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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte Jan./June 2021

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Escrever o que não se escreve: Clarice, a letra e o feminino

 

Write what can not be written: Clarice, the letter and the feminine

 

 

Erika Vidal de Faria

Psicóloga. Psicanalista. Mestranda em estudos psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: eriikavf@hotmail.com

 

 


RESUMO

A arte e a literatura nos ensinam a dimensão da invenção frente ao real enquanto o impossível que não cessa de não se escrever. É a partir disso que propomos pensar na escrita de Clarice Lispector - autora mundialmente conhecida pela singularidade e estética de seu texto - em relação à letra e ao feminino. Com base em relatos autorais e biográficos da escritora, abordamos a letra de Clarice considerando-a uma solução, não menos árdua, frente aos efeitos do não-todo que marcam quase toda a sua obra literária. Sua escrita pôde testemunhar algo do indizível, do impossível, do materno, do resto, da mística, do gozo Outro, do corpo, da lalangue. Através da fantasia masculina, essas nuances foram denominadas de enigmas da feminilidade, as quais necessitavam ser resgatadas da profundeza do continente negro para melhor serem compreendidas. O que talvez tenha passado despercebido ao discurso regido pela lógica fálica é que, em se tratando do feminino, nos interessa mais investigar os testemunhos singulares do não-todo frente às suas invenções singulares. O que Clarice tem a nos ensinar?

Palavras-chave: Clarice Lispector, Feminino, Letra, Literatura, Psicanálise.


ABSTRACT

Art and literature teach us the dimension of invention in the face of reality as an impossible thing that never ceases to be written. It is from this that we propose to think about the writing of Clarice Lispector - an author known worldwide for the uniqueness and aesthetics of her text - in relation to the letter and the feminine. Supported by authorial and biographical reports of the writer, we will approach Clarice's lyrics thinking of her as a solution, no less arduous, in face of the effects of the not-all that mark almost all her literary work. Her writing could witness something of the unspeakable, the impossible, the maternal, the rest, the mystical, the Other enjoyment, the body, the lalangue. Through male fantasy, these nuances were called enigmas of femininity, which needed to be rescued from the depths of the black continent to be better understood. What perhaps went unnoticed by the speech governed by phallic logic is that, in the case of the feminine, we are more interested in investigating the singular testimonies of the not-all in the face of their singular inventions. What does Clarice have to teach us?

Keywords: Clarice Lispector, Female, Letter, Literature, Psychoanalysis.


 

 

Clarice Lispector, escritora brasileira, consagrou-se de maneira expoente no cenário da literatura nacional e internacional causando frenesi por onde quer que sua letra chegasse. Conhecida por seu estilo confessional e intimista, possuía uma estrangeiridade que destoava do que se produzia na literatura brasileira em meados da década de 1950 e final de 1970.

Sua escrita singular, aliada à sua estética, sua presença e sua personalidade, lhe rendeu um lugar quase mitológico cerceado de estranheza, mistério e enigmas. Era impossível reagir com indiferença ao que produzia. Clarice foi aclamada por nomes importantes da literatura e, ao mesmo tempo, recebeu duras críticas que a acusavam de ser hermética e incompreensível. "A posição de um mito não é muito confortável" (Hohlfeldt, 1971), disse a um jornalista.

Nascida na Ucrânia e filha de judeus russos, Clarice chegou ao mundo em 1920, ocasião em que seus pais se refugiavam da Guerra Civil Russa (1918-1920), em razão do forte antissemitismo. A família, composta por três filhas das quais Clarice era a caçula, conseguiu autorização para emigrar para o Brasil apenas em 1922, instalando-se em Maceió e vivendo sob condições precárias por algum tempo. Sempre que interpelada em relação a sua nacionalidade, Clarice respondia que pertencia ao Brasil: "A minha terra não me marcou em nada, a não ser pela herança sanguínea" (Lispector, 1971).

Sua mãe, Mania Lispector, faleceu em 1930, vítima da sífilis. A progressão da doença foi lenta e penosa. Sem perspectiva de tratamento e vivendo num país completamente estranho, restou à família assisti-la morrer, "incapaz de se mover ou de falar, presa numa cadeira de balanço" (Moser, 2017, p. 84).

A morte de sua mãe a marcou profundamente:

Fui preparada para dar à luz de um modo muito bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. (Lispector, 1999a, p. 110-111)

Segundo consta em sua biografia, pequena demais para trabalhar e conseguir dinheiro para ajudar nas despesas e no sustento da casa tal como o pai e as irmãs, Clarice permanecia em casa e encenava peças ou contava histórias para sua mãe paralisada e doente. Dessa difícil vivência nasceu seu vínculo com a escrita, a brincadeira com as palavras e a criação de narrativas. O hábito permaneceu mesmo após a morte da mãe, e a escrita nunca mais a abandonou. Sempre às voltas com uma exigência arbitrária em relação à escrita.

É a partir daí que tentaremos extrair algo, tendo como mote de investigação a letra e suas relações com o feminino. Com isso em vista, não é de nosso interesse abordar Clarice numa tentativa de enquadrá-la em conceitos psicanalíticos, já que com isso poderíamos incorrer no erro de "[...] bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho" (Lacan, [1965] 2003, p. 200). Entendendo um pouco de sua história e do momento fecundo em que se deu início sua relação com a escrita, podemos avançar.

[...] Como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? e como é que se começa? e que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranquilo? (Lispector, 1999a, p. 157)

Certa vez, Clarice disse que escrever era uma maldição, mas uma maldição que salvava. Para ela, a escrita se constituía em uma maldição, pois há ali uma exigência da qual não é possível se livrar, um vício penoso que arrasta e nada o substitui. Salvação também em contrapartida, pois escrever é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria vago e sufocador. Escrever é procurar reproduzir o irreproduzível:

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. (Lispector, 1999b, p. 13)

Sabemos da aproximação entre psicanálise e literatura justamente pela aposta freudiana de que a arte antecipa a psicanálise na produção de um saber, do qual o psicanalista "[...] poderá extrair uma orientação para sua prática do inconsciente" (Mandil, 2005, p. 45).

Portanto, a literatura é utilizada como um dispositivo para fazer a clínica avançar. Tal como Marguerite Duras, apontada por Lacan ([1965] 2003) em sua homenagem à escritora, Clarice parece revelar, ao pé da letra, um saber que nos precede.

Seguindo os caminhos apontados por Freud, Lacan se debruça no campo da literatura, mas por outra vertente: a da lituraterra. Para abordar as relações da escrita com o sujeito, Lacan esboça o conceito de letra, que é um litoral entre o Real e o Simbólico, entre o saber e o gozo.

As referências de Lacan em relação à letra se localizam principalmente em dois momentos distintos de seu ensino. A primeira se encontra no texto sobre A carta roubada, de Edgar Allan Poe, no qual Lacan ([1956] 1998) apresenta a letra junto a seus efeitos feminizantes, ultrapassando a função da transmissão de uma mensagem.

O conto de Poe narra a história de uma carta furtada de conteúdo supostamente comprometedor e da busca realizada para encontrá-la. A carta pertencia à Rainha e não poderia ter seu conteúdo revelado a terceiros.

A polícia foi acionada para recuperá-la, contudo, mesmo empreendendo seus esforços, isso não aconteceu. Quem consegue recuperá-la é Dupin, que faz um caminho distinto ao dos oficiais. Os policiais a procuravam a partir de sua descrição, vasculhando aposentos, móveis e possíveis esconderijos. Dupin, em contrapartida, não se prestou a pensar na carta apenas pela descrição oficial fornecida, mas a considerou mutável, passível de disfarce. Dupin supunha que a carta estaria em algum lugar evidente e que quem a havia furtado, agiu com simplicidade, suspeita que possibilitou seu achado.

Mandil (2003) destaca que Lacan aborda a carta numa dupla essência, pois, além de portar uma mensagem, ela possui um aspecto material que permite que seja manuseada, modificada, descartada como lixo. A letra assume, assim, seu lugar numa "[...] estrutura essencialmente localizada no significante" (Lacan, [1956] 1998, p. 505).

O encadeamento dos significantes, apenas em sua articulação, pode produzir os mais variados sentidos. Fora de seu valor de significação, o significante determina a letra, e é nele que se produz um deslizamento: S1 para S2, S3 e assim consecutivamente.

Assim, a letter, carta ou letra em inglês, é passível de ser manuseada e se furta a uma significação unívoca. A depender de quem a porta, ela pode ir de letter à litter, "[...] de uma carta/letra, traduzo, para um lixo" (Lacan, [1971] 2009, p. 106), demonstrando que seu valor ultrapassa sua mensagem.

Nesse sentido, o valor do significante articulado à letra, é despojado de qualquer significado que o antecede. O valor significante da letra aumenta à medida que o valor semântico se reduz. No momento em que apresenta essa primeira tímida noção da letra, Lacan a enlaça junto ao simbólico, e tem, portanto, relação com as formações inconscientes.

Tal como os sonhos, os chistes, os lapsos e os atos falhos, a perspectiva de uma mensagem disfarçada convoca uma leitura para decifrar seu valor significante depurado de qualquer significado anterior.

Já em Lituraterra (Lacan [1971] 2003), a letra é abordada como um litoral entre o saber e o gozo e é, ao mesmo tempo, literal. Numa viagem ao Japão, ao sobrevoar as planícies da Sibéria, Lacan observou o ravinamento das águas nas montanhas: as nuvens carregadas de água precipitam e transportam os resíduos do solo. Nesse percurso se produzem marcas e sulcos na terra.

É a partir dessa outra cena que Lacan passa a pensar na letra, agora de um outro lugar. Esse ravinamento das águas aponta para aquilo que faz rasgo e escoa. Para Lacan, as nuvens carregadas seriam o semblante que, ao romper, forja a precipitação da água e é isso que produzirá as rasuras na terra.

Aqui, a letra se descola do significante e se converte em pura literalidade, ao lado do real, reduzindo-se a seu aspecto material de puro resto, de furo, sulco, vazio escavado pela escrita,

[...] sempre pronto a dar acolhida ao gozo, ou, pelo menos, a invocá-lo com seu artifício. (Lacan, [1971] 2003, p. 25)

Assim, temos, de um lado, a escrita enquanto testemunha do dizer em um discurso endereçado e, de outro, a escrita que mostra o que de real aponta o simbólico, escoando o significado pelo efeito da escritura. O conceito de letra nos possibilita, portanto, pensar a noção do real em sua articulação com o gozo.

Há, aqui, uma sutileza clínica importante, pois essa articulação nos permite ler os sulcos de cada sujeito, verificando de que maneira cada um constrói o próprio artifício frente ao que não se reduz à universalidade do significante.

Fascinado como era com o campo da linguística, Lacan investiga o saber esquecido da língua para formalizar o que ele chama de "lituraterra". O psicanalista nos coloca diante das palavras "littera", que significa letra, e "litura", que comporta o significado de rasura ao mesmo tempo que transmite a ideia de cobertura.

Dessa raiz se forma a palavra "liturarius", indicando um escrito que possui rasuras. Será a partir de "liturarius" que Lacan cunhará o termo "lituraterre", ao qual opõe literatura. (Mandil, 2003, p. 45)

Cabe resgatar a pontuação feita por Pinto (2008), que se refere ao empreendimento de Lacan de tentar produzir uma forma de escrita, indicando o que não cessa de não se escrever, para que o inconsciente possa ser lido. Ao opor o campo da literatura ao da "lituraterra", Lacan sinaliza que a literatura está do lado do simbólico, do significante e da metáfora, onde há uma proliferação de sentido.

A lituraterra, ao contrário, está mais próxima dos efeitos de gozo e do real.

Para lituraterrear, assinalo que faço imagem no ravinamento, com certeza, mas nenhuma metáfora: a escrita é esse ravinamento. (Lacan, [1971] 2009, p. 116)

Enquanto na literatura haveria um movimento para tamponar o furo, a "lituraterra" o coloca em evidência e o eleva à dignidade. É nessa esteira que se explica o interesse da psicanálise por essa segunda via da escrita, posto que a psicanálise revela o furo no saber, atesta aquilo que fracassa e vai justamente ao encontro desses efeitos produzidos pela rasura, lituras e sulcos.

Esse ponto inacessível que não se conecta ao significante, onde há a ruptura com o semblante que dessimboliza a palavra, nos remete à tentativa de Clarice de reproduzir o que não se reproduz, de escrever o que não se escreve. Grande parte de suas obras não é composta pelo legível, pelo traduzível, pelo comunicável. Em sua escritura encontramos aspectos que escapam ao enunciado, situando-se para além da organização sintática, rompendo delicadamente com o léxico.

Há a presença do sem sentido, non-sense, do corpo vivo, tão vivo que Clarice, em sua infância, pensava que os livros eram como árvore, como bicho, coisa que nasce (Moser, 2017).

Há, ainda, um aspecto material em suas palavras, de corporeidade, "a palavra é objeto?" (Lispector, 1998, p. 12), ela se questiona. Clarice gostaria de pegar a palavra com a mão, lidar com matéria-prima, convulsão da linguagem, "apenas palavras que vivem do som" (Moser, 2017, p. 27).

Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere [...]. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por própria conta e autorrisco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é escrever [...]. Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando. (Lispector, 1999b, p. 16-29)

A lituraterra de Clarice toca esse litoral que marca os confins da linguagem. Ela nos revela:

Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. [...] Eu queria que me dessem licença para que eu escreva ao som harpejado e agreste, a sucata da palavra. (Lispector, 1999b, p. 14)

Na perspectiva em que a letra se apresenta como o buraco escavado pela escrita, tomada enquanto real, é possível fazer uma aproximação com o feminino, pois dele também não lê o que se produz a partir da lógica universal, toda e fálica, em última instância.

O feminino aqui abordado, refere-se ao último ensino de Lacan no qual ele propõe a sexuação em termos matemáticos, situando duas modalidades de gozo, sendo o gozo feminino suplementar à via fálica, não-toda, o que denota a inconsistência da própria estrutura.

É nesse furo da linguagem, nos vazios, silêncios e buracos, que talvez possamos encontrar notícias do impossível da estrutura compatível com a lógica do não-todo, onde há um ponto que não pode ser lido ou decifrado, pois tem relação com o escoamento do sentido, indizível e irrepresentável.

No seminário em que aborda o discurso por uma via que não seria a do semblante, Lacan ([1971] 2009) estabelece uma correlação entre a letra e a mulher, salientando que, tal como a mulher que não existe, a letra se situa no campo da falta do Outro, assim

[...] tanto A mulher quanto a Letra podem ser ditas como não todas, no que se refere à função simbólica. (Pinto, 2008, p. 159)

O que se produz aí são elementos que trazem à tona o registro do real da língua, um mais além, um Outro gozo que não está no campo da compreensão, mas sim ao lado da experiência, daquilo que Lacan ([1972-1973] 1985) propõe como o gozo feminino, suplementar, do qual talvez nem mesmo as mulheres saibam que o possuem, já que nem mesmo todas podem experimentá-lo.

Rubinetti (2014) comenta que há na escrita de Clarice a presença desse gozo como Outro, e é precisamente aí que repousa sua relação com o feminino, pois há um gozo fora do simbólico que parece ser alojado na escrita. A escritura, de certa forma, oferece um tratamento a esse gozo indizível. Há, assim, uma tentativa de amarrá-lo com a letra, pois o real da escrita, assim como o gozo feminino, só pode se entrever, ser tocado em suas beiradas.

Escreve Clarice:

Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder. (Borelli, 1981, p. 65).

[...]

Quando procuro demais um 'sentido' é aí que não o encontro. O sentido é tão pouco meu como aquilo que existisse no além. O sentido me vem através da respiração e não em palavras. É um sopro. (Borelli, 1981, p. 79)

Trata-se de uma escrita de lalangue, ou, como ela própria inventou "Lalande" (cf. Moser, 2017, p. 82): palavra que evoca sensações. "Lispector permite entrever a dimensão da lalangue como pura sonoridade sem sentido" (Rubinetti, 2014, p. 41).

Para Branco (1991), esse tom de escrita sempre tem a ver, de certa forma, com a mulher, lugar de uma língua outra, intangível e incapturável, o que não significa que, por ser impossível, estejamos impossibilitados de tentar, de certa forma, fazer contornos frente ao que escapa.

Lacan ([1972-1973] 1985), p. 87) mesmo sinalizou que do não-todo podemos recolher "testemunhos esporádicos". Não seria essa modalidade de escrita precisamente isso? Silenciosamente, essa experiência pode ser testemunhada justamente na posição discursiva que é a feminina, aquela que suportará a enunciação que faz face a esse furo. A letra se torna um recurso frente ao S(A).

Clarice não recuou frente ao ilegível da língua e do feminino. Na verdade, não havia possibilidade de recuo, ela confessa: "[...] minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim" (Lispector, 1999b, p. 18).

Sua letra é testemunha da maneira como ela enfrentou o real da escrita,

[...] que não nega o vazio que a constitui, mas que antes o exibe, o apresenta e faz dele matéria da linguagem. (Branco, 1995, p. 75)

Sua poética versa sobre o impossível de dizer numa lógica não-toda, visto que comporta o furo no saber e no sentido.

Clarice soube fazer com uma escrita que não se explica, gozo do qual repousa o silêncio, mas que, violentamente, rasura o papel com a força da letra, maneira pela qual ela soube dar "[...] existência de discurso à sua criatura" (Lacan, [1965] 2003, p. 203).

Para que escrever? Ela responde:

Escrevo para falar tudo aquilo que não é possível falar, tudo aquilo que eu não disse e não poderei tampouco dizer. Eu sou do nunca. (Lispector, 1999b, p. 31)

Pela via da escrita/letra, é possível apresentar uma invenção frente aos impasses da língua, do real, do gozo, do feminino. Há algo que escapa, e cada sujeito é convocado a urdir suas próprias soluções para dar conta do impossível, uma vez que todo escrito atesta o "não há". Dar uma abertura ao não-todo fálico, saber-aí-fazer com o que não há, apontar para a beira, borda, margem, litoral entre "centro e ausência, saber e gozo" (Lacan, [1971] 2003, p. 21).

Testemunha Clarice:

[...] quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. [...] Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu mesma que me entender, eu mesma inventar, por assim dizer a minha verdade. (Lispector, 1999a, p. 304)

A partir de sua escrita, lhe foi possível inventar, saber-aí-fazer com sua letra, litoral e literal, bordejando em torno do real, sendo justamente esse o ponto em que sua escrita se constrói: em sua tentativa inesgotável de dizer o indizível, escrevendo em sua própria impossibilidade, apesar de.φ

 

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Recebido em: 28/02/2021
Aprovado em: 16/04/2021

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