entanto, se a emancipação abriu a porta para a integração econômico-social dos judeus, o anti-semitismo, nunca totalmente extinto, se encarregava de "pô-los em seu lugar". Tanto assim que Freud só pode ser nomeado professor-adjunto da Universidade de Viena depois de muitos anos de trabalho e através da intercessão de uma cliente não-judia. Gustav Mahler, o grande compositor, só pode assumir a direção da Ópera de Viena após converter-se ao catolicismo.

A atmosfera de Viena era ao mesmo tempo conservadora e frívola. Como traços marcantes apresentava um ritmo lento de vida, o esvaziamento dos espaços públicos, o voltar-se para os afazeres pessoais, a falta de entusiasmo pelo novo, a coqueteria das discussões sobre as peças de teatro e a vida dos artistas. A polidez e a jovialidade que davam o tom nas relações eram imprescindíveis para se obter destaque nos diferentes domínios da vida social. Viena ignorava os antagonismos étnicos à sua volta e neutralizava os conflitos, reduzindo-os ao "pitoresco", para não ter de enfrentá-los. O clima "Belle Époque" do final do século XIX e princípio do século XX levava a crer que tudo ia bem, mas se isso enganava alguns, não convencia outros.

As lutas de classe eram anuladas através de medidas paliativas e o culto ao bom gosto e à necessidade de parecer bem igualava as contradições entre a burguesia e a nobreza.

O anti-semitismo da sociedade atribuía aos judeus a culpa pela especulação financeira e a crescente inflação. Esse inimigo comum permitia que se unissem contra ele o proletariado e a pequena burguesia, assim como esta e a grande burguesia, na escolha de políticos anti-semitas que governaram Viena por décadas.

Freud abominava a superficialidade vienense e tinha uma relação de muita ambivalência com a cidade que se notabilizou pelo seu culto ao vinho, mulheres e música. A harmonia de fachada dessa sociedade repressiva veio trazer à tona a insatisfação das histéricas, que pagavam com o próprio corpo a repressão da sexualidade e a impossibilidade de uma realização mais efetiva, condenadas a serem meros objetos. Ao desmascarar o que havia de falso em suas pacientes, Freud deu lugar à outra cena por trás da dissimulação.

A primeira guerra mundial eclodiu por causa das lutas das etnias rebeldes, o que culminou com o assassinato de Francisco Ferdinando, sobrinho de Francisco José e herdeiro do trono, em Sarajevo, 1914. Incapacitado de solucionar satisfatoriamente esses embates étnicos, o poderoso Império Austro-Húngaro desapareceu do mapa em 1918. O imperador Francisco José morre em 1916, sendo que sua esposa Elizabeth da Baviera, a célebre Sissi, uma das mulheres mais belas da Europa e das primeiras anoréxicas de que se tem notícia, morre assassinada em 1898 em Genebra, pelas mãos de um anarquista italiano. O único herdeiro direto do casal de imperadores, o príncipe Rodolfo, já havia se suicidado em Mayerling, matando consigo sua jovem amante Maria Vetsera. Este foi o fim da dinastia dos Habsburgo.

O término da guerra, porém, veio consolidar o conceito de ruptura da razão, trazendo uma visão pulsional dos processos históricos coletivos. Na guerra a pulsão é superdimensionada e pode-se ver que a tradição é extremamente precária e a cultura tem limitações; além disso, tudo o que é produzido pelo homem é relativo, havendo, nessa circunstância, uma quebra dos padrões e dos ideais de normalidade. Essa constatação veio dar credibilidade crescente à psicanálise, que passou a ter mais prestígio e começou a ser mais divulgada.

As idéias de modernidade que já se impunham desde o fim do século XIX passam a ser vigentes. A intelectualidade judaica se encarrega de trazer as novidades. Nas artes plásticas temos Gustav Klimt, Egon Schiele, Max Ernst e depois Oskar Kokoshchka, que buscam um novo conceito de interiorização para a pintura. O advento da fotografia liberou em definitivo a pintura de seu aspecto puramente descritivo. A arquitetura, com Otto Wagner e Adolf Loos, passa a ser funcional, abandonando um estilo mais historicista e decorativo. A literatura com Arthur Schnitzler, Hugo Hofmannsthal, Stefan Zweig deixa de lado as belas letras e vai falar de motivações inconscientes, desmascarando a sociedade de seu tempo. A música se torna mais profunda e erudita com Gustav Mahler, e Arnold Schoenberg cria a música dodecafônica, atonal e amelódica, com a "emancipação da dissonância", segundo suas próprias palavras. Freud e seus companheiros Karl Abra-ham, Sandor Ferenczi, Otto Rank, Max Eitingon, Hans Sachs, entre outros, revolucionaram o conhecimento do psiquismo, com a criação da psicanálise. Toda essa evolução criativa tem um final trágico com a anexação da Áustria, em 1938, ao Terceiro Reich de Berlim e a ascensão do nazismo, que caçou e expatriou os psicanalistas judeus, indesejáveis ao sistema. Freud teve suas obras destruídas, o que lhe valeu o seguinte comentário: "Fizemos progresso. Na Idade Média teriam queimado o autor, hoje se contentam em queimar os livros". Mal sabia ele que os campos de concentração se encarregariam de exterminar também os homens. O regime de Hitler devastou a psicanálise de língua alemã. O que se pode notar é que a psicanálise nunca pode sobreviver em regimes totalitários, pois ela é libertária em sua essência. A submissão e a opressão são incompatíveis com o desejo do analista.

 

O legado da psicanálise à cultura de nossos dias

Assim como Freud, que se exilou na Inglaterra antes de sua morte, o centro do mundo psicanalítico foi também transferido para Londres, onde se desenvolveram as escolas antagônicas de Anna Freud e Melanie Klein e pouco depois o pensamento de Donald Winnicott.

Após a experiência adaptacionista dos anos 50 nos Estados Unidos, a psicanálise teve um sopro de renovação, a partir dos anos 60, com a releitura da obra freudiana por Jacques Lacan, que a situou bem no âmago da pós-modernidade. Ele desenvolveu questões fundamentais em sua teorização, como o conceito de gozo, absolutamente pertinente à cultura de fruição extremada de nossos dias, seja através das adições e de sintomas como anorexia, bulimia, seja através de comportamentos radicais em atividades que envolvam o corpo em perigo mortal como a prática de certos esportes, ou a variação intensa de parceiros sexuais, com a exposição a doenças letais como a Aids, ou a outras de menor risco, mas igualmente lesivas.

A psicanálise está tão intrincada na cultura atual que já não podemos imaginar o mundo sem seus conceitos básicos e seu jargão peculiar.

A influência claramente assumida dos seus conceitos por movimentos artísticos como o surrealismo nas artes plásticas e no cinema, com nomes como Salvador Dalí, André Breton, Luís Buñuel entre outros, com seu arrojo criativo e desconstrução das convenções, desconcertou o próprio Freud, ele mesmo um burguês comportado, herdeiro da época vitoriana em sua vida pessoal.

A psicanálise veio trazer uma grande ênfase à subjetividade. Dessa forma, todo o empenho que foi dado nos últimos anos à pedagogia e à educação das crianças, assim como o movimento de liberação das mulheres e a busca de maior paridade entre os sexos são tributários da teoria psicanalítica. Aliás, o acatamento às diversidades sexuais e a luta pela aceitação das minorias étnicas também estão no caudal do legado psicanalítico à cultura. Mesmo os avanços das neurociências foram, de algum modo, pensados por Freud como uma questão em aberto.

Se a subjetividade da época freudiana emanava de uma sociedade repressora que gerava o recalque e a culpa, formando neuróticos, hoje ela se ancora nos excessos sociais que trazem a recusa e o gozo, fazendo aparecer os perversos. A clínica sofre as conseqüências destas mudanças e o psicanalista, assim como o fez Freud, tem de estar ligado ao seu tempo. A psicanálise é chamada a dar conta de algo que ela mesma ajudou a trazer à luz. Como ela sempre tem de incidir no sem sentido e no insuportável do mal-estar, seu legado de instrumental crítico à própria cultura não pode nunca ser desconsiderado. Se as histéricas do século XIX denunciaram, com sua doença, as dissimulações da sociedade, nossos clientes atuais, com seus sintomas, nos guiarão aos caminhos que a psicanálise terá de tomar.

 

Bibliografia

GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.        [ Links ]

ILEYASSOF, Ricardo. El psicoanálisis en la institución de la cultura: la política freudiana. Apostila.        [ Links ]

MEZAN, Renato. Freud, o pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.        [ Links ]

SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Unicamp, 1988.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Araguari, 1541/7º andar - Santo Agostinho
30190-111 - Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3337-1583
E-mail: tarcisiomendes@uol.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

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