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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.31 no.57 Belo Horizonte June 2009

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Angústia e desvanecimento do sujeito

 

Anxiety and the fading subject

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A partir de um conto da Literatura Inglesa, a autora aborda a angústia da personagem principal. Ao ser confrontada com a pergunta "Que queres de mim?" sente-se avassalada pelo peso do desejo do Outro e desvanece como sujeito de seu próprio desejo. A bondade demonstrada na relação com os outros é uma atuação, que aparece como sintoma de um gozo devastador.

Palavras-chave:Angústia, Desvanecimento do sujeito, Desejo do Outro, Sujeito do próprio desejo, Atuação , Gozo.


Abstract

Working with a short story from English Literature, the author approaches the main character' s anguish. When confronted with the question "What do you want from me?" this female character feels overwhelmed by the Other's desire and fades as a subject of her own desire. The kindness towards other people that appears as a symptom of a devastating enjoyment, can be better understood as a form of acting out.

Keywords: Anxiety, Fading of the subject, Other's desire, Subject of her own desire, Acting out, Enjoyment.


 

 

Neste texto será trabalhado um dos contos do livro Freud e o Estranho - Contos Fantásticos do Inconsciente, que tem seleção e apresentação de Braulio Tavares e foi editado pela Casa da Palavra, em 2007. O conto em questão chama-se "A Máscara de Prata", escrito por Hugh Walpole, autor britânico (1884-1941), que conseguiu com seus textos agradar tanto o público quanto a crítica durante décadas. Esse conto foi adaptado para o teatro sob o título de "Kind Lady" (A boa senhora), tendo sido levado à cena 82 vezes na Broadway, entre abril e junho de 1935.

 

A narrativa

Sonia Herries é uma senhora londrina, na casa dos 50 anos, solteira, independente, "com um corpo forte e resistente como um cavalo, exceto por um pequeno problema cardíaco". Numa noite gelada, ao voltar de um jantar entre amigos, é abordada por um jovem que lhe dirige a palavra. - "Senhora, por favor... Só um momento"... Ela se esquiva, mas o homem insiste e ao virar-se para ele depara-se com um dos mais belos rapazes que já vira. "Era o jovem herói de todas as histórias românticas, alto, de cabelos negros, pálido, esguio, de aparência distinta - oh, ele tinha tudo! - usando apenas um terno azul puído, e tremendo de frio, como era de esperar". Sonia diz: - "Eu realmente não creio que possa... e tentou prosseguir seu caminho". O jovem responde que ele também faria a mesma coisa no lugar dela. Mas ele tinha de insistir. - "Não posso voltar para minha esposa e nosso bebê com as mãos vazias. Não temos fogo, nem comida, nada senão o teto que nos abriga. E tudo por minha culpa. Não quero a sua piedade, mas preciso incomodá-la!"

Ele tremia e estava a ponto de desabar, quando Sonia, ao tocar-lhe o braço para apoiá-lo, sentiu-o estremecer sob o tecido fino da manga. - "Tudo bem... murmurou ele. Só estou com fome. Não posso evitar". Ela tivera um jantar magnífico. Tinha bebido um pouco, apenas o bastante para deixá-la levemente irresponsável. Em todo caso, antes mesmo de perceber o que fazia, estava abrindo sua porta pintada de azul-escuro e conduzindo-o para o vestíbulo. "Que loucura"! Embora inteligente, a srta. Herries tinha terríveis impulsos de bondade. Assim tinha sido a vida inteira.

O jovem, deslumbrado com o apartamento da senhora, demonstra bom gosto e cultura ao identificar seus bons quadros e seus objetos de arte. - "Você é um artista - declarou ela - sabe pintar"? - "Qual nada, sou um gigolô, um ladrão, o que quiser, desde que seja algo muito mau - disse ele, com intensidade. Agora preciso ir"...

Sua aparência estava revigorada e ela mal podia crer que aquele era o mesmo rapaz de antes. Sonia pensou que além de ser belo, impressionantemente belo, parecia com os homens de um século atrás. "Era um jovem Byron, um Shelley" e não um artista de cinema qualquer da atualidade. Quando se encaminhava para deixar a casa, o jovem se detém diante de "uma máscara de prata representando o rosto de um palhaço, um palhaço sorridente, maroto, alegre, sem nenhuma sombra daquela tristeza que tradicionalmente se atribui aos palhaços. Era uma das peças mais primorosas do famoso Sorat, o maior mestre vivo na arte das máscaras".

O jovem se vai, não sem antes receber uma nota de uma libra. - "Obrigado, disse ele descuidadamente. Ao chegar à porta, falou: - Aquela máscara... É a coisa mais linda que já vi".

Sonia Herries era uma pessoa maternal acima de tudo. Por duas vezes teria se casado, se estivesse bastante apaixonada; no entanto, o homem por quem de fato se apaixonara nunca a amara de verdade (isso tinha sido há 25 anos), e assim ela fingia desprezar o casamento. "Se tivesse tido um filho, sua natureza teria encontrado uma finalidade; como isso não acontecera, ela havia agido como mãe (aparentando uma cínica indiferença) com inúmeras pessoas que a usavam, se riam dela e nunca lhe davam real importância". Referiam-se a ela como uma "companhia divertida", e ela sempre se encontrava no limiar da vida real de seus amigos. Seus parentes costumavam usá-la para preencher lugares à mesa, para ocupar quartos vagos nas festas de fim de semana, para fazer compras de encomenda em Londres, além de usá-la como confidente quando as coisas não iam bem, ou quando alguém abusava deles. "Ela era uma mulher muito solitária, uma heroína sem causa".

É fácil prever como a história evolui. O jovem volta à casa dela, depois de lhe haver roubado uma cigarreira de jade e tenta vender-lhe uma tela de sua autoria, pois tinha a pretensão de ser pintor. A tela é muito ruim, mas ele a vende efetivamente para Sonia. "Ela percebe que não era a mera beleza do rapaz que exercia tanto poder sobre ela, mas ele tinha algo de indefeso e desafiador ao mesmo tempo, como um menino mau que odeia a mãe, mas está sempre a lhe pedir socorro". Mas "não era a beleza dele que a atormentava. Era o fato de o rapaz querer a bondade dela e o fato de ela querer - oh, tão terrivelmente! - ser boa com alguém". Ele volta à casa trazendo a mulher e o bebê e depois, já identificado por um nome - Henry Abbott - torna-se, muito a contragosto da senhora, seu secretário particular.

A esposa e o bebê de Abbott retornam à casa de Sonia e dessa vez, um desmaio da jovem na hora da saída faz com que ela seja encaminhada para um quarto e lá fique de vez. Sonia, uma mulher forte e sólida, vê-se transformar, de repente, numa mulher idosa e amedrontada.

Três dias depois desse desmaio aparecem visitas para a jovem e a casa vai sendo tomada por parentes e amigos do casal. Os amigos da própria Sonia vão-se afastando e sua empregada, diante da nova situação, se demite.

"Acho que você precisa tomar conhecimento, querida, do que todos andam falando por aí"... Diziam que Sonia estava vivendo com um jovem rufião, apanhado na rua, um rapaz com idade para ser seu filho. Até que ela, estando sozinha na casa com os sinistros hóspedes, sente-se mal e é levada para o quarto da empregada, onde é mantida deitada e trancafiada. Os amigos se preocupam a princípio: "O que será que aconteceu com Sonia Herries? Não a vejo há séculos. Mas ninguém tinha tempo de descobrir e sua vida não era da conta deles". Assim, estando ela esquecida pelos amigos e parentes, num último gesto de compaixão, Henry Abbott prega a máscara de prata no quartinho que Sonia ocupa como ex-proprietária, já que fora constrangida a assinar um papel "vendendo a casa" para os novos donos. Abbott lhe diz: "A senhora precisa de algo para se distrair. Está muito doente e tenho receio que não possa mais deixar esse quarto. Assim isso vai lhe fazer bem. Uma coisa para ficar olhando". E sai fechando a porta com cuidado atrás de si.

 

Da angústia ao desvanecimento do sujeito

Braulio Tavares comenta que esse conto ilustra o tema "A tomada", quando alguém gradualmente assume o controle da vida de outra pessoa, apodera-se de seus bens e a reduz a uma situação de impotência, sem que ela faça coisa alguma. Na literatura fantástica, tanto quanto na vida cotidiana, esse tema nos leva a uma obscura região do psiquismo em que as relações entre criminoso/vítima, ou invasor/invadido parecem menos relações de oposição do que de parceria. Há uma atração indefinível entre os participantes em potencial de um ato clandestino e proibido. Lembro-me aqui da Síndrome de Estocolmo, onde o sequestrador ganha o amor de seu refém, como foi o famoso caso da herdeira Patrícia Hearst, nos Estados Unidos. Também Julio Cortazar, em seu livro "A volta ao dia em oitenta mundos", salienta o modo como os serial killers conquistam a confiança de suas vítimas, o que dá a esses crimes uma "aura de fatalidade e de consentimento, de uma aquiescência mais profunda". Segundo ainda Braulio Tavares, a tomada ilustra o lado passivo do fenômeno do mau-olhado que Freud comenta, e corresponde à sensação do estranho produzida pela observação de seres humanos que, à maneira de autômatos ou de marionetes, em vez de se defenderem usando sua vontade ou seu próprio desejo, se deixam submeter e invadir passivamente.

No caso de Sonia Herries essa tomada é feita às claras e com sua conivência. A presença de Henry Abbott é a realização de uma fantasia. "Detestava confessar isso a si mesma, mas gostava de vê-lo sentado ali... Ele parecia saber a coisa certa a dizer". Lembremos que a idealização do jovem como uma figura do passado tem aqui a força de um retorno do recalcado. Não seria a imagem do pai esse antigo cavalheiro? Por outro lado, não poderia ser ele também, além de uma reedição da paixão edípica, a materialização de um filho que Sonia nunca teve, como o falo para sempre perdido? De qualquer forma, a figura masculina parece-lhe interditada, o que pode se dever à relação com uma figura materna excessivamente colada nela, assim lhe negando o passe para o encontro com o diferente. Sua fantasia vai-se transformando num pesadelo, à medida que o invasor sabe quanto tem aquela pessoa sob seu poder. Para Lacan, a relação essencial da angústia é com o desejo do Outro, que se mostra na pergunta "Que queres de mim"? "No pesadelo existe um gozo do Outro e o que causa esse pesadelo é exatamente estar na posição de objeto utilizado e consumido nesse gozo". Este ser que pesa pelo seu gozo é também um ser questionador, que se mostra como um Enigma. O que aparece como inquietação, no gozo do Outro, é o enigma do seu desejo, que pede decifração e que se mostra misterioso, e até mesmo arbitrário, imprevisível e caprichoso, nas palavras de Lacan. Diante do Estranho, representado pela irrupção do jovem pintor, Sonia Herries capitula, pois está implicada, no mais íntimo de si mesma, por um sinistro muito próximo, algo que já foi familiar e que então se transforma em ameaça e até mesmo terror. A personagem está diante do desamparo completo, que o estranho denuncia, pois trata-se de uma reação direta entre o desamparo experimentado ante o desejo do Outro e o aparecimento de algo indecifrável, não existindo nenhum significante que lhe venha ajudar. O que se vivencia na angústia não é, pois, a falta de objeto, mas sim a presença de um objeto obscuro, que não é bem-vindo, porque traz a experiência de um gozo desconcertante, exatamente como o que foi sentido por Sonia Herries, que sabia do perigo que a ameaçava e, no entanto, não conseguiu resistir a ele.

O tema da bondade a que Sonia estava condenada parece seguir também essa linha. A angústia, sendo a falta da falta, traz o retorno do objeto a indefinível e assustador, que se cola no próprio sujeito, fazendo-o submeter-se ao desejo alheio. A pergunta "Que queres de mim"? atormenta Sonia e faz com que ela a responda prontamente com seu próprio ser, desdobrando-se em cumprir os mandados alheios, sem levar em conta seu próprio desejo. Sonia tem conhecimento de que pagará um preço caro pelo seu gesto de acolher o jovem artista, mas não recua de sua atuação. A atuação (acting out), segundo Lacan, é algo que se mostra na conduta do sujeito. A ênfase demonstrativa de todo acting out, sua orientação para o Outro, deve ser destacada. E é algo também que se mostra totalmente diferente do que é. No seminário 10 Lacan diz: "O que é isso ninguém sabe, mas que é outra coisa, disso ninguém duvida". O acting out é um sintoma. No caso de Sonia esse sintoma é o cinismo e a indiferença com que ela reage frente à sua maternalização dos outros, negando a importância desse gesto, quando, na verdade, ela anseia desesperadamente por essas relações. Ela tem de ser boa e a qualquer custo. Aí vemos o sintoma como um gozo, um gozo encoberto.

Lembro aqui que esse tipo de submissão aparece muitas vezes na paixão erótica e também em situações de casamentos onde um dos cônjuges domina o outro de forma quase absoluta, sem que este consiga libertar-se do seu jugo. O mesmo pode acontecer em relações de amizade ou em situações de trabalho, entre líder/liderados. Os papéis não são fixos, sendo que um subalterno pode submeter um chefe, tanto quanto este submete seu comandado, lembrando a relação senhor/escravo.

O que conta, de fato, é a experiência vivida pelo submetido, de uma colagem do objeto a em si mesmo, que o faz desvanecer-se como sujeito desejante, condenando-o à condição de simples objeto manipulável. Diante da pergunta "Que queres de mim"? fica sob o peso do desejo do Outro que ordena: "Eu te quero todo"! É como se estivesse sob o domínio da Máscara de Prata, um palhaço sorridente e maroto, que zomba de sua agonia.

 

Bibliografia

FREUD, Sigmund. O Estranho (1919). ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XVII.        [ Links ]

GONÇALVES, Delma Maria Fonseca. A Dimensão do Outro na Angústia. In Stylus: Angústia e Sintoma. Rio de Janeiro, n.6, abril, 2003.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário: livro 10: a angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

SANTORO, Vanessa Campos. Os Destinos da angústia. Apostila inédita. Belo Horizonte, 2008.        [ Links ]

TAVARES, Braulio (seleção e apresentação). Freud e o Estranho: contos fantásticos do inconsciente. Rio de Janeiro: Casa da Palavra Produção Editorial, 2007.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Araguari, 1541/7º andar
Santo Agostinho
30190-111 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3337-1583
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

RECEBIDO EM: 15/04/2009
APROVADO EM: 27/04/2009

 

 

Sobre a Autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

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