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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte July/Dec. 2021

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Considerações sobre a divisão do sujeito e do objeto nas escolhas amorosas

 

Considerations about the division of the subject and the object in love-choices

 

 

Guilherme HendersonI; Daniela ChatelardII

IPsicanalista. Professor adjunto do curso de Psicologia do Centro Universitário de Brasília (CEUB). Mestre e doutorando em Psicologia Clínica e Cultura (UnB-DF). Membro da Associação Lacaniana de Brasília. E-mail: guilhermefh@gmail.com
IIPsicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (UnB). Doutora em Filosofia (Universidade de Paris VIII). E-mail: dchatelard@gmail.com

 

 


RESUMO

A clínica psicanalítica não se restringe à aplicação de uma técnica de redução de sintomas. O analista escuta narrativas, fantasias que se repetem na história individual e familiar. Escolher uma companhia amorosa pode impor ao sujeito dificuldades, não necessariamente sintomáticas, mas que possuem uma estrutura lógica inconsciente. O objetivo deste artigo é analisar dois exemplos do texto O mito individual do neurótico (1952) e, à luz dos trabalhos de Freud e Lacan sobre a psicologia do amor, propor uma compreensão daquilo que cria problemas na escolha amorosa: sintomas e fantasias.

Palavras-chave: Sintoma, Fantasia, Escolha amorosa.


ABSTRACT

The psychoanalytic clinic is not restricted to an application of a technique to reduce symptoms. The analyst listens to narratives, fantasies that repeat themselves in individual and family history. The love-choice can impose on the subject difficulties, not necessarily symptoms, but which have an unconscious logical structure. The aim of this article is to analyze two examples of Lacan in the text The Myth Individual of the Neurotic (1952) and, with Freud's work on the psychology of love, propose an understanding of what can creates problems in love choice: symptoms and fantasies.

Keywords: Symptom, Fantasy, Love-choice.


 

 

Certos homens e mulheres, que a caminho de lograr suas conquistas mais desejadas - a companhia com quem sempre quiseram se casar, o trabalho mais almejado - começam a se sentir impotentes, sentem que já não desejam mais aquilo ou não confiam mais em si mesmos.

Em O mito individual do neurótico, Lacan ([1952] 1985, p. 15) afirma:

Pois bem, cada vez que o neurótico consegue, ou tende conseguir assumir seu próprio papel, cada vez que ele se torna, de alguma maneira, idêntico a si mesmo, e se assegura de que sua própria manifestação em seu contexto social determinado é bem fundada, o objeto, o parceiro sexual, se desdobra [...]. O que é muito surpreendente na psicologia do neurótico [...] é a aura de anulação que envolve, da maneira mais familiar, o parceiro sexual que tem para ele mais realidade, que lhe é mais próximo, com o qual ele tem geralmente os laços mais legítimos, tratando-se seja de um caso, seja de um casamento. Por outro lado, aparece um personagem que repete o primeiro, e que é o objeto de uma paixão mais ou menos idealizada, que prossegue de maneira mais ou menos fantasiosa, com um estilo análogo ao do amor-paixão e que impele, aliás, a uma identificação de ordem mortal.

Frente a determinados objetos de desejo, ocorre no sujeito, sem seu controle, uma divisão mais ou menos consciente entre um objeto anulado, depreciado e um novo objeto que passa a ser adorado. Buscamos compreender a configuração dessa divisão à luz da teoria psicanalítica a partir de dois exemplos expostos por Lacan ([1952] 1985): o caso do Homem dos Ratos, de Freud, e um fragmento da autobiografia de Goethe.

O objetivo deste artigo é analisar esses dois exemplos trazidos por Lacan à luz dos trabalhos de Freud sobre a psicologia do amor, em particular no que tange aos sintomas e às fantasias. Com isso, pretendemos demonstrar a estrutura inconsciente que subjaz a essas formações.

 

A divisão do neurótico na psicologia do amor

Entre 1910 e 1917, Freud produziu a série de três ensaios Contribuciones a la psicología del amor [Contribuições à psicologia do amor]. Como nota Miller (2010), o amor nesses textos se refere à articulação entre amor e gozo sexual.

Freud pensa a problemática do amor a partir de seus impasses: as condições para se eleger um objeto de amor, a degradação do objeto de amor, a impotência sexual, o tabu da virgindade. Esses impasses surgem, segundo o autor, porque o humano introduz o problema da escolha na sexualidade.

Diferentemente de um animal que, ao avistar a fêmea segue os comportamentos instintuais esperados para atingir a finalidade sexual, o ser humano escolhe com quem se relacionar, não se relaciona com qualquer "fêmea" ou qualquer "macho". Tendo isso em vista, falar de escolha de objeto de amor no homem é falar de condições, de motivações, de desejos que o levam a escolher determinadas pessoas, o que torna algumas desejáveis e outras não.

No segundo ensaio intitulado Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa [Sobre a mais generalizada degradação da vida amorosa], Freud ([1912] 2002) discorre sobre a afecção de nosso primeiro exemplo, a disfunção sexual ou impotência sexual (psíquica), que, naquela época, segundo ele, era a afecção que mais levava homens aos consultórios.

Para explicar esse sintoma, Freud se utiliza da mesma estratégia anterior, ou seja, busca suas origens no complexo familiar. Nessa via, seria a fixação incestuosa na mãe (ou irmãs) que impediria inconscientemente a realização plena do ato sexual. Somam-se a essa causação as influências de impressões penosas da vida sexual infantil e outros fatores que pudessem reduzir a libido para se dirigir ao sexo feminino. Contudo, Freud não reduz sua explicação à mera reconstrução do passado.

O que chamava atenção de Freud ([1912] 2002) nos relatos de homens que sofriam com esse sintoma é que parecia operar neles uma divisão, já que não conseguiam se relacionar sexualmente com a amada, mas logravam com prostitutas ou mulheres que "depreciavam". Para ele, nessa divisão operaria o que chama de corrente terna e corrente sensual da sexualidade.

A saída "normal", segundo Freud ([1912] 2002), seria aquela em que o homem teria conseguido abandonar seus primeiros objetos de amor, escolhido uma parceira em que lograsse conjugar ambas as correntes: a sensual (desenvolvida na adolescência) e a terna (os princípios de sua sexualidade).

Mas essa saída poderia fracassar por dois motivos, segundo o psicanalista. O primeiro deles seria a frustração na nova eleição de objeto, isto é, não haver disponibilidade de novos objetos para o sujeito; o segundo seria o grau de atração que exerceu o objeto na infância, quanto maior tiver sido esse poder de atração, mais difícil seria abandoná-lo.

Para Freud ([1912] 2002, p. 175), se esses dois fatores comparecessem juntos, entraria em ação a formação da neurose:

A libido se aparta da realidade, é acolhida pela atividade da fantasia (introversão), reforça as imagens dos primeiros objetos sexuais, se fixa a eles [...] a barreira do incesto constrange a libido direcionada a estes objetos a permanecer no inconsciente. (Tradução nossa).

Aquilo que não pode ser concretizado na realidade pode ser satisfeito no nível da fantasia, que substitui os objetos originários por outros, mas isso não pode ser considerado um sucesso do psiquismo, esclarece Freud, visto que, na situação da vida cotidiana, na colocação real da libido, permanece a dificuldade de escolher novos objetos. Nesse caso, a fantasia pode até mesmo ser tão intensa que leva o sujeito à impotência total, a restringir toda a sua atividade sexual às fantasias inconscientes.

Portanto, Freud assinala que, para haver impotência psíquica, é preciso que a corrente sensual não desapareça por trás da corrente terna, é preciso conseguir alguma escapatória para a realidade. A corrente sensual busca uma via alternativa, procurando objetos que não recordem pessoas incestuosas proibidas.

E se a pessoa possui um mínimo traço, uma impressão que a levaria a ser estimada como aquelas, o resultado é a ineficácia no campo erotismo, e

[...] a vida amorosa desses seres permanece dividida nas duas orientações que a arte personificou como amor celestial e terreno (ou animal). Quando amam, não desejam; quando desejam, não podem amar. (Freud, [1912] 2002, p. 177, tradução nossa).

Para Freud, o principal recurso utilizado pelo homem diante dessa divisão amorosa é a degradação psíquica do objeto sexual, que tem por objetivo afastar todo e qualquer traço de ternura desse objeto, enquanto a supervalorização é reservada para o objeto incestuoso. De um lado, o objeto elevado está inserido cultural e socialmente nas estruturas do parentesco, na família, no casamento; de outro lado, um objeto proibido se coloca à parte de tudo isso, a ser gozado, consumido e atraente para o sujeito.

No entanto, tal divisão não se dá necessariamente entre dois objetos (a esposa, a prostituta), mas é condição da relação com o objeto enquanto tal. Amamos um lado desse objeto, enquanto gozamos sexualmente de outro lado. A impotência sexual pode indicar a tentativa neurótica de impossibilitar a degradação do objeto sexual, isto é, o possível encontro de ambas as correntes em um mesmo objeto: gozar sexualmente de seu objeto de amor.

É o caso, por exemplo, do rapaz que tem a ideia persistente de que sua parceira é uma santa e, com isso, não consegue ter relações sexuais com ela. A dificuldade desse caso é o paciente aceitar que sua parceira não é toda santa, e poder gozar de uma parte dela que seus ideais impedem de notar. Nesse caso i(a) [a imagem do objeto] está impossibilitando ao (a) a causa do desejo, o mais-de-gozar. (Miller, 2010).

Entretanto, Freud ([1912] 2002) nota que os fundamentos dessa degradação do objeto não estariam apenas na trama edipiana (a barreira do incesto), que impossibilitaria o acesso direto ao objeto originário, mas em alguma característica intrínseca da pulsão.

Creio que, por estranho que soe, haveria que nos ocuparmos da possibilidade de que há algo na natureza da pulsão sexual mesma desfavorável à satisfação plena. (Freud, [1912] 2002, p. 182, tradução nossa).

Vimos que, na problemática da escolha amorosa, se interpõem duas classes de questões. A primeira delas é a vertente edipiana, que fornece um roteiro de fantasias e desejos, além de interdições que se impõem para a escolha objetos aptos e não aptos para exercer a tendência sensual desenvolvida na puberdade. A segunda delas é que apenas a trama edipiana que tornou o objeto originário impossível de ser acessado pela corrente sensual, e sim a própria pulsão que parece nunca alcançar seu objeto. E todo aquele que se interponha guardará uma insuficiência. Isto é, não é apenas o objeto que foi interditado, mas o gozo em si. A fantasia tentaria reconstruir uma relação do sujeito com o objeto, com a função de velar a falta de objeto e recuperar aquela primeira experiência de satisfação.

 

A divisão do sujeito no Mito individual do neurótico

Na introdução deste artigo abordamos um trecho de Lacan ([1954] 1985) em O mito individual do neurótico. Embora pareça partir do mesmo problema enfrentado por Freud nos ensaios de sua psicologia do amor, Lacan o coloca em novos termos.

Lacan ([1954] 1985) se pergunta por que diante daquelas situações em que o neurótico precisa assumir o seu "próprio papel" algo se passa do lado do objeto. O objeto se desdobra e, assim, o sujeito se divide entre aquele objeto anulado, desvalorizado e um novo objeto de caráter particular.

Essa característica, aliás, é comum nos neuróticos obsessivos-desvalorizar aqueles que lhe são mais próximos, a partir do momento em que esse novo objeto se interpõe. É o caso da infidelidade constante do obsessivo, que se refere não à companheira, mas à infidelidade diante do seu desejo. A partir dessa divisão, ele já não sabe mais o que deseja, não sabe mais se deseja. Para entendermos melhor o que se passa nessa divisão da neurose obsessiva, apresentamos os comentários de Lacan a respeito do Homem dos Ratos e de Goethe.

O Homem dos Ratos é um caso atendido por Freud em 1907, uma neurose obsessiva em que é possível notar todas as características mais vulgares: a agressividade, a fixação pulsional, as metáforas anais, as ideias obsessivas, os roteiros impossíveis, etc.

Após ouvir o relato de uma tortura, o paciente começou a ter medo de que essa tortura pudesse um dia atingir as pessoas que ele mais amava: a mulher pobre carente, à qual ele dedicava seu amor e ao pai morto. Outro efeito é a impossibilidade em que se encontrava de conseguir pagar uma dívida, não por falta de dinheiro, mas por alguns pensamentos obsessivos que o invadiam ao pensar em realizar essa tarefa.

O comentário de Lacan ([1954] 1985) retoma a surpresa de Freud ao notar que, enquanto relatava seu sofrimento, o paciente intercalava histórias de sua vida familiar, "a constelação original" em que estava inserido, por exemplo, o motivo que levou seus pais a se casarem. O que espanta o psicanalista é que essas histórias familiares tinham uma relação precisa com o que era mais próprio do paciente, mais fantasioso, contingente e específico. Seu roteiro obsessivo era uma recriação de seu roteiro de vida.

O paciente contava que seu pai havia estado na sua juventude dividido entre duas mulheres: a de um casamento arranjado que lhe daria prestígio e uma moça pobre que ele amava. Contava ainda que seu pai tinha um amigo que o havia salvado de uma dívida que o colocara em risco de vida. Apesar da semelhança com seus impasses, o Homem dos Ratos não vincula nada disso com sua história.

Chama-nos a atenção que a neurose se desencadeia justamente quando o pai o impele a se casar com uma mulher rica, isto é, cumprir o mesmo destino que havia sido o dele. A neurose parecia cumprir alguma função frente a esse desígnio: agir como se fosse o pai (criar uma dívida impagável o impede de se aproximar do seu real objeto de amor) para desposar uma mulher com traços da mãe.

Mas o que Lacan ([1954] 1985) faz questão de apontar não é a semelhança entre as histórias, e sim o fato de que a história atual do sujeito de alguma forma modifica a história precedente em "uma certa tendência". Segundo Lacan ([1954] 1985), essa tendência parece ser a do desejo "tantalizante" do Homem dos Ratos. Refere-se ao mito de Tântalo, aquele que ousou desafiar a onisciência dos deuses e acabou sendo castigado a nunca mais conseguir satisfazer suas necessidades. Quando ia buscar um fruto na árvore, as árvores se afastavam; quando ia beber água, a água se dissolvia em suas mãos.

Notamos nesse exemplo mitológico que falar de desejo tantalizante é falar de um desejo que tenta ir além do Outro e se condena a nunca conseguir acessar seu objeto. Freud havia notado a necessidade de um terceiro para que haja o desejo na escolha de objeto.

Mas agora podemos acrescentar com Rinaldi (2003) que a divisão no nível do objeto operada pelo sujeito é parte de uma trama em que se busca anular o desejo em si reduzindo-o à demanda de uma imagem de si "ele/ela quer que eu seja isso, então serei" e destruindo o Outro, a inserção simbólica que fornece condições para a escolha.

Na história de Goethe, Lacan localizará um problema semelhante àquele da degradação amorosa nos neuróticos obsessivos, que acabam por se dividir entre dois objetos de desejo. Nesse caso, a divisão operada se dá não no nível do objeto, mas no próprio sujeito:

Se, por outro lado, numa outra fase de sua vida, o sujeito faz um esforço para reencontrar a unidade de sua sensibilidade, é então na outra extremidade da cadeia, na assunção de sua própria função social e de sua própria virilidade - já que escolhi o caso de um homem - que ele vê aparecer a seu lado um personagem com o qual ele também tem uma relação narcísica enquanto relação mortal. É a este que ele delega o encargo de representá-lo no mundo e de viver em seu lugar. Não é verdadeiramente ele - ele se sente excluído, fora de sua própria vivência, não pode assumir as particularidades e as contingências dela, ele se sente desajustado à sua existência, e o impasse reproduz-se. (Lacan, [1952] 1985, p. 15).

Em outras palavras, o próprio sujeito se desdobra. Sente-se infiel a ele mesmo. Uma farsa, um poser, "não estou sendo verdadeiro comigo mesmo fazendo isso". Seus atos adquirem um tom burlesco, de farsa, a degradação recai não sobre o outro, mas sobre si mesmo.

A biografia de Goethe Memórias: poesia e verdade (1971) revela que o escritor em sua infância se apaixonou por uma moça chamada Lucinda, mas por intempéries, após atender a demanda da irmã dela que o obrigava a terminar, recebeu uma maldição de sua amada: "malditos sejam esses lábios para sempre. Que a desgraça recaia sobre a primeira que deles receber a homenagem". (Lacan, 1952, p. 32).

O adolescente Goethe acolhe essa interdição de uma forma que se vê impossibilitado em todos os seus empreendimentos amorosos futuros (vemos operando aqui uma interdição, não no nível tradicional do Édipo).

Lacan detalha essa passagem da biografia. Com 22 anos, em Estrasburgo, o escritor ficou sabendo da chegada de uma família nova nas redondezas, a família do Pastor Brion, e com alguns colegas foi fazer uma visita como anfitrião. Todavia, antes dessa viagem, tomou algumas precauções: sentiu-se na necessidade de ir disfarçado. Afinal, ele era Goethe, e suas roupas eram demais abastadas, ficaria na cara que era filho de burgueses, e queria passar outra impressão. Então disfarçou-se de estudante de teologia, malvestido.

Disfarçado com essa nova roupagem, acabou conhecendo Frederica Brion, paixão repentina, rápida, que se perpetuou por muito tempo em sua vida. Ele se envolveu com essa moça que o fez sentir que pela primeira vez conseguira superar a interdição daquela primeira namorada, e ficou inebriado pela possibilidade do triunfo, por sentir que finalmente algo mais forte que aquela maldição poderia libertá-lo.

Não obstante, nos alerta Lacan, quando volta a Estrasburgo, Goethe foi tomado por um sentimento de ter sido indelicado com aquela hospitalidade encantadora, por ter se vestido mal. Decidiu, então, fazer uma nova viagem e, longe de pôr em execução seu desejo, coisa curiosa, se disfarçou novamente! Pediu emprestada a um rapaz da estalagem uma roupa que o fez mais estranho e discordante que a primeira vez, inclusive na fantasia, agora um rosto pintado, e levava tudo aquilo como uma grande brincadeira. Voltou disfarçado de uma maneira ainda mais "baixa"; em outras palavras ele se fez de palhaço. Nessa nova visita, afirmou em sua biografia que levou um bolo em celebração ao Pastor Brion.

Algumas coisas chamam a atenção de Lacan nesse relato. A primeira delas obviamente é o disfarce frente ao objeto de amor. A segunda é que Goethe abandonou essa paixão pouco tempo depois, apesar de tê-la nutrido durante muitos anos e escrito sobre ela. A terceira é que historiadores concluíram que nunca houve um batizado local naquela época, apontando para Lacan que a entrega desse bolo poderia ter sido uma construção fictícia de Goethe. Para Lacan, essa fantasia da entrega do bolo implica que Goethe se especifica ali não como o pai "verdadeiro", mas como o lugar de "suboficial", aquele que vem de fora, que entrega algo de valor para o senhor legítimo da cerimônia.

Goethe age dessa maneira por não se sentir legítimo para alcançar aquele amor. Ele se desprestigia, não está à altura do "pai", homem indicado para aquela mulher. Para isso, cria um outro de si mesmo, um "Goethe substituto", um palhaço, sobre o qual pode se precaver das risadas.

Enquanto o Homem dos Ratos, frente a seu objeto de amor, age de acordo com a roupagem oferecida pela imagem paterna em seu sintoma, Goethe veste e se desveste da imagem de si mesmo e não está à altura da imagem necessária para atingir seu objeto. Ambos se protegem do desejo se refugiando num descompasso com a imagem.

 

Conclusão

Esses exemplos nos evidenciaram que a escolha amorosa é um campo de impasses que, em analogia com o que foi discutido por Miller em sua conferência Uma conversa sobre o amor, impõe uma problemática a ser explorada no mínimo em três vias:

• o simbólico, fundamentado no mito de Édipo e nas estruturas elementares do parentesco, que fornecem um roteiro a ser seguido nessa escolha;

• um viés imaginário, no qual as imagens ganham e se tornam indispensáveis para a comédia dos sexos;

• um aspecto real, que busca assegurar um gozo, uma forma de gozar.

As mesmas condições impostas pelo neurótico na eleição de seus objetos de amor se fazem presentes no momento em que ele escolhe um analista. As considerações trabalhadas neste artigo são de suma importância para a compreensão do amor de transferência e do desenlace de uma análise. O analista ocupará certos lugares nessa trama edipiana, servirá de imagem no jogo de máscaras e será convocado a uma forma de gozo pelo paciente.

Vale ressaltar que o analista opera até mesmo do lugar que provoca efeitos muito semelhantes aos aqui estudados: divisão do sujeito, sentimento de incômodo com a imagem de si, amor. Mas a relação que se estabelece com o analista parece ser a chance que o analisando possui de não estar refém das tramas de sua escolha, das repetições incessantes de seu fracasso no amor, mas de poder construir uma nova forma de relação com o outro da qual possa se autorizar por si mesmo. Isso é não uma ode à independência, mas uma forma de conquistar uma liberdade dos impasses que o protegiam do seu desejo e das suas invenções.φ

 

Referências

FREUD, S. Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa (contribuciones a la psicología del amor, II) (1912). In: ______. Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo Da Vinci, y otras obras (1910). Traducción: José Luis Etcheverry. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2002. p. 169-185. (Obras completas, XI).         [ Links ]

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GOETHE, J. W. Memórias: poesia e verdade. Porto Alegre, RS: Globo, 1971.         [ Links ]

LACAN, J. El mito individual del neurótico: intervenciones y textos (1952). Buenos Aires: Manantial, 1985.         [ Links ]

MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Tradução: Marcia Mello de Lima. Opção Lacaniana online, nova série, São Paulo, SP ano 1, n. 2, jul. 2010. ISSN 2177-2673. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2/ Uma_conversa_sobre_o_amor.pdf. Acesso em: 05 jan. 2017.         [ Links ]

RINALDI, D. A dinâmica da neurose obsessiva e os impasses no campo do desejo: o trajeto de uma análise. Psychê, São Paulo, SP v. VII, n. 12, p. 65-70, jul./dez. 2003. Disponível em: http://www. redalyc.org/articulo.oa?id=30701205. Acesso em: 05 jan. 2017.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 17/02/2021
Aprovado em: 16/04/2021

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