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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.83 Belo Horizonte ene./jun. 2022  Epub 28-Out-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n83.04 

Artigo

O mal-estar no (pós-)trabalho

THE (POST-)WORK DISCONTENT

Anderson de Souza Sant’Anna1 

Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana (ISEPOL). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Pós-doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Administração. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Jaqueline Ferreira2 

Psicanalista. Doutora em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

1Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP)

2Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana (ISEPOL)


Resumo

No universo de questões que marcam o contemporâneo, destaca-se a tônica atribuída à noção de felicidade. Considerando que se deseja o que falta, tal ênfase acaba por sintomatizar seu avesso particularmente na dimensão do trabalho, na qual o efêmero, o flexível, o descartável produzem mudanças e permanências em relação às elaborações freudianas em torno do mal-estar e da renúncia pulsional em favor do processo civilizatório. Nessa instância, a transição para a Quarta Revolução Industrial reitera aproximações entre mais-valia e mais-de-gozar, de modo a situar o mal-estar na era pós-trabalho, pelo menos enquanto categoria analítica classicamente compreendida.

Palavras-chave: Mal-estar; Trabalho; Relações de trabalho; Sociedade pós-trabalho; Quarta Revolução Industrial

Abstract

In the universe of issues that marks the contemporary, the emphasis attributed to the notion of happiness stands out. Considering that what is lacking is desired, such emphasis ends up showing its opposite, particularly in the dimension of work, in which the ephemeral, the flexible, the disposable produce changes and permanence in relation to the Freudian elaborations around malaise and instinctual renunciation. in favor of the civilizing process. In this instance, the transition to the Fourth Industrial Revolution reiterates approximations between surplusvalue and surplus-enjoyment, in order to place malaise in the post-work era, at least as an analytical category classically understood.

Keywords: Malaise; Work; Labor relations; Post-work society; Fourth Industrial Revolution

Introdução

No universo de questões que marcam o contemporâneo, um traço significativo é a tônica atribuída à noção de felicidade. Palestras, seminários, artigos e livros são continuamente publicados visando abordar formas de sua compreensão e receituários de como alcançá-la. Para as gerações anteriores, a expectativa de felicidade fundava-se em elementos materiais e simbólicos comumente associados ao adiamento de prazeres imediatos, envolvendo formação acadêmica, carreiras de longo prazo e economia para aquisição de condições materiais como requisito para a constituição de laços familiares nucleares. Na contemporaneidade, a tônica tende cada vez mais se centrar no aqui e agora, no gozo imediato e na velocidade das mutações tecnológicas, sem precedentes na história da humanidade.

Resgatar tal noção a partir da releitura de O mal-estar na civilização (Freud, [1930] 1976) permite evidenciar a atualidade e o frescor da abordagem freudiana. Em particular, seu ir além da superfície, buscando, de forma sistemática, os elementos e fatores que fundamentam e intervêm no elemento em análise. É significativo também o modo como Freud faz uso de conversações com outros campos do saber, como a antropologia, a sociologia e a mitologia, além de desenvolver modos outros de investigação, superando os cânones da ciência normal, centrados em métodos experimentais e de abordagem quantitativa. Sua ênfase no estudo de casos e na análise de objetos não verificáveis por meio do dispositivo de escuta é, por si só, um avanço indiscutível nos modos de apreensão dos constructos científicos, permitindo-lhe desvelar estratégias e táticas mobilizadas pelo humano na mediação entre os princípios de prazer e de realidade. Como resultante, amar e trabalhar emergem como formas privilegiadas de mitigação de seu efeito indesejado: a infelicidade.

Trabalho e psicanálise

Ao evidenciar seu papel significativo como fonte sublimatória - assim como a arte e o contentamento estético -, o trabalho é apresentado por Freud como conceito par excellence de mediação do mal-estar que funda a civilização. Assim, para além da extensa nota de rodapé em que insere a problemática do trabalho sob sua dimensão laboral, convém ressaltar que o constructo é amplamente utilizado na designação da teoria psicanalítica assim como da experiência clínica.

De fato, desde os primórdios da psicanálise freudiana até suas últimas elaborações, o termo “trabalho” é apresentado sob diversas aplicações: método de trabalho, trabalho de análise, trabalho de interpretação, trabalho de investigação, trabalho dos sonhos, trabalho psíquico, trabalho terapêutico, tendo como referência o modo de funcionamento da pulsão.

Em O mal-estar na civilização, Freud ([1930] 1976, p. 132) destaca que as diferentes modalidades de laço social se veem permeadas pelo mal-estar, tendose como uma de suas principais fontes as relações com os outros. Assim sendo, ao mobilizar intensa interação humana, o trabalho “[...] como caminho para a felicidade, [...] não é altamente prezado pelos homens”, sendo em grande parte articulado sob a pressão da necessidade.

Trabalho e modernidade

Em termos históricos, segundo Zajdsznajder (1993), a noção de modernidade pode ser introduzida a partir de determinadas caracterizações - o mito da tecnologia, o domínio da razão científica, a ideia de progresso, a exaltação da democracia -, que a diferencia de períodos ou fases anteriores da humanidade, como o mundo primitivo, o mundo antigo e o mundo medieval.

Já para Touraine (1994), tal noção, por suas características centrais, resulta de duas grandes correntes de pensamento: de um lado, o racionalismo grecoromano, retomado pelos humanistas da Renascença; de outro, a concepção cristã de alma, secularizada por meio da noção de sujeito. Para o autor, no entanto, durante muito tempo, a modernidade é definida apenas pela eficácia da racionalidade instrumental, ignorando o sujeito humano como liberdade e como criação. Dessa redução decorrem os fundamentos de sua crise, cuja superação - e estabelecimento de uma nova modernidade - pressupõe o resgate de sua outra metade: o sujeito.

Na cena psicanalítica, se concordarmos, uma vez mais, com a psicanálise freudiana - e, em particular, com a releitura dos textos de Freud por Lacan - segundo a qual a constituição do sujeito passa pelo Outro, não considerar as transformações que marcam as interrelações sujeitocultura significa negar a própria essência do saber psicanalítico. Não somente no campo psicanalítico, mas também no âmbito da arte, do mito, do totemismo, da religião, da filosofia e da ciência, esforços são historicamente empreendidos com vistas a decifrar as interrelações entre os principais fatores intervenientes na dinâmica civilizatória. O próprio saber psicanalítico é manifestação desse processo.

Em Psicologia de grupo e análise do eu, por exemplo, Freud ([1921] 1976, p. 91) é contundente quanto à sua visão acerca da díade indivíduo-cultura. De forma similar, a releitura lacaniana de Freud evidencia não apenas a impossibilidade de uma “clínica do sujeito sem uma clínica da civilização”, como também aprofunda considerações acerca das relações entre tais conceitos (Miller, 2005).

Apoiado em Freud, para quem parte do mal-estar humano é efeito da tarefa civilizatória de domesticação das pulsões, haja vista ninguém tender a se submeter docilmente à renúncia de parte da satisfação pulsional em prol do laço social, Lacan ([1953] 1998, p. 322), em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, afirma que um psicanalista à altura de sua tarefa de dirigir um tratamento analítico deve alcançar “em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Compete a ele conhecer a mentalidade de um dado povo, o desejo do Outro que o organiza (Lopes; Sabbá; Coelho dos santos, 2017).

Nesse sentido, uma das mais significativas contribuições de Lacan é sua teoria dos discursos, especialmente, ao propor suas modalidades como formas de enlaçamento, como aquilo que liga um sujeito ao próprio laço social (Sauret, 2009). Partindo das atividades descritas por Freud ([1930] 1976, p. 347) como impossíveis - educar, governar e psicanalisar - e acrescentando o fazer desejar (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 164), cada discurso responde a um impossível (governar ao discurso do mestre; educar ao discurso do universitário, psicanalisar ao discurso do analista e fazer desejar ao discurso da histérica).

Na medida em que tais atividades mantêm funções essenciais na civilização, a psicanálise terá sua sobrevida, insistindo em se defrontar com aquilo que emerge como resposta do sujeito aos efeitos discursivos de seu tempo, aos singulares modos de o sujeito se inscrever no laço social (Malcher, 2017).

Para Badiou e Roudinesco (2016, p. 35), o pensamento de Lacan se insere em um contexto ético-político significativo, marcado pelos acontecimentos de maio de 1968, que visa produzir uma abertura do sujeito com relação a um estado original de impotência, de opressão, que se define pela esterilização das capacidades individuais e coletivas.

Se Nietzsche (2007), ao anunciar na praça do mercado a morte de Deus, projeta-se como arauto da modernidade, Foucault (2001) anunciará sua derrocada ao proclamar a morte do “homem”, abrindo, desse modo, alas à “pósmodernidade”. Nela, os discursos do mestre e do universitário compactuamse, forjando um novo tipo de laço social marcado pelo discurso do capitalista.

A sociedade pós-trabalho

Contemporaneamente, visando antecipar os efeitos ainda imprevistos dos avanços sem precedentes da tecnociência, da automação e dos aparatos de inteligência artificial, que marcam um novo estádio da civilização, o capital (K), ao se liquefazer, concentra-se, reduzindo o humano (T) a mero consumidor, individualmente pulverizado em pequenos capitalistas (K), transvestidos de trabalhadores autônomos, empreendedores, gigs, freelancers, uma minoria ínfima da população controla - direta ou indiretamente - praticamente a totalidade da riqueza mundial. A não mais que 15% a 20% do contingente populacional cabe o papel de lhes satisfazer as necessidades e os luxos criativos e inovadores; o indivíduo trabalhador, indispensável ao consumo de massa da era fordista, não mais se configura de interesse do grande capital (K): torna-se, de fato e de direito, dispensável.

Legitimado pelo discurso do capitalista, o capital financista da alta modernidade, composto por esse 1% da população mundial, porém detentora de 80% da riqueza do planeta, intensifica sua aliança com o discurso do universitário, cada vez mais se orientando para a produção de gadgets direcionados ao mercado, para o gozo final dos primeiros. Não por acaso, uma relação que dispensa o sujeito, convertido - se tanto - em mero consumidor, em mercado (Haskel; Westlake, 2018, Dowbor, 2017; Mason, 2017).

Nesse coacervado de cultura do “novo capitalismo”, além de consumidores, competências e potenciais, como pensar nos investimentos do sujeito com o “trabalho”? Com base na noção do discurso do mestre moderno e na noção lacaniana de mais-valia, a parcela de trabalho continuamente deixa de ser contabilizada pelo capitalista.

No entanto, conforme nos recorda Miller (2006, p. 10), as grandes doutrinas materialistas, sem exceção, envolvem sempre um delta, um a-mais que excede qualquer forma de contrato. Ainda de acordo com Milner (2006), esses a-mais dos materialistas têm um nome: o insubstituível. Em Freud, tal insubstituível responde pelo nome de Das Ding; em Lacan, é o objeto a.

Cabe, ademais, detectar um eixo condutor, que se inicia com Marx, em O capital, passando, por Freud, em O malestar na civilização, e chegando até Lacan, com a forma lógica do objeto pequeno a (Ferreira, 2017).

Partindo da função do mercado, Marx estabelece o objeto do capital, situando o trabalho e sua relação com o que dele se perde, por meio da mais-valia (Mehrwert). Em homologia a Marx, Lacan faz evidenciar o mais-de-gozar (Mehrlust) como função que implica o lugar do objeto a, objeto mais-de-gozar, definição do excedente gerado pelo trabalhador ao capitalista em decorrência da diferença entre o valor despendido para a produção da mercadoria e seu valor de venda. O mais-de-gozar é, desse modo, uma função que implica renúncia ao gozo, sob o efeito do discurso, dando lugar ao objeto a (Ferreira, 2017).

Nas palavras de Souto, D’Agord e Sgarioni (2014, p. 40), o

[...] conceito de mais-de-gozar é descrito como homólogo à mais-valia de Marx porque revela um “a mais” - ou um gozo “excedente” que se apresenta como não recuperável pelo sujeito - na medida em que está, de entrada, perdido.

Sob tal lógica, na contemporaneidade, não somente o trabalho, mas também o usufruto do corpo e o tempo dedicado ao ócio estariam separados de seu valor de uso e colocados a serviço da produtividade, do lucro e do mais-degozar. Haveria, assim, um rebaixamento de todos os valores de uso à condição de objetos mais-de-gozar, a serviço da lei do mercado.

Para Miller (2005), pode-se, então, inferir que o discurso da civilização não é mais o do avesso da psicanálise. Ao contrário, cada um de seus termos permanece disjunto: o mais-de-gozar comanda, o sujeito trabalha, o saber ativa a produção e as identificações são substituídas pela mensuração homogênea das capacidades, das competências, das mobilizações da subjetividade, dos potenciais.

Nesse novo estádio civilizatório, rotulado sob diferentes denominações - alta modernidade, pós-modernidade modernidade tardia, hipermodernidade - categorias analíticas clássicas, como organização, profissão, carreira e trabalho, são, portanto, demandadas a se ressignificar.

Em nível societal, as dinâmicas de produção e regulação do trabalho, antes baseadas na constituição de classes médias de consumo, ancoradas na ideia de sacríficos a curto prazo (poupança) para bem-estar no futuro (aposentadoria), por políticas de pleno emprego e distribuição de ganhos de produtividade, são sistematicamente desconstruídas e substituídas por estratégias de redução de custos e de intensificação da alienação do trabalho, por meio de dispositivos de automação, de inteligência artificial, prenunciando-se novas dinâmicas de mercado, com implicações significativas sobre a instância do trabalho e suas relações.

Característica distintiva dessa pós-modernidade, modernidade tardia ou hipermodernidade é que para sua reprodução configura-se suficiente não mais que 20% da população mundial, que assistidos por novas formas de inteligência não humana, mantêm-se ainda na expectativa de se configurarem relevantes a esse admirável mundo novo (Dowbor, 2018; Mason, 2017; Haskel; Westlake, 2018).

Se concordarmos com Freud sobre o papel do trabalho diante do enfrentamento do mal-estar, não podemos ignorar que as transformações que hodiernamente se processam na natureza mesma desse conceito apontam para formas outras de manifestação. A própria centralidade do trabalho, sutil e rapidamente, ganha outros contornos.

Em sociedades economicamente mais avançadas, já se discute, por exemplo, não mais a transição de relações de trabalho centradas no emprego formal para modalidades mais flexíveis de vinculo indivíduo-trabalho-organizações, como o trabalho autônomo. Nesses contextos, o debate já se coloca no deslocamento do trabalho autônomo para a noção de ocupabilidade. Sob tal perspectiva, a tecnologia aliada a formas inovadoras de arranjos organizacionais reforça a exclusão da atividade sociolaboral de um contingente populacional significativo, conforme se depreende das taxas de desemprego hoje registradas, notadamente, entre os jovens desses países.

Para além do aqui e agora, estudos apontam que, em 2030, cerca de metade das profissões ou ocupações profissionais tais como as temos hoje não mais existirão (Frey; osborne, 2017). Em decorrência da pandemia de covid-19, estimativas mais recentes sugerem, inclusive, a antecipação dessa projeção para 20252026 (Sant’anna, 2021). Com o fim delas modificam-se também as formas de laço social e os dispositivos que configuram a noção de trabalho como forma privilegiada de mediação do malestar na alta modernidade.

Sob o regime da economia digital, um de seus corolários, a chamada Quarta Revolução Industrial (Schwab, 2016) avança a passos largos nas economias centrais, alimentada por inovações sem precedentes na robótica, na nanotecnologia, na biotecnologia, nas neurociências, na inteligência artificial e nas tecnologias de informação e de telecomunicações.

A civilização pós-moderna não pressupõe, todavia, alterações nas formas de mobilização daquilo de mais humano que há no humano. Trata-se, antes, de promover um fading da subjetividade, reduzindo a compreensão do humano a instrumento de conexão com outros entes inteligentes, incluindo não humanos, construindo com eles novas formas de laço social.

Tal cenário não constitui roteiro de obra de ficção científica, tampouco delírio sociológico. Ao contrário, uma série de evidências empíricas o corroboram. Basta o acesso à rede mundial de computadores, uma visita ao aeroporto mais próximo ou ao caixa eletrônico de um banco qualquer para se constatar a presença de tais dispositivos técnico-científicos e, sobretudo, sua capacidade de nos interconectar com a sociedade como um todo.

Os avanços nas tecnologias virtuais, nas telecomunicações, na temática, a priori, poderiam ser aventados como fatores de mitigação do sofrimento humano ao favorecer formas outras de relações humanas. No entanto, apesar da tônica das sociedades contemporâneas no imaginário, a psicanálise nos aponta, desde suas origens, o papel do simbólico, da linguagem desde sempre faltosa.

Assim, ao operar sobre a estrutura do real-simbólico-imaginário, o que tais avanços tecnocientíficos nos apontam é a propagação - ou catalisação - de malestares decorrentes da espetacularização da realidade, do enfraquecimento da instância simbólica e das formas de amarração protetivas em relação ao Real, inclusive a solidão, a depressão, o burnout, o narcisismo das pequenas diferenças. Em outros termos, antigas patologias sob novas roupagens, porém com impactos tão ou mais deletérios.

Nesta releitura de O mal-estar, uma questão permanece, portanto, fundamental: De quais “técnicas” os humanos poderiam lançar mão para fazer face às formas “pós-modernas” de constituição do “laço social” e aos sintomas delas emergentes?

No alvorecer da Era do transumano (Kurzweil, 2007), tangibilizada pelo apagamento dos sujeitos, pela primazia do discurso único e da pulsão de morte, o saber psicanalítico, por seu caráter transgressor, apresenta-se como bastião, talvez último, de resistência, de defesa do humano, do demasiadamente humano. Afinal, por meio da psicanálise, apreendese que algo sempre resiste, que há sempre um resto pronto a produzir trabalho.

De outra forma, uma debacle da psicanálise representaria - ou sintomatizaria - o próprio fracasso do humano, corroborando a tese foucaultiana. Porém, uma vez mais concordando com Freud, o mal-estar, como elemento constitutivo e coletivamente arregimentado, evidencia o caráter multifacetado do “trabalho”, seu papel inovador e revolucionário.

Mesmo ciente dos impasses e das imperfeições que assolam o laço social, Freud reitera, acima de tudo, a importância do “trabalho da civilização”, sua raison d’être, no tratamento do excesso pulsional pela via das sublimações, ideais e realizações culturais.

Em suma, conforme observa Coelho dos Santos (2017, p. 48), a aposta de Freud parece recair sobre o “[...] saber-fazer com o real e a responsabilização de cada sujeito por isso”. Não obstante, a preponderância do um a um - muito provavelmente, como observa Gallano (2006), na “pontinha dos pés” - não se pode ignorar que seu substrato é o campo do social, inclusive suas instituições, organizações, coletivos, grupos, bem como seus dispositivos. Outro aspecto na derrocada da instância do trabalho seria o fortalecimento dos modos de amar.

Como evidencia Freud, se de alguma forma se pode lidar melhor com a infelicidade, tal passa pela esfera do trabalhar, mas também do amar (Freud, [1930] 1976).

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Recebido: 28 de Janeiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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