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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte set. 2010

 

Discussão da noção de intersubjetividade à luz de contribuições da psicanálise

 

Discussion of the concept of intersubjectivity in the light of contributions of psychoanalysis

 

 

Gabriela de AraujoI; Rogério LernerII

IPsicóloga. Doutoranda pela Université Paris VII em co-orientação com o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
IIPsicanalista. Psicólogo. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma discussão sobre a noção de intersubjetividade e o conceito de pulsão, ambos fundamentais para pensar o desenvolvimento e o processo de emergência psíquica do recém-nascido. Embora oriundos de perspectivas teórico-metodológicas distintas, a psicologia do desenvolvimento e a psicanálise, algumas articulações podem ser tecidas entre os mesmos, ensejando avanços no estudo sobre a construção do laço entre o bebê e seus cuidadores. Como releitura da noção de apoio sugerida por Freud (1905), sustenta-se a tese de que a capacidade intersubjetiva inata do bebê, experimentada no enlaçamento com seus cuidadores, serve como plataforma de lançamento da pulsão, permitindo que esta se constitua como circuito (Laznik, 2004, 2006, 2007).

Palavras-chave: Pulsão, Intersubjetividade, Psicanálise, Desenvolvimento.


ABSTRACT

This paper proposes a discussion of the notion of intersubjectivity and of the concept of drive, both essential to thinking about development and the process of psychic emergence of the newborn. Although coming from different theoretical and methodological perspectives, the developmental psychology and psychoanalysis, some articulations can be woven between them. As a rereading of the notion of support suggested by Freud (1905), sustains the thesis that the infant's innate ability intersubjective experienced in bonding with their caregivers serve as a launching pad of the drive, allowing the drive is constituted as a circuit (Laznik , 2004, 2006, 2007).

Keywords: Drive, Intersubjectivity, Development, Psychoanalysis.


 

 

Acerca da noção de intersubjetividade

Para que um bebê que acaba de nascer se torne um sujeito, ele precisa estabelecer um laço pulsional com Outro, representado no primeiro momento pelos cuidadores que dele se ocupam. A instalação deste laço depende de diversos fatores, tanto orgânicos como subjetivos, que dizem respeito aos envolvidos.

As descobertas realizadas a partir dos anos 1960 sobre as competências do recém- nascido vieram enriquecer consideravelmente as pesquisas relativas aos processos implicados nas trocas entre o bebê e o seu entorno (HOUZEL, 2003). Segundo Roussillon (2004a), atualmente ninguém contestaria que o sujeito humano só se constrói com a ação de outro sujeito.

Embora psicanalistas e psicólogos do desenvolvimento concordem que as relações precoces entre os humanos fundam as bases para as outras capacidades sociais (ALVAREZ e LEE, 2004), há divergências na forma de pensar o estabelecimento da relação com o outro no processo de desenvolvimento humano.

A noção de intersubjetivade pode ser utilizada como eixo condutor para pensar este processo. Sabe-se que tal noção assume diferentes sentidos de acordo com os diversos contextos teórico-metodológicos considerados.

Trevarthen (2003), psicólogo e pesquisador do desenvolvimento humano, foi um dos primeiros a propor e investigar a intersubjetividade como inata. Seus estudos sobre as competências precoces do recém-nascido evidenciaram que este tem um papel ativo no laço que estabelece com seus cuidadores.

"Os recém-nascidos, com seus cérebros complexos, mas imaturos, com aptidões cognitivas limitadas e um corpo frágil, se mostram motivados para comunicar-se com as formas expressivas e rítmicas de interesse e de emoção oriundas do outro, e o fazem através de um comportamento diferente do comportamento instintivo, que atrai o cuidado parental para a satisfação de necessidades biológicas imediatas"1 (TREVARTHEN & AI-TKEN, 2003, p. 309).

Segundo Trevarthen (2005), a intersubjetividade pode ser definida como a capacidade psicológica de ter e partilhar objetivos, interesses, emoções e de estar pronto para comunicar os acontecimentos intrinsecamente psicológicos a outras pessoas.

"Para partilhar o controle mental com outras pessoas, o lactente deve possuir duas competências. De um lado, ele deve ao menos mostrar que possui os rudimentos de uma consciência individual e intencional. É o que eu chamo de subjetividade. De outro lado, para poder comunicar, o lactente deve poder adaptar ou ajustar seu papel subjetivo à subjetividade dos outros: é a intersubjetividade"* (TREVARTHEN & AITKEN, 2003, p. 315).

Os estudos de Trevarthen e de diversos colaboradores evidenciam que esta cooperação expressiva e psíquica entre o bebê e o adulto pode ser observada nas interações espontâneas desde o nascimento (GRATIER, 2007). As afirmações de Trevarthen (2004) sobre a capacidade inata para a intersubjetividade se apoiam sobre a hipótese de que bases dos sistemas emocionais e de motivação se organizam muito antes do nascimento, decorrendo da ação combinada e coordenada de partes do sistema nervoso em articulação com suas extensões aferentes (órgãos dos sentidos) e eferentes (aparelho musculoesquelético).

Trata-se de pensar que os recém-nascidos apresentam uma predisposição para rudimentos de capacidades sociais que permite uma harmonização afetiva e a regulação emocional, gerando uma sensação de estabilidade interna e levando a uma comunicação precoce entre a criança e seu cuidador (ALVAREZ e LEE, 2004).

Se os diversos estudos de Trevarthen e colaboradores tendem a enfatizar o inatismo dos processos fundamentais requeridos pela intersubjetividade, outros autores tendem a destacar as etapas pelas quais o processo de sua instalação tem que passar.

Stern (2004, 2005) afirma que a intersubjetividade pode ser definida como a partilha da experiência vivida entre duas pessoas, decorrendo de um sistema fundamental de motivação inata e essencial para a sobrevivência da espécie. O autor descreve a intersubjetividade como um processo que deve ser definido em diversas etapas no qual o bebê e os pais têm um papel a ocupar.

"Primeiro, os pais devem ser capazes de ler o estado emocional do lactente no seu comportamento manifesto. Em seguida, eles devem apresentar um certo comportamento que, embora não se reduza a uma imitação estrita, corresponda sob certos aspectos ao comportamento manifesto do lactente. Enfim, o bebê deve estar na medida de compreender que a reação parental correspondente tem uma relação com sua própria experiência emocional inicial e não somente com a imitação do seu comportamento"* (STERN, 2003, p.182).

A ideia de base é que a consciência humana se constrói e se mantém graças às transformações da relação intersubjetiva entre o "eu e o outro" (STERN, 2005). Este processo de construção da intersubjetividade depende então da dupla adaptação entre os pais e a criança.

Segundo Golse (2004), o processo de acesso à intersubjetivdade pode ser compreendido como um movimento de diferenciação que vai permitir à criança experimentar, sentir e integrar que o eu não é o mesmo que o outro.

Sem querermos negar que a noção de intersubjetividade representa um avanço nos estudos sobre o desenvolvimento do bebê e que contribui para o trabalho clínico, parece-nos que seu estudo não leva suficientemente em conta a existência do inconsciente. É com este intuito que se pretende uma discussão desse conceito a partir de um ponto de vista psicanalítico.

 

Inexorabilidade do inconsciente para a psicanálise

Para discutir a noção de intersubjetividade partindo da psicanálise é necessário destacar a dimensão inconsciente da subjetividade. Marcelli propõe que na intersubjetividade "não se trata somente do fato de que dois sujeitos se interessem um pelo outro. Pois se fosse assim, a intersubjetividade se resumiria a uma troca consciente e seria definida simplesmente como uma relação interpessoal"* (MARCELLI, 2004, p.55).

Além disto, segundo Freud, torna-se difícil concordar com o postulado que estipula a existência da diferenciação inata completa entre o eu e o outro, sendo necessário admitir que "uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido" (FREUD, 2010, p.18), para o que se requer uma nova ação psíquica (1914).

Assim, seguindo nesta forma de pensar a intersubjetividade, temos "o encontro de um sujeito, animado de pulsões e de uma vida psíquica inconsciente, com um objeto, que é também um outro sujeito, e que é também animado por uma vida pulsional de onde uma parte é inconsciente"* (ROUSSI-LLON, 2004b, p.735). O conceito de pulsão foi definido por Freud como

"um conceito limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma, como uma medida do trabalho imposto à psique por sua ligação com o corpo" (FREUD, 2010, p.57).

Utilizando o conceito de pulsão de Freud, podemos melhor compreender a ideia de que o recém-nascido é mobilizado pela busca da relação. Quer dizer que é em apoio e para além da satisfação das necessidades biológicas imediatas que o bebê procura entrar em contato com os outros (1905). De fato, as pulsões - diferentemente das necessidades - não são satisfeitas sempre do mesmo modo. Segundo Freud, já que a pulsão "não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga pode servir contra ela" (FREUD, 2010, p.54). Aqui se situa uma diferença fundamental da contribuição psicanalítica com relação às anteriormente citadas: não se considera haver um processo de desenvolvimento com etapas potenciais previamente definidas para o investimento pulsional; outrossim, seu impacto sobre o humano decorre justamente de um inacabamento e de uma imperfeição quanto à satisfação, condição fundamental de desamparo que impõe uma construção constante do que não está dado a priori. Todo o investimento pulsional que ocorre ao longo da vida guarda as marcas da especificidade da construção sempre imperfeita que engendrou a subjetividade.

Lacan propõe pensar a pulsão como algo que "não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante" (LACAN, 1985b, p.157). Ou seja, segundo Lacan, em função das pulsões, a vida psíquica é de um outro registro que aquele segundo a satisfação das necessidades (LACAN, 2001).

"A pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente por aí que ela se satisfaz. Pois se se distingue, no começo da dialética da pulsão, o Not e o Bedürfnis, a necessidade e a exigência pulsional - é justamente porque nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão.(...) essa boca que se abre no registro da pulsão - não é pelo alimento que ela se satisfaz..." (LACAN, 1985b, p.159).

Então, mais do que necessidades, é preciso que o bebê tenha também demandas: que ele saia do registro da necessidade e possa entrar no campo do desejo. Pode-se dizer que mais do que fome, é preciso que o bebê tenha apetite. Como diz Lacan, "o desejo, função central em toda experiência humana, é desejo de nada que possa ser nomeado" (LACAN, 1985a, p.281).

Este aspecto radical do funcionamento psíquico humano "que entende as necessidades como demandas que desejam ser satisfeitas faz com que o bebê, desde que ele entre em contato com o outro, deixe de ser um ser de necessidade para se tornar um ser do desejo"* (CRESPIN, 2007, p.22).

 

Circuito pulsional: instalação de uma disjunção intersubjetiva

O trabalho de Laznik (2004, 2006, 2007) permite-nos estabelecer uma articulação entre a concepção lacaniana das pulsões e a noção de intersubjetividade de Trevarthen. Retomando o conceito de pulsão proposto por Freud (1915) e revisitado por Lacan no seu seminário "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise", Laznik nos convida a refletir sobre o papel do circuito pulsional na emergência psíquica do recém-nascido.

Segundo Laznik (2007), a pulsão cumpre sua meta de satisfação por meio do estabelecimento de um circuito de três tempos, ideia fundamental para entender o processo de constituição subjetiva, quer dizer, a forma como abandonamos o estatuto de ser de necessidade para tornarmonos seres de desejo. No primeiro tempo o bebê vai em direção ao objeto oral para se satisfazer. Freud chamou este tempo de a busca ativa da parte do bebê (LAZNIK, 2006).

O segundo tempo é reflexivo ou autoerótico. É o que Freud descreveu como o retorno da pulsão sobre uma parte do corpo próprio. É o tempo da capacidade de se acalmar chupando o dedo, a mão... No terceiro tempo, o bebê se faz, ele mesmo, objeto de um outro, colocando seu dedo na boca da mãe, que aproveita e, gozando, faz de conta que o está comendo. Porém, ao contrário de Freud que qualifica este terceiro tempo como passivo, Laznik o pensa como uma passividade ativa. "Com efeito, é muito ativamente que ele vai se fazer comer por este outro, para o qual ele se faz, ele mesmo, objeto" (LAZNIK, 2004, p.28).

"O bebê não é passivo na situação, claramente ele a procura. É ele que vai procurar se fazer olhar, se fazer ouvir ou bem, ao nível oral, se fazer 'comer o pezinho'. Este aspecto eminentemente ativo do terceiro tempo do circuito pulsional havia sido evidenciado por Lacan que o chamava o tempo do 'se fazer'"*. (LA-ZNIK, 2000, p.73).

É somente depois do terceiro tempo que se pode falar em satisfação pulsional (LAZNIK, 2000). Lacan coloca que é "no momento em que o fecho se fechou, quando é de um polo ao outro que houve reversão, quando o outro entrou em jogo, que o sujeito tomou-se por termo terminal da pulsão" (LA-CAN, 1985b, p.173). E é aí que vemos que o bebê procura o gozo do outro.

"A pulsão se satisfaz pelo fato de que este circuito gira e de que cada um dos tempos tornará a passar um infinito número de vezes. Nós só podemos estar certos do caráter verdadeiramente pulsional dos dois primeiros tempos na medida em que tivermos constatado o terceiro" (LAZ-NIK, 2004, p.29).

Falando de um outro modo, significa que este ciclo se desenvolve diversas vezes na relação mãe-bebê, mas é somente após a instauração do terceiro tempo que os outros dois adquirem sentido. Como disse Lacan (1985b), este sujeito que existe graças ao outro, aparece quando o circuito da pulsão pode se fechar. É somente com a dimensão do Outro que a função da pulsão pode existir.

Assim, os movimentos do bebê de procura do seio e de chupar o dedo para se acalmar podem enfim ser considerados como eróticos. Porque só podemos falar em registro pulsional no momento em que o gozo do Outro está colocado em questão. É este momento de enganchamento ao desejo do outro que permite ao infans aceder ao status de sujeito. É neste sentido que Lacan afirma que o "desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não porque o outro tenha as chaves do objeto desejado, mas porque o seu primeiro objetivo é ser reconhecido pelo outro" (LACAN, 1998, p.132).

Como se vê, o estabelecimento do circuito pulsional instaura o desejo do Outro como meta da operação subjetiva desejante, isto é, inconsciente. O destino de tal estabelecimento não está dado previamente no desenvolvimento, necessitando da participação e do acionamento recíproco das operações psíquicas das funções materna e paterna, tanto da parte do bebê como de seus pais ou cuidadores.

Golse, apoiando-se na revisão da teoria lacaniana feita por Laznik, diz que o terceiro tempo do circuito pulsional pode ser caracterizado como "o momento em que, tendo acedido à intersubjetividade, o infans torna-se então capaz de se oferecer ele mesmo como objeto da pulsão do outro"* (GOL-SE, 2004, p.449).

Quer dizer que o momento de fechamento do circuito pulsional pode ser então entendido como o momento de troca intersubjetiva se esta é pensada de um ponto de vista psicanalítico, ou seja, orientada pelo desejo como decorrente da construção do circuito pulsional.

"Assim, quando a mãe coloca docemente os olhos sobre os olhos do seu bebê, este mantém seu olhar no de sua mãe e parece literalmente animado de um sopro de vida partilhado. (...) Rapidamente, ele procura, por seu lado, fisgar o olhar da sua mãe. (...) O olhar do outro se torna um atrativo potente, a partilha do olhar um estabilizador comportamental que mantém esta propensão"* (MARCELLI, p. 61, 2004).

Esta ilustração de Marcelli pode caracterizar o momento de troca intersubjetiva e pode ser utilizada da mesma forma para descrever o circuito pulsional. Tratase de destacar a dimensão desejante na articulação do conceito de pulsão com a noção de intersubjetividade, reconhecendo, assim, o lugar do circuito pulsional nas comunicações humanas e nas trocas intersubjetivas (ROUSSILLON, 2004b).

A psicanálise permite que se destaque um aspecto importante na noção de intersubjetividade. Se os estudos de Trevarthen e colaboradores evidenciaram a ocorrência de uma sintonia rítmica multimodal (por envolver voz, movimentos de olhos e membros) que ocorre entre bebê e cuidadores desde o nascimento, chamada por tais autores de simpatia, a psicanálise introduz uma dimensão disjuntiva fundamental na noção de intersubjetividade: ainda que haja mecanismos de desenvolvimento responsáveis pelo engajamento recíproco coordenado entre bebê e seus cuidadores, a passagem da posição demandante para a desejante faz com que se parta de uma pretensão de completude perfeita no campo do Outro para o alcance de, apenas, alguma satisfação substitutiva e incompleta a partir do estabelecimento de seu esvaziamento decorrente do recalque. Essa disjunção na dimensão do Outro conquistada com a constituição subjetiva aponta para uma intersubjetividade fundamentalmente dissonante. O desejo torna necessário que nos enderecemos a um Outro que não tem como recobrir nossa existência, ainda que faça de conta.

 

Fundamentos da intersubjetividade como plataforma de lançamento da pulsão

As pesquisas acerca da intersubjetividade evidenciam haver uma base nervosa inata para a ocorrência da coordenação que envolve o bebê e o cuidador no compartilhamento de experiências. A partir da leitura das considerações de Freud sobre o papel desempenhado pelas zonas erógenas como polos da pulsão, podemos supor que os mecanismos corporais previamente determinados pelo desenvolvimento para engajar-se nas experiências de intersubjetividade servem como plataforma de lançamento da pulsão. Não se quer dizer com isso que tais mecanismos determinam a pulsão ou que ela e seu circuito estejam previamente inscritos no desenvolvimento. O que ora sustentamos é que tais mecanismos podem ser considerados análogos às funções vitais, em apoio às quais Freud (1996b) propôs que as pulsões advêm: Embora não determinem o destino das pulsões, o qual depende de operações psíquicas não previamente inscritas no desenvolvimento, esses mecanismos corporais envolvidos nas experiências intersubjetivas iniciais servem como facilitadores da origem dos circuitos que virão a se estabelecer.

Duas ilustrações do que ora propomos podem ser consideradas à luz da pulsão escópica (FREUD, 1996b; LACAN, 1985b) e da pulsão invocante (LACAN, 1985b). Os estudos acerca da intersubjetividade evidenciam haver uma coordenação entre o bebê e seus cuidadores quanto à frequência e ritmo dos olhares entre si. Como vimos, caso haja desarmonia rítmica entre o que o bebê vê do outro e o que tenta provocar nele, o bebê entra em ansiedade. Em termos de desenvolvimento e especialização da área nervosa responsável pela visão por parte do bebê, tal coordenação intersubjetiva é fundamental por servir de guia para as vias neuronais envolvidas. É a partir do engajamento intersubjetivo visual entre bebê e cuidadores, determinado pelo desenvolvimento desde o nascimento do primeiro, que a pulsão escópica se instala.

No tocante à voz, os estudos psicolinguísticos (BATESON, 1975; FERNALD e SIMON, 1984; MASON e JUST, 2006) evidenciam que desde o nascimento ocorre um engajamento do bebê com seus cuidadores em ritmos e frequências carregados de significados capazes de deflagrar respostas emocionais precisas e específicas. O bebê é capaz tanto de responder como de tomar a iniciativa de provocar tais engajamentos. A partir de tal engajamento, a pulsão invocante, que segundo Lacan (1985b) é a mais próxima da experiência do inconsciente, instala-se como circuito.

As considerações tecidas acima estão de acordo com a noção formulada por Freud (1996b, 1996c, 1996d, 1996e) como séries complementares, decorrentes da definição da pulsão como um conceito que se situa no limite entre o somático e o psíquico (FREUD, 1996a). Segundo tal noção, a constituição subjetiva dá-se a partir de uma combinação sempre singular entre constituição somática e constituição psíquica.

Uma consequência possível do que ora propomos é que uma base orgânica hígida, capaz de engendrar experiências de intersubjetividade que engajam o bebê e seus cuidadores, é condição necessária, mas não suficiente, para o estabelecimento do circuito pulsional. Algumas das complicações que podem incidir sobre esta base orgânica (como esclerose tuberosa com achados cerebrais, por exemplo), comprometendo o engajamento intersubjetivo que serve de plataforma de lançamento da pulsão, podem vir a ter consequências adversas para o estabelecimento do circuito pulsional e a decorrente constituição subjetiva, levando a uma "impermeabilidade biológica ao significante" (JERUSALINSKY,1984).

 

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Endereço para correspondência:
Al. Joaquim Eugênio de Lima, 1360/74
01403-002 - SÃO PAULO/SP
Tel.: + 55 (11)7500-8862
E-mail: gabrielaxdearaujo@hotmail.com, rogerlerner@usp.br

RECEBIDO EM: 30/07/2010
APROVADO EM: 02/08/2010

 

 

Sobre os Autores

Gabriela de Araujo
Psicóloga. Doutoranda pela Université Paris VII em co-orientação com o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Rogério Lerner
Psicanalista. Psicólogo. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Co-orientador do doutorado de Gabriela de Araujo.

 

 

1. Texto traduzido livremente pelos autores. As citações traduzidas desta maneira serão marcadas por um asterisco (*).

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