Para quem não sabe, não sei se são muitos ou poucos, só sei que saber sobre isso é bem específico, pois diz de um pertencimento a uma “tribo”, mas a primeira parte do título dado a esse trabalho nomeia uma das muitas músicas de Raul Seixas. Premida por nomear minha fala nesta jornada, madrugada dessas, para variar, acordei, cantando este refrão: “o dia em que a Terra parou”.2 Repeti, repeti em busca do sono para em seguida completar com a frase seguinte: o dia em que o Círculo parou! Entendi o recado!
Mal sabiam Raul Seixas e Cláudio Roberto que com essa música estavam fazendo certa previsão do futuro que ora vivemos. Vou trazer-lhes alguns de seus versos:
Essa noite
Eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei Com o dia em que a Terra parou
Com o dia em que a Terra parou
Foi assim
No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado, em todo o planeta
Naquele dia ninguém saiu de casa
Ninguém
[...]
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia, o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
E estamos nós aqui cumprindo, de certa forma, a profecia do “maluco beleza”, já podendo recolher algumas consequências desse tempo nefasto, inúmeras, muito ruins e imutáveis, mais de 600.000 mortes, outras que, num processo, vão se modificando e direcionarão nossos caminhos pessoais, institucionais.
Raul, Raulzito como o chamavam, também disse: “Essa noite eu tive um sonho de sonhador/maluco que sou, acordei”. Gostaríamos muito de acordar no sentido de ver que tudo foi um sonho, um pesadelo, melhor dizendo, mas esse é o real que temos para hoje e sempre, pois nada será como antes, amanhã. E é nesse espírito que temos que continuar conduzindo a circulação do ensino, da transmissão e da pesquisa no CPMG. Tarefa nada fácil em tempos comuns. Em tempos de pandemia então!...
Raul, diante do real que o invadia, criava suas tão pertinentes letras. Pareceme que para ele os instantes de ver, compreender e concluir passavam num átimo, diferentemente de como ocorre conosco, quando, tomados pela surpresa, nos damos tempo para responder, nos colocamos a investigar, pensar.
Em meados de 2020 a gestão passada iniciava a contagem regressiva para o término de seu mandato. Contudo, para nossa surpresa, isso não foi possível e precisamos prorrogar por seis meses nosso trabalho à frente da instituição, aguardando a inscrição de nova chapa. Esse foi o nosso instante de ver, e na companhia do coronavírus (covid-19), que na sua simplicidade estrutural já tinha se instalado por estas terras dando as ordens que o resto do mundo já conhecia: pare tudo!
E naquele março de 2020 fomos forçados a fechar as portas sem um plano B para seguir em frente com o nosso trabalho na formação dos candidatos. Todos atordoados, tentando entender e achar uma saída, e com uma esperança, pois não há quem não a tenha, de que tudo passaria em pouco tempo. Mil perguntas sem respostas, embora a exigência por tê-las batesse na nossa porta. Ouvir, ouvir, ouvir para poder responder sem imediatismo. Há parâmetros, princípios que são inquestionáveis e irrevogáveis na condução de uma instituição, seja ela qual for, até mesmo numa instituição psicanalítica onde circula um saber tão peculiar, construído na singularidade. E talvez por isso mesmo seja tão necessário um certo rigor.
Reuniões recorrentes, propostas de seguir on-line e resistência nossa, da diretoria executiva: formação on-line???? Até então, on-line somente as formações de origens mais que duvidosas, que pipocam nos anúncios do Google, no Instagram, no Facebook. Até mesmo o programa Educa Mais Brasil oferece bolsa de pós-graduação em psicanálise, inclusive através do ensino à distância, em várias faculdades espalhadas pelo país. Sua propaganda: a necessidade atual de os profissionais aumentarem seus conhecimentos para atender à exigência do mercado e auferir maiores ganhos. Explica que a psicanálise é um método terapêutico cujo objetivo “é criar laço entre terapeuta e paciente, a fim de compreender os processos reprimidos pelo subconsciente, capazes de gerar sintomas como a angústia ou a ansiedade”. Informa que aprenderemos sobre psicanálise integrativa e as técnicas utilizadas: “hipnose, regressão de memória, cromoterapia, acupuntura, programação neolinguística e outras”. Informa onde e como atuar, podendo inclusive ser coaching.
Diante de ofertas dessa natureza aos borbotões, é compreensível a resistência, mesmo porque a história nos mostra que essa foi uma preocupação de Freud desde o final da Primeira Grande Guerra, quando a psicanálise, ao viver rápida expansão, viu crescer também o “charlatanismo”.
Daniel Kupermann (2020), em seu livro Transferências cruzadas, nos conta que os jornais da época veiculavam chamadas para cursos rápidos a preços baixos com projeção de ganhos maiores e traz uma citação de Élisabeth Roudinesco em História da psicanálise na França:
Quer ganhar mil libras anuais tornandose psicanalista? Podemos permitir-lhe chegar a isso. Tome oito aulas conosco por correspondência, ao preço de quatro guinéus por aula (Roudinesco, 1989, p. 136 citada por Kupermann, 2020, p. 70).
Somos uma instituição de formação com muitos candidatos a psicanalistas distribuídos por vários seminários, um corpo de coordenadores, que, com pequenas exceções, não tinha conhecimentos para lidar com a tecnologia necessária para situações como a que vivíamos. A pressão por resoluções foi grande, a oferta de soluções foi pequena. E o tempo correndo na frente. Era difícil pensar se a proposta do on-line poderia trazer uma boa experiência para todos, em todos os níveis. Sem constituir um retorno dos seminários da formação, vários coordenadores mantiveram grupos de estudos com os candidatos que frequentavam seus seminários. Enfim, o envolvimento esperado acontecia da melhor maneira possível. Assim, nesse dilema permanecemos todo o primeiro semestre. Nesse e no dilema da eleição que se aproximava.
Seguimos fazendo o possível, atentos, à espera de orientações do governo, que vieram descompassadas com a evolução da pandemia, o que nos deixou ainda mais preocupados com o nosso futuro, inclusive como sujeitos. A sociedade representada pelo corpo de coordenadores e diretoria executiva continuou a debater o que poderia ser feito para nos manter juntos, manter a psicanálise circulando. Algo que propiciasse nos tirar, membros e candidatos, do desamparo a que fomos remetidos.
Entre idas e vindas, surgiu a Linha de conversações, proposta que propiciou a ocasião para vários colegas apresentarem suas produções teóricas durante todo o resto de 2020. Momento de trocas afetivas (estávamos e estamos ainda saudosos) e de discussões que realçaram a importância de retomar ou criar encontros assim, que poderiam permitir a revisão de caminhos, para redescobrir as contribuições que cada sócio pode dar, reavivar o prazer de estar com o outro, principalmente em momento tão difícil, mesmo através da telinha. Além disso, lembrando o ditado de que a necessidade é que faz o sapo pular, a comissão criada para coordenar a Linha de conversações e os colegas inscritos para as apresentações foram levados a se familiarizar com o modo on-line de existir.
A diretoria executiva, em meio a isso tudo, decidiu por apostar numa possível volta ao presencial já no segundo semestre de 2020. Foi realizado todo um trabalho de montagem das salas considerando o número máximo de pessoas, o distanciamento recomendado e distribuímos os grupos por toda a semana, manhã e tarde, para que não houvesse aglomeração. A sede recebeu todos os aparatos necessários para nos acolher. Mas não foi possível. Retomamos, então, os seminários da formação no modo on-line a partir de setembro de 2020, com todos já mais familiarizados com essa ferramenta. Como se deu, como continua se dando, suas consequências, se foi bom ou ruim, tudo isso é material a ser recolhido ainda.
Aos poucos, o trabalho da secretária e da bibliotecária retornou ao seu devido lugar, assim como o trabalho da faxineira delicada e diligente, novamente dando vida à nossa sede. Trabalho de cuidado não só com o que é pertinente à função de cada uma, mas de cuidado com os detalhes que compõem esse que não é só um lugar físico, mas um lugar de afetos, que abriga uma longa história com a psicanálise, em que se entrelaçam subjetividades, requerendo um cuidado maior de cada um com o tempo necessário entre ouvir e dizer. Bem ouvir para bem dizer! Instituição lugar de amores e dissabores! E exemplo maior de dissabor vivido por nós foi a morte da nossa querida amiga e incansável trabalhadora da psicanálise, Isabela Santoro, que lutou bravamente contra a covid-19, mas se cansou e nos deixou no vazio.
Mancando, seguimos em frente.
Hoje, timidamente mas determinados, alguns poucos começamos a ocupar as salas do CPMG e, vejam só, com uma atividade de muita importância para uma instituição: a entrada de novo sócio! Tomando por base o cálculo já feito para ocupação das salas, abrimos a inscrição para assistir presencialmente à apresentação do candidato. Fomos em número de seis pessoas. Constatou-se ser possível o retorno ao presencial e à prática de eventos híbridos, aprendendo a tomar os cuidados necessários para que a tecnologia seja favorecedora e não impeditiva. No rastro, um grupo de estudos já se encontra presencialmente, comprovando a possibilidade do retorno conforme os protocolos estabelecidos.
Tentei em não tão breve exposição trazer os reflexos que estes maus tempos trouxeram. Se os primeiros meses se mostraram caóticos, aos poucos no caminho tateado, fomos encontrando, a instituição e cada um, uma forma de lidar com o real que se impunha. Mas como nada é sem consequência, é preciso refletir sobre o ocorrido.
Passo agora ao segundo momento proposto por esta Jornada: as reflexões. Em primeiro lugar, parto da citação sobre o charlatanismo para trazer o artigo Contribuição à história do movimento psicanalítico, em que vemos Freud ([1914] 2012) preocupado com o mau uso da sua teoria e a com a necessidade de institucionalizar a psicanálise como forma de protegê-la e transmiti-la conforme suas descobertas. Sabemos de sua satisfação em 1902 por reunir um grupo de médicos interessados no novo conhecimento e muito transferidos com ele.
Da informalidade dessas reuniões feitas em sua casa, nas noites de quartafeira, após o congresso de Nuremberg em 1910, Freud viu a necessidade de “instituir uma associação oficial, porque receava os abusos a que estaria sujeita a psicanálise tão logo atingisse a popularidade. Então haveria um centro que pudesse declarar: a psicanálise nada tem a ver com todo esse absurdo, isso não é psicanálise”. Além do mais, seria um lugar que ofertaria certa proteção aos que tomavam a defesa dela e um lugar onde se reunissem “para uma troca de ideias amistosas e para apoio mútuo” (Freud, [1914] 2012, p. 295-296).
Essa era a intenção de Freud ao criar a IPA, além de mostrar aos “adversários” sua determinação em levar o movimento adiante, um movimento que não seguiu a direção que Freud queria.
Todo o artigo, parece-me, nos traz a notícia de que institucionalizar a psicanálise se, por um lado, é para defendê-la, desde sempre, por outro lado, trouxe dissidências. A começar, segundo Freud, pela escolha equivocada de Jung para presidi-la. Jung, esse que reunia qualidades, juventude, que muito contribuiu com a causa analítica, mas que, “[...] incapaz de suportar a autoridade de outro, era tanto menos capacitado a criar uma autoridade própria, e cuja energia se voltava para a perseguição implacável dos próprios interesses”, lamenta Freud ([1914] 2012, p. 295-296).
Então, me pergunto: por que essa insistência que perdura ao longo dos anos e que coloca a instituição nesse lugar agalmático? Há sempre quem queira sair! Há sempre quem queira entrar! Isso me remete a duas questões: por que pertencer a uma instituição? Para que serve uma instituição? Para elas acho que encontro resposta no artigo A transmissão nas instituições psicanalíticas, de Eliana Rodrigues Pereira Mendes (1996, p. 14):
A meu ver, o trabalho solitário do analista, imerso numa relação assimétrica na qual tem de ouvir bem para bem dizer, é muito difícil. Ocupando um lugar-função, não pode reter ou gratificar-se com as suposições e amores que lhe são impostos. Isso torna imperiosa a busca de seus iguais não só para se balizar como profissional, mas para dividir suas inquietações.
[...]
A instituição, que deveria ser um oásis para esse mal-estar, no entanto, não o consegue ser muitas vezes. Paradoxalmente, como se tem acesso a uma outra cena, a mesma fonte de sua força e lucidez é também a fonte de sua peçonha (Mendes, 1996, p. 22).
Então, se estar numa instituição é se sentir ora num oásis, ora fora dele, me pergunto de onde vem esse desejo de pertencer explícito num pedido de entrada. E encontro no Dicionário de direitos humanos (WEB, 2012) o significado da palavra “pertencimento”, segundo Ana Lúcia Amaral, Procuradora Regional da República:
A sensação de ‘pertencimento’ significa que precisamos nos sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse tal lugar nos pertence, e que assim acreditamos que podemos interferir e, mais que tudo, que vale a pena interferir na rotina e nos rumos de tal lugar.
Será esse o sentimento a ser construído por um sujeito que busca uma instituição para estudar a psicanálise e se tornar psicanalista? Será esse o sentimento a ser revisitado pelos sócios de uma instituição?
Essa pergunta surge para mim como que para fazer uma distinção entre o ato de associar-se e o ato de praticar o pertencimento a um lugar. O pertencimento, a meu ver, fala de uma transferência com a psicanálise e com a instituição. É dinâmico, indica um contrato a ser refeito a cada vez que se percebe um arrefecimento do desejo que motivou o pedido de entrada. Justificativas para se afastar de uma instituição é que não faltam: a começar pelas pessoais, afinal estamos vivos e viver dá trabalho que permeia a vida numa instituição, num grupo.
Hoje, desde 17 de março de 2020, a pandemia tentou desatar um laço que sempre é frouxo, fazendo ressoar a pulsão de morte em cada um e no grupo. Lutos precisaram ser feitos: não mais o encontro com os colegas, o cafezinho no intervalo, a biblioteca aberta, o corredor cheio.
Diante da possibilidade da inércia presente no ato de esperar o que a instituição poderia fazer para cada um de seus sócios, penso que muitos se deixaram tocar pelo sentimento de pertencimento a ela e se colocaram a trabalho. Abriu-se, assim, um caminho para a criatividade, o que é próprio da psicanálise. Não é necessário ir longe. Esta Jornada é uma resposta à adversidade.
Poder-se-ia pensar a relação com a instituição, enquanto um lugar de formação de um analista, como algo análogo ao processo de constituição do sujeito? Análogo também ao processo de análise, no qual se vê a constituição de um sujeito em sua relação com um outro ao qual é suposto um saber?
A instituição, na pessoa do coordenador de seminário, é tomada inicialmente como o grande Outro suposto saber tudo sobre a teoria e o fazer psicanalítico. O tudo que um coordenador sabe é mérito de cada um na solidão de sua própria análise e, para isso, não há palavras. Só é transmissível no ato. Tal como o analista, um coordenador, ao não entregar o que lhe é demandado, não por um capricho, mas porque isso é impossível, permite ao iniciante encontrar dentro de si meios de lidar com o vazio provocado e construir seu próprio caminho. E isso leva tempo! Não há atalhos.
A instituição, que no início, imaginariamente, é a que vai nomear o sujeito enquanto psicanalista, garantindo-lhe um reconhecimento na sociedade, precisa apontar que há um limite, apontar para um lugar vazio a partir do qual o candidato tem a possibilidade de criar seu próprio estilo, falar em seu próprio nome. Duas situações de desamparo que se seguiram a um primeiro momento de satisfação, o qual ficou registrado, portanto não esquecido.
Alain Didier-Weill (2018, p. 117) nos diz:
É porque há continuidade entre um ato que diz sim e o ato de dizer não que a capacidade de não esquecimento do que é radicalmente esquecido, mas não foracluído, se mantém... é porque essa capacidade de não esquecimento permanece no sujeito que se mantém a possibilidade de substituir a transferência com um Outro suposto saber por uma transferência com o real que barra o Outro.
Ponto delicado esse da instituição. A imagem que me vem agora é a dessas figuras atuais que praticam o slackline. Fazem travessias no vazio, em cima de uma corda elástica. O mestre lhes ensinou a técnica, mas a lida com o real elas próprias construíram.