...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
FERNANDO PESSOA
Abrimos a Reverso dando continuidade à homenagem póstuma a nossa querida e sempre lembrada colega do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, a psiquiatra e psicanalista isabela Santoro Campanário, falecida em maio de 2021, vítima da covid-19, e mãe de André e Antônio. na edição atual, publicamos o texto inédito - Você não sabe nem como faz uma menina? - resultado de um atendimento clínico.
A questão da verdade é um dos aspectos mais polêmicos na psicanálise. Freud interessou-se tanto sobre a verdade da teoria psicanalítica, isto é, pela validade da psicanálise, quanto pela verdade do sujeito como elemento transformador no trabalho analítico. uma modificação psíquica só pode ser empreendida quando a verdade do sujeito é alcançada. Entretanto, que realidade sustenta a verdade do sujeito: a factual ou a psíquica? E a verdade construída a partir daí? É histórica ou material? Ainda que, em um primeiro momento, Freud procurasse a verdade material, apoiada na realidade dos fatos, aos poucos, ele é levado a abandonar a verdade material em prol da realidade psíquica. A fantasia passa a ser igualada à realidade material em detrimento da concretude da cena, fazendo com que, no mundo das neuroses, “a realidade psíquica é a realidade decisiva” (Freud, 1917). Porém, o peso da realidade material nunca é, de fato, abandonado: a humanidade guarda seu “acervo filogenético” através do qual nos conectamos “com a experiência primeva naqueles pontos nos quais [nossa] própria experiência foi demasiado rudimentar” (Freud, 1917).
Fazem parte da verdade histórica, que Freud procura no tratamento analítico, os eventos da realidade material acrescidos das defesas contra os desejos presentes na construção dessa realidade: a verdade individual do sujeito produz o mito individual do neurótico. não por acaso “a verdade tem, por assim dizer, uma estrutura de ficção” (Lacan, 1956-1957).
Ao procurarmos a verdade, jamais alcançamos a verdade última, isto é, o Real do mito: o antes, quando não havia nem falta e, por conseguinte, nem sujeito. Estamos no espaço virtual do inconsciente no qual, tal como Don Quixote, deambulamos no universo de Erasmo onde qualquer verdade é suspeita, e tudo banha na incerteza.
Mobilizados pela “teorização flutuante”, como escreve Piera Aulagnier, tentamos dar sentido ao que escutamos e teorizar aquilo que não pode ser simbolizado.
A Reverso n. 83 mostra as incidências simbólicas das inúmeras tentativas de aproximação da verdade, seja na perspectiva teórica, seja na perspectiva clínica.
Autor convidado
Em entrevista concedida a Guillaume Lamy, Élisabeth Roudinesco nos fala sobre Gênero, raça e vitimização. no texto, a autora discorre sobre seu último ensaio: Soi-même comme um roi [Si mesmo como um rei], no qual critica as “derivas identitárias” atuais. Segundo Roudinesco, tais movimentos dissiparam os engajamentos emancipatórios de outrora, o que pode levar a uma espécie de “autodestruição” da sociedade como um todo.
Psicanálise e atualidade
Sem perder a seriedade do tema e a gravidade do momento, Maria Auxiliadora Toledo Garcia nos brinda, com uma escrita agradável à leitura, com o texto “O dia em que a Terra parou”: o dia em que o Círculo parou! o artigo traz um registro histórico-crítico dos desdobramentos da pandemia no CPMG em 2020.
Anderson de Souza Sant’Anna e Jaqueline Ferreira em O mal-estar no (pós-)trabalho nos mostram o quanto a insistência na noção de felicidade traz o risco de centrar o Mal-estar na cultura na “era pós-trabalho”.
Com uma abordagem instigante, Ariel Campos Pinto, Wilson Camilo Chaves e Elizabeth Fátima Teodoro em A identificação melancólica com o produto do trabalho: um mal-estar na cultura apresentam uma reflexão sobre o imperativo contemporâneo do trabalho e seu efeito sobre a formação dos indivíduos na cultura capitalista.
Encontramos uma pertinente discussão sobre O lugar da infância nas políticas públicas brasileiras - uma interlocução com a psicanálise, de Luiz Felipe Gomide Ribeiro. o autor nos mostra que, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tenha sido um instrumento de peso, ele não reconhece a sua condição de sujeito nas políticas públicas.
Abordando o tema atual da pandemia, Felipe Cordeiro Alves, Janilton Gabriel de Souza, Júlia Roberta de oliveira Carvalho Caetano e Patrícia da Silva Gomes discutem em Ao vírus, a peste: uma continuidade possível da clínica psicanalítica no contexto da pandemia, a viabilidade da clínica psicanalítica em tempos de isolamento e restrições, assim como as modificações transferenciais necessárias a essa nova realidade.
Clínica psicanalítica
Em Estratégias da neurose obsessiva nos “homens-ratos” contemporâneos, Audrey Gonçalves de Castro discorre sobre como a falsa “liberdade de escolha” traduz novas formas de gozo do sujeito contemporâneo.
João Eduardo Torrecillas Sartori e Paulo Roberto Ceccarelli em “Três ensaios” (1905), de Freud: entre o potencial subversivo da noção de perverso-polimorfismo e a implícita reiteração de normatividades, sugerem que com todo o potencial subversivo da teoria freudiana, essa subversividade é desconsiderada em reiteradas normatizações constitutivas da matriz freudiana.
Em uma reflexão centrada na clínica discute-se A importância da entrevista inicial para a formação do vínculo analítico. Pensando a entrevista inicial como ponto de ancoragem do processo psicanalítico, o trabalho de Renata Franco Leite discorre sobre os principais aspectos dessa entrevista na formação do vínculo analítico.
Psicanálise e literatura
As relações entre literatura de psicanálise ganham força com o trabalho de Elizabeth Fátima Teodoro e Wilson Camilo Chaves: A história de “O”: do destino possível de uma fantasia à invenção de si como sujeito de desejo. Trata-se de uma investigação, com base
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analítica, do famoso romance A história de “O” e a fantasia que a permite de posicionarse como sujeito de desejo.
Bernardo Maranhão, em Estilo, gaio saber e final de análise, discorre sobre alguns estilos de Lacan destacando a pertinência da gaia ciência entre as formas do discurso lacaniano.
Em Psicanálise e cinema: fantasia, desejo, trauma e ficção, Mardem Leandro Silva, helena de Almeida Cardoso Caversan, Elizabeth Fátima Teodoro e Daniela Paula do Couto discutem, através de uma investigação teórica, as relações entre psicanálise e cinema, mediante aproximações entre fantasia, desejo, trauma e ficção, frente ao encontro traumático com o real.
Agradeço aos colegas da comissão de Publicação da revista Reverso sob a coordenação atenta e dedicada de Maria Mazzarello Cotta Ribeiro. Além dela, contamos com as colegas Ana Boczar, Eliana Rodrigues Pereira Mendes e Marília Brandão Lemos de Morais Kallas, e o colega Carlos Antônio Andrade Mello, além de nós mesmos. Agradecemos também a primorosa e cuidada revisão dos textos feita por Dila Bragança de Mendonça, assim como à secretária do CPMG Adriana Dias Bastos e à bibliotecária Marta Aparecida Almeida e Almeida. Agradecemos igualmente ao valdinei do Carmo, pelo projeto gráfico e diagramação. A aquarela Arrastão, de Thiago Rodrigues Pereira Mendes, ilustra a capa de nossa revista. A ele nosso muito obrigado.
Enfim, a Reverso só é possível graças à contribuição dos autores que nos brindaram com indagações teórico-clínicas, e aos nossos leitores. Agradecemos a todos e a todas pelo carinho e pelo compromisso.
Paulo Roberto Ceccarelli