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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

O ESPAÇO DA FALTA

 

O último Lacan

 

The last Lacan

 

 

Gilda Vaz Rodrigues

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Abordar o último Lacan implica pensar a psicanálise além de Freud e Lacan com a condição de nos servirmos de suas indicações preciosas para a direção do trabalho psicanalítico. Porém, no fim do caminho tinha uma pedra: o real. Como operar com isso? Destacamos três recursos utilizados por Lacan: a lógica do matema, a topologia e a lógica do poema.

Palavras-chave: Real, Equívoco, Matema, Topologia, Poesia.


ABSTRACT

To approach the Last Lacan implies thinking psychoanalysis beyond Freud and Lacan on the condition that we serve them, that left us precious indications as direction for the psychoanalytic work. But at the end of the road was a stone: the real. How to operate with it? We highlight three features used by Lacan: the mathematical logical, the topology and the logic of the poem.

Keywords: Real, Misunderstanding (une bévue), Mathematic, Topology, Poetry.


 

Tomo como ponto de partida a frase de Lacan:

Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos para essa evidência de que não há nada mais desbaratado que a realidade humana (LACAN, [1955] 1985, p. 99).

O inconsciente, além de estar sempre passando-o para trás, não tem um caráter tranquilizador, trazendo sempre algo de Unheimlich (estranho).

Para a ‘tranquilidade’ de todos e dos próprios analistas, a estrutura do inconsciente tende a ser tamponada, fazendo uma contenção no domínio da loucura. Daí o funcionamento pulsátil do inconsciente (alienação-separação). Essa conjunção-disjunção se alterna como uma báscula por meio de um intrincado jogo de relações que inclui o equívoco.

Lacan entra na psicanálise pela porta da psicose com sua tese sobre a paranoia e sai com seu último ensino também pela porta da psicose. Entre um tempo e outro, um tecido, um ‘ter-sido’.

O que se mostra é que a linguagem não se restringe à comunicação, que se demonstra impossível, uma vez que o que se diz nunca é o que o outro escuta nem mesmo exatamente o que se queria dizer. É o que se enuncia por meio do aforismo lacaniano “a relação não existe”. O que se destacam é o mal-entendido e o equívoco, l’une-bévue (1976-1977).

O percurso que Lacan faz atravessa o campo do Outro, o campo da linguagem, da família, da cultura. E, no final, se diz cansado de ouvir repetidamente a mesma

[...] cadeia espúria, de destino e de inércia, de lances de acaso e estupor, de sucessos falsos e de encontros desconhecidos que constituem o texto corrente de uma vida humana (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 66).

Lacan se diz cansado.

Como sair dessa captura pela rede da linguagem? Onde e como se sustentar fora dessa rede trançada, torcida e por vezes tão fechada que funciona como uma armadura?

Todos sabem que uma análise se faz por meio de palavras com as quais se tece, se enoda, se escreve, se enreda, se embola, se enrola, como a bela imagem usada por Sócrates para definir seu método no pensatório – um moinho de palavras.

Uma breve referência a título de parábola:

A peça As nuvens, de Aristófanes, foi apresentada em 423 a.C. Nessa peça o herói, um velho fazendeiro, decide procurar Sócrates que presidia o Pensatório, um tipo de escola propagadora de conhecimentos, que funcionava por meio de um moinho de palavras e levava à arte de encontrar soluções.

“Saber fazer com as palavras era o que demandava o velho campesino à escola socrática”.1

O que fica patente no texto da peça são os efeitos inesperados e surpreendentes do reino das palavras.

As nuvens representam, como deusas, a leveza dos vapores, a violência dos sopros, sob a forma de raios e trovoadas até se romperem em tempestades.

“Já te aconteceu de olhar para cima e ver uma nuvem parecida com um centauro, com um leopardo, com um lobo ou com um touro?”

Elas se transformam no que desejam, diz Sócrates.

Assim também é a poesia. Ela faz existir o que não existe.

A vida tem a estrutura de ficção, de sonho. O despertar nos leva à solidão do Um que somos no mais íntimo de nós mesmos. Assim também é o trabalho analítico.

O que resta?

Pontos e furos. As palavras se soltam dos sentidos aos quais se aprisionaram e permaneceram fixadas pela estrutura da neurose. Depois de soltas, elas podem brincar, fazer existir o que não existe e criar poesia com o que se colhe do chão do cotidiano.

A dimensão sublime do ser humano foi criando uma via pelos desvios e do ‘bem-dizer’ se fez poesia.

O trabalho de esvaziamento de sentido que se opera na tessitura do inconsciente estruturado como uma linguagem chega a um estatuto de identidade em que o Um da fenda, do furo, se torna, ele próprio, a essência do ser. Daí Lacan destacar que o tecido do inconsciente é feito de toros, figura topológica que envolve uma borda e seu buraco interior, um anel. Trata-se de um retorno ao imaginário por onde Lacan também iniciou seu ensino com a formulação do estágio do espelho. Porém, agora um imaginário do furo, da falta.

Seguindo nessa direção, Lacan faz ex-sistir um campo que, embora tenda sempre a ser tamponado, deve ser mantido aberto para que possa proceder outra lógica que inclua o vazio cavado pela castração simbólica. A inclusão dessa falta torna o inconsciente um operador na medida em que algo se desprende do envelopamento pelo sentido, e a palavra adquire novas cores, novas ressonâncias.

As palavras já não buscam um encadeamento regido pela lógica do fantasma de cada um, mas brincam, pulam, soltam, ressoam no vazio deixado por tudo o que passou, pairando no ar o vapor das lembranças.

A importância que Lacan dá a Joyce no final de seu ensino indica a encarnação do singular de cada um de nós. Tão singular, que não se comunica, mas se faz Uno. Daí a proliferação de neologismos que compõem os escritos de Joyce assim como os do último ensino de Lacan.

Num primeiro tempo, nossos GPS apontavam para uma direção: o Pai.

O Pai era o norteador de nossa vida e o organizador de nossa subjetividade, estabelecendo uma hierarquia que facilitava a identificação e o lugar de cada um na estrutura.

Hoje uma outra configuração aponta para uma rede, uma estrutura diversificada, que dá ao pai um outro perfil, que pode ser chamado de “per versões” ou “versões do pai”. Isso configura uma certa rebelião contra as convenções que asseguravam uma rotina social aparentemente mais confortável. Essa zona de conforto não significa que “éramos felizes e não sabíamos”, ou que sabíamos, mas talvez fosse mais cômodo. Ora! O desejo é perturbador.

O surgimento do desejo acaba por ser algo a ser evitado, reprimido, elidido, abafado, enfim, sabemos que a sociedade se organiza graças ao recalque que mantém os desejos contidos.

Freud, entretanto, abriu as portas do Aqueronte e, desde então, não há como manter a civilização ocidental apartada do desejo.

Em vez do pai da hierarquia, a rede. O Édipo não esgota o destino do sujeito. Per-versions, perversões ou novas versões do pai. Diversidades que vão muito além dos cinquenta tons de nuanças que compõem as fantasias que povoam o mercado.

Tal como as figuras topológicas, os conceitos psicanalíticos também mudam de forma. O desejo que aciona o movimento da humanidade e de cada homem que compõe esse conjunto é inicialmente tratado por Lacan pela vertente do deslizamento metonímico da falta a ser, ressaltando a vacuidade e a busca infinita por um objeto perdido, paradoxalmente, nunca tido.

Num segundo tempo formula-se o conceito de fantasia, barreira no deslizamento metonímico da cadeia em que o desejo se articula. O foco da análise recai no eixo metafórico – metáfora paterna – que se formula por meio da noção de fantasma fundamental que serve de apoio ao desejo.

Tomar a fantasia como apoio ao desejo não é o mesmo que tomá-la como resposta. Tomá-la como resposta, reforça a aderência ao fantasma, com seus efeitos nefastos decorrentes da posição de objeto em que o sujeito cai. Esse tempo que tem a metáfora paterna como barreira ao deslizamento infinito do desejo é importante mas não suficiente para dar conta da repetição da atuação fantasmática.

Entramos, assim, num terceiro tempo que exige uma travessia. Freud a chamou de castração, e Lacan, de passe, uma solução frente ao impasse da castração.

A barra estaria no não saber, na falta de um significante no campo do Outro, , na contingência do real. O sujeito se constitui articulando-se em uma cadeia de significantes e escapa a essa mesma cadeia pela vivência de um fading, um certo apagamento que produz manifestações a serem consideradas.

Se, num primeiro tempo, S1 e S2 são inseparáveis, não existe um sem o outro, no último ensino de Lacan, ressalta-se o Um sozinho, que não se articula a nada. Há Um. A ênfase recai na dimensão real do inconsciente. Não existe Outro do Outro; não existe o Outro capaz de nomear esse ser de falta; Hilflosigkeit, nome freudiano para o desamparo do sujeito. A fantasia é uma defesa e ao mesmo tempo um operador.

Lacan, ao formular o conceito de real, ressalta que este tem o valor de um traumatismo e chega a definir o inconsciente como “troumatisme”, destacando o termo francês “trou”, que quer dizer buraco ou furo e o esvaziamento de sentido.

Temos, então, duas dimensões do inconsciente:

• O inconsciente transferencial, operado pela função do sujeito suposto saber;
• O inconsciente real como furo, buraco, vazio.

Como operar com esses dois campos?

Destacamos três recursos utilizados por Lacan:

• a lógica do matema;
• a topologia;
• a lógica do poema (interpretação como equívoco 1976-1977).

Lacan, cujo estilo não se destaca pelo sentido e, muito menos, pelo encadeamento compreensível de seus escritos, segue sua própria indicação: eliminar a articulação gramatical, mas manter a lógica.

O conhecido aforismo de Lacan “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” não implica que haja relação do sujeito com a linguagem. Na verdade, falamos sozinhos e, eventualmente, algo ressoa no outro.

A importância dessa ressonância se demonstra pelos efeitos de transmissão que o ensino de Lacan deixou e que até hoje, apesar da dificuldade de entendimento de seus textos, continuam a ressoar no trabalho dos psicanalistas.

Françoise Dolto, em um documentário, ao ser indagada sobre sua participação nos seminários de Lacan, responde que não entendia tudo o que era dito, mas que permanecia ali por causa do “clima”, referindo-se a algo, além da linguagem, que envolvia os participantes.

O “clima”, a voz, o olhar, o tom, o ritmo. Enfim, a transmissão da psicanálise se faz além do que é dito, rumo ao real.

No Seminário 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), Lacan comenta que poderia ter reservado a sua satisfação de jogar com o inconsciente só para ele, sem revelar os truques dos efeitos de significantes que se operam nesse jogo, mas ele não teria feito Ensino.

O que se destaca é que a transmissão da psicanálise se faz por meio daquilo que ressoa mais além da linguagem. Freud já dizia de uma atenção flutuante necessária para se escutar esse mais além do que é dito. Não adianta ficarmos presos ao que Lacan ou Freud disseram; é preciso dar asas ao jogo do inconsciente.

Para isso, retomando as metáforas freudianas, o inconsciente precisa ter sido trabalhado, burilado, sofrido uma transformação tal como a de uma “pedra bruta à pedra angular”, ou ainda, a de um novelo emaranhado em que o sujeito se embola e um outro enodamento que Lacan chamou de borromeano.

Um novelo emaranhado se mostra de difícil manejo para se produzir um tecido; já o novelo ‘re-enodado’ possibilita um tecer solto, leve e fluente como a poesia.

A análise vai se fazendo por meio de manobras que torcem, retorcem, viram e reviram, até ‘limpar’ o inconsciente como o artista ou o escritor que limpa sua obra, extraindo os excessos, para que ela possa chegar a uma forma irredutível em que se reconhece o traço do autor. A psicanálise se torna pontual.

Temos um Um que é um “si mesmo”, Um sozinho, pura solidão.

O inconsciente definido pelas formações que se articulam e se encadeiam em redes de significantes, se enoda ao buraco do real. Os dois campos estão presentes, em uma alternância concomitante, em uma harmonia dissonante, atestando o enlace do inconsciente com o real. Isso tem a estrutura de um chiste, um lapso, um jogo de linguagem, lalingua – noção que Lacan introduz a partir de O seminário, livro 20: mais ainda (1972-1973).

Há coisas que vão além da linguagem e se devem ao próprio tecido do inconsciente – o corpo e seus buracos, como enunciou Freud ao se referir à zona erógena e sua estrutura de borda. Ter um corpo é atravessar a experiência do gozo sem a referência a uma subjetividade. O sujeito se produz aí como ausência, como furo. O corpo traz a marca de lalíngua.

Do sujeito suposto saber ao sujeito suposto saber fazer com o real implica um manejo.

Quando dissemos que a porta de saída do ensino de Lacan é a psicose, queremos destacar um tempo além do Édipo.

Em pleno movimento estudantil de 1968, Deleuze e Guattari, escrevem O anti-Édipo - capitalismo e esquizofrenia, tendo como alvo libertar o desejo da trama edipiana, rompendo com as categorias determinadas pelo simbólico – a família e a cultura – que a psicanálise, até então, o enquadrara. Nesse momento, Lacan, que coordenava seu seminário O avesso na psicanálise na Sorbonne, enuncia algo nesse sentido: “O complexo de Édipo é um sonho de Freud”.

Seu ensino vai na direção de um real e de uma “maquinaria” que ofereça ao desejo suportes menos subjetivos e mais operacionais.

Se algum dia surgir algo novo, é porque uma pequena luz iluminou a escuridão desse furo e deu voz a isso.

Só as formas ocas ressoam!

 

Referências

ARISTÓFANES. As nuvens. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

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VAZ RODRIGUES, G. Prefácio ou pósfácil... com licença poética. In: FREITAS, M. A. Rapto. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2017.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: gildavaz@terra.com.br

Recebido em: 09/10/2017
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre a autora

Gilda Vaz Rodrigues
Psicanalista.
Além do trabalho, clínico dedica-se à transmissão da psicanálise em seu seminário O ensino de Jacques Lacan desde 1990, em Belo Horizonte.
É autora, entre outros livros, de: Percursos; A psicanálise pelo avesso; Cortes e suturas na operação psicanalítica (Ophicina Arte & Prosa); No começo era o ato (Artesã).

 

 

1 O resto da trama pode ser encontrado em: ARISTÓFANES. As nuvens. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

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