Lyon Capitale: Houve inicialmente a crise sanitária, logo haverá a crise econômica. Há o risco de uma crise política. Assistimos hoje a uma crise identitária?
Élisabeth Roudinesco: Perfeitamente. Essa crise identitária cresceu progressivamente um pouco em todo o mundo. Há aquela da extrema direita, que não considero como uma deriva, porque martela desde sempre o mesmo discurso, com umas poucas variantes - terror da alteridade, medo da “grande substituição”, ódio ao presente, fetichização de um passado fantasiado. E há aquela, muito mais minoritária mas particularmente eminente, ligada aos movimentos de emancipação feministas e das minorias que se voltaram para um redobramento identitário e a recusa do outro.
L.C.: A que remete esse termo “identitário”?
É.R.: Ele remete ao fato de que os engajamentos políticos, digamos, em favor de uma mudança do mundo social, sofreram uma derrocada após a queda do muro de Berlim. Em vista do fracasso do comunismo, essas políticas identitárias, reclamadas por esses movimentos de emancipação nascidos nos Estados Unidos, afastaram-se da análise marxista para se polarizarem sobre reivindicações mais pessoais. Enquanto fosse necessário, era preciso levar adiante uma batalha contra o racismo, em favor das mulheres. Os movimentos de esquerda ligados às políticas identitárias estão em busca de um novo modelo de sociedade respeitosa das diferenças, zelosa da igualdade, do bem-estar e do cuidado. Ecologistas e favoráveis à causa dos mais frágeis, à proteção da natureza, das minorias oprimidas, esses movimentos frequentemente generosos querem “reparar” o mundo e, para tanto, denunciam as injustiças, as guerras coloniais e o racismo, o que está muito bem. Mas, através de uma virada progressiva, alguns entre eles se puseram na posição de advogados de um narcisismo das pequenas diferenças, a ponto de se fecharem na lógica mortífera do camaleão.
L.C.: Você utiliza o deboche para se referir ao “falar obscuro” dessa infinidade de estudos e pesquisas sobre a discriminação que recorrem à chave de leitura da “raça”...
É.R.: Atenção, eu explicito em meu ensaio que os cursos pós-colonialistas existem em todas as universidades francesas, assim como os estudos de gênero, mas eles são minoritários. Assim, entre 2014 e 2019, 665 teses foram voltadas a esses assuntos, em um conjunto de 40.453, o que representa menos de 2%. Para responder à sua questão, o “falar obscuro” - termo tomado de empréstimo de Montaigne: “o falar obscuro, ambíguo e fantástico do jargão profético” - quer dizer bem aquilo que ele diz: é um jargão desse teor, e eu o distingo dos textos herméticos. Esse falar obscuro permite dizer tudo e o seu contrário. Foi a fabricação de um vocabulário do “entre si” que permitiu a cada um colocar em primeiro plano sua “posicionalidade” subjetiva: raça, origem, gênero, vivências de vitimização, genealogia, orientação sexual etc. As proposições que esse falar exprime são tão rocambolescas que não se entende mais nada. O problema com esse tipo de invenção de linguagem é que não se pode jamais criticar sem que aquele a quem se critica lhe diga que você não entendeu. Essa é uma maneira de tornar impossível o contraditório no debate fora de um circuito muito restrito. Eu diria de bom grado que a obscuridade de que se trata nesse falar obscuro é inversamente proporcional à profundidade e à pertinência do pensamento.
L.C.: Seria preciso quase um método de interpretação para compreender essa nova linguagem...
É.R.: Sim, sem contar que depois dos prefixos - trans, hetero, homo, inter, pós etc. -, foi a vez de os sufixos se imporem no coração de uma visão sempre mais descentrada de um Ocidente que era preciso “desocidentalizar”. Daí a sistematização das fobias. Na origem, phobos designa uma simples aversão desarrazoada que se opõe a philos. No par philos-phobos, alinham-se termos que se impuseram de longa data: por exemplo, francófilo/ francófobo, judeófilo/judeófobo etc. Mas o emprego forte desse par de sufixos vem do vocabulário da psiquiatria, porque o termo “fobia” designa naquele contexto uma verdadeira patologia cujo catálogo não cessa de se ampliar. É nessa lista confusa que os adeptos das políticas identitárias se inspiram para identificar todos os inimigos suscetíveis de discriminá-los ou ofendê-los: homofóbicos, transfóbicos, negrofóbicos, nanofóbicos, lesbofóbicos, suburbiofóbicos (os que odeiam os suburbanos)2 etc.
L.C.: A escrita inclusiva é também uma deriva identitária.
É.R.: Sim, é uma deriva identitária. Mas a escrita inclusiva não tem nada a ver com a feminização das palavras pela simples razão de que a língua se modifica sem que tenhamos consciência disso. A feminização das palavras é inelutável. O que acontecerá é que serão excluídos os abusos: dizemos “a senhora presidenta”, mas em alguns outros casos preferiremos um neologismo feminino a outro.3 E associar “matrimônio” a “patrimônio” é ridículo.
L.C.: Por que as palavras “raça” e “racializado” se tornaram centrais nos estudos colonialistas?
É.R.: Os identitários mais exagerados terminaram por atacar Aimé Césaire e Frantz Fanon, os dois grandes anticolonialistas. O primeiro havia enobrecido a palavra nègre [negro] para retirá-la dos porões da escravidão. Em nenhum caso a negritude remetia, a seus olhos, a uma designação identitária. Ora, os decolonialistas restauram a raça ao rejeitar o termo nègre. Porque eles querem categorias. A partir do momento em que não há raça, o que foi cientificamente demonstrado desde a contribuição de Claude Lévi-Strauss de 1952 em um relatório solicitado pela Unesco, a noção só foi utilizada para que se a estudasse. Recusá-la era uma potente contribuição ao anticolonialismo. Ora, a postura vitimista que consiste em dizer “sou racializado” não é senão a recondução de um racismo mascarado, uma vez que a vítima se coloca em posição de ser vítima do racismo no próprio ato de se autodesignar como pertencente a uma raça. Dito de outro modo, a pessoa que se diz “racializada” só faz aceitar o fato de pertencer a uma pretensa “raça” para se inscrever em um processo de vitimização. Dizer-se racializado é, finalmente, aceitar o racismo. Além disso, não se deve de maneira alguma revisar o vocabulário antigo de modo a suprimir as palavras da literatura: seria necessário então censurar a quase totalidade dos textos que utilizam a palavra “raça”. Inclusive aqueles que criticam a noção.
L.C.: É o discurso dos Indígenas da República...
É.R.: Exatamente. Os Indígenas da República reivindicam um lugar de “vítimas da República”. Em um ensaio publicado em 2016, verdadeiro breviário do indigenismo antirrepublicano e identitário, uma de suas fundadoras, Houria Bouteldja, instituindo um separatismo radical entre o que ela chamava os Brancos e os Judeus de um lado (designados pelo pronome “Vous”) e os Indígenas do outro (chamados “Nous”). Não chegaríamos a terminar de enumerar as proposições loucas desse trabalho em que são retomados ad nauseam os estereótipos do ódio ao outro e do separatismo entre as raças: contra as mulheres negras que não devem registrar queixa contra os violadores negros, contra os homossexuais tratados como “bichas”,4 contra os judeus etc. Contra as luzes de uma emancipação que ela caracteriza como maldita, Bouteldja opõe então um ego vitimista e um retorno fantasiado a uma imaginária raça negro-árabe que não tem mais nada a ver com a cultura da negritude cara a Aimé Césaire. Em face do racismo posto em ação pelas potências ocidentais, caberia então aos Indígenas da República inventar um racismo da estima de si, um racismo protetor em prol da “não miscigenação racial”, o princípio hierárquico segundo o qual um “Branco”, qualquer que seja, deveria ser banido de toda experiência de vida com os Negros, porque em essência todo homem branco seria um “dominante”.
L.C.: Você disse há pouco que assistimos a uma escalada progressiva da crise identitária dos movimentos de emancipação feministas e das minorias que derivaram para um redobramento identitário e para a recusa do outro. Transformam-se os carrascos em vítimas e as vítimas em assassinos?
É.R.: Eu não chegaria a esse extremo, porque os Negros foram realmente as vítimas e sempre há restos de colonialismo na sociedade. O que eu contesto é que não há racismo sistêmico no nível das nossas instituições. Sou, ao mesmo tempo, muito favorável a uma história memorial em que os historiadores agora não façam nem hagiografia nem contra-hagiografia.
L.C.: Temos a impressão de que a leitura da história é guiada pela emoção...
É.R.: Sim, é verdade. Estamos efetivamente em uma sociedade das emoções, das redes sociais e do individualismo, totalmente. Aliás, um pouco demais. E isso não é bom.
L.C.: Qual é o risco?
É.R.: Se a história é guiada pela emoção e sobretudo pela simples subjetividade de alguém que viveu alguma coisa, ela é aquilo que chamamos de testemunho: “Eu fui pessoalmente vítima de alguma coisa”. Isso não quer dizer que se trata da verdade histórica em seu conjunto. O testemunho tem um estatuto muito preciso em história. É preciso levá-lo em conta. Mas ele não pode suplantar a análise dos textos e a pesquisa arquivística. Ora, em nossa sociedade de redes sociais, quando há um testemunho de uma vítima, isso insinua que o Estado em seu conjunto é racista, isto é, estende-se uma verdade subjetiva ao conjunto do Estado.
L.C.: Qual é o perigo de apagar as marcas da história, por exemplo, quando estátuas são retiradas em nome da luta contra o racismo?
É.R.: Não há nem risco nem perigo porque estamos em uma democracia. Não funciona. As estátuas que foram “retiradas” serão recolocadas. É possível retirar certas estátuas - por que não? - ou desbatizar ruas, mas cabe ao Estado decidir. No entanto, quando se “retira”, como se diz, Vitor Hugo, Napoleão ou Churchill, é simplesmente ridículo. Existem duas maneiras de retirar as estátuas: as crises políticas, as situações de insurreição e os momentos de mudança de soberania, como, por exemplo, no mundo árabe, em que, sob o efeito de um impulso da massa, derrubam-se as estátuas dos ditadores, é um momento revolucionário que sempre existiu. E então há uma segunda coisa: não vivemos hoje uma revolução, estamos numa democracia. E não se derrubam as estátuas.
L.C.: Em Lyon, em um documento de apresentação de seu programa eleitoral, os candidatos ecologistas tinham suprimido as cruzes das igrejas da cidade. Pode-se falar em deriva identitária?
É.R.: São ridículos. Absolutamente ridículos.
L.C.: O chefe de Estado tem razão de estar vigilante em vista da deriva identitária do antirracismo?
É.R.: Sim, mas com a condição de que não telefone ao Sr. [Éric] Zemmour para reclamar de ter sido vítima de qualquer coisa. Não se pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
L.C.: Dez dias após a eleição de Donald Trump, o historiador americano Mark Lilla publicou um artigo no New York Times. Ele dizia a respeito da esquerda americana que ela havia “cedido, acerca das identidades étnicas, de gênero e de sexualidade, a uma espécie de histeria coletiva que havia distorcido uma mensagem a ponto de impedi-la de se tornar uma força federativa capaz de governar”. Pode-se dizer o mesmo da esquerda francesa?
É.R.: Não creio que a esquerda francesa em seu conjunto tenha cedido a isso. Uma parte da esquerda sim, e a prova é que fui atacada por associações e ainda tratada de racista. Não sou favorável aos extremistas desse lado e sobretudo não sou favorável às proibições de espetáculos. E do lado das questões de gênero, é preciso debater os tratamentos ditos de “transição” para crianças em idade pré-púbere que acabam de ser proibidas no Reino Unido para menores de 16 anos. Eu penso que não se pode exibir as crianças. Sou favorável à nova lei que diz que não se consente com nada antes dos 15 anos.
L.C.: Emmanuel Macron tem razão de dizer que os universitários encorajaram a etnização da questão social?
É.R.: Penso que não. Não vou criticar aqui Emmanuel Macron. Em contrapartida, critico o ministro da educação nacional, o Sr. Blanquer, e a ministra do Ensino Superior, Sra. Vidal, que fizeram afirmações assombrosas sobre os universitários. Esse não é o papel deles.
L.C.: O cientista político Gilles Kepel, embora não pareça estar de acordo quanto aos termos, julgou que o debate mereceria ser conduzido não tanto no “islamo-esquerdismo” quanto no desvio militante do ensino e da pesquisa. O que você pensa sobre isso?
É.R.: Não penso que haja um desvio do ensino e da pesquisa. Como eu disse, os estudos de gênero e os cursos pós-colonialistas na França representam apenas 2%. É preciso colocar tudo isso em debate. Sem insultos, sem declarações retumbantes. O termo “islamo-esquerdismo” dá a entender que há em todo esquerdista um terrorista pronto a assassinar um professor. Por outro lado, há o islamismo, um retorno do pior do lado do obscurantismo.
L.C.: Logo em seguida à sua posse, o ministro do interior, Gérard Collomb, alertou: “Hoje em dia, vivemos lado a lado. Eu sempre digo: tenho medo de que amanhã vivamos face a face”. A culpa disso seria das derivas identitárias?
Eu não aprovo afirmações como essa. Não vale a pena atiçar as pessoas.
L.C.: No IEP de Grenoble, acusações de racismo contra dois professores do estabelecimento foram afixadas nas paredes. Retorna-se à “proscrição” romana, a afixação pública do nome de uma vítima proscrita, ou seja, excluída da cidade. Um passo para trás?
É.R.: Tudo isso é ridículo. Evidentemente existem problemas, mas eu creio que é preciso trazer de volta a serenidade aos locais de ensino. Agora, há um outro empecilho: vemos muitos professores do ensino secundário que têm medo de ensinar, e eles têm bons motivos para tanto. Sou a favor de manter os pais o mais afastados possível. É muito bom que haja associações de pais de alunos, mas não são eles que dirigem a escola. Quando eles vêm reclamar a um diretor, este deve em princípio apoiar o professor e fazer reinar a paz.
L.C.: Finalmente, é identidade contra identidade...
É.R.: Sim, e isso atravessa nossa época.
L.C.: Qual é o antídoto contra essas “neuroses” identitárias?
É.R.: Quem dera eu soubesse. A única solução para essas neuroses indefinidamente desconstruídas seria a renúncia ao apagamento das diferenças, bem como a renúncia à revalorização arbitrária de uma ordem virilista e unificada já agonizante. Ora, não é esse o caso. Não apresento soluções em meu ensaio, mas, logicamente, estamos mudando o mundo, isso é absolutamente certo. A verdadeira crise é uma crise generalizada dos engajamentos emancipatórios, ligados ao fracasso do comunismo real. Há vários pontos. A descristianização é um verdadeiro problema. Não é apenas uma perda de crença e de engajamento, mas de identidade cultural. Então, precisamente na medida em que a fé clássica e o engajamento religioso desaparecem, na medida em que o engajamento progressista em prol de um outro mundo desaparece, tem-se uma dobra sobre si automática, isto é, esse individualismo, esse narcisismo. Há então um verdadeiro problema que é o engajamento coletivo.
CL: O narcisismo é o que reflete o nome de seu ensaio. Si mesmo como um rei...
É.R.: Pensei logo no livro de Paul Ricœur, lançado em 1990, O si mesmo como outro. Mas foi meu editor, Olivier Bétourné, que encontrou o título. Em trinta anos, passamos do si mesmo com um outro ao si mesmo como um rei. Nesse passo, a desconfiança contra a psicanálise, a multiplicação das terapias etc. têm um papel importante. Dissolvemos a ideia de subjetividade. Não há nada pior do que o si mesmo como um rei, é o reino do princípio do prazer, só existe o eu que é reivindicado. E a partir do momento em que cada um se toma por um rei, isso se torna autodestrutivo para a sociedade em seu conjunto.