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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.83 Belo Horizonte ene./jun. 2022  Epub 28-Out-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n83.06 

Artigo

O lugar da infância nas políticas públicas brasileiras: uma interlocução com a psicanálise

THE PLACE OF CHILDHOOD IN BRAZILIAN PUBLIC POLICIES: AN INTERLOCUTION WITH PSYCHOANALISYS

Luiz Felipe Gomide Ribeiro1 

Psicólogo clínico em consultório particular. Pós-graduado em psicanálise e políticas públicas no Centro Universitário Newton Paiva Pós-graduado em teoria psicanalítica no Centro Universitário Newton Paiva

1Psicólogo no CERSAM de Perdões MG. E-mail:


Resumo

A infância e a criança, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, ocupam um lugar de prioridade absoluta na agenda política do governo do nosso Estado. Assim como a própria Constituição Federal de 1988, entre outras leis complementares, essa lei fundamenta as políticas públicas destinadas à garantia dos direitos fundamentais desse público. Contudo, descobrimos com nossa pesquisa que, embora essa legislação reconheça o seu estado de direitos, a sua condição de sujeito não é buscada, nem reconhecida tampouco respeitada no interior das políticas públicas brasileiras.

Palavras-chave: Infância; Psicanálise; Políticas públicas

Abstract

Since the enactment of the Child and Adolescent Statute (ECA) in 1990, Child and Adolescent have occupied an absolute priority on the political agenda of the government of our State. This law, as well as the Federal Constitution of 1988, among other complementary ones, are the foundation for the public policies intended to ensure the fundamental rights of this public. However, we found with our research that, although this legislation recognizes their state of rights, their condition as a subject is not sought, recognized nor respected within Brazilian public policies.

Keywords: Childhood; Psychoanalysis; Public policies

Introdução

A infância, tal como é concebida na cultura ocidental do século XXI, é uma construção que nasce a partir da confluência de uma série de fatores culturais, ideológicos e políticos que, por seu caráter de processo, absorve elementos dos contextos anteriores e lega elementos para os contextos posteriores. Via de regra, a concepção de infância e o lugar ocupado por ela em nossa sociedade se modificaram no decorrer da história, o que nos levou a questionar sobre o seu lugar nas políticas públicas contemporâneas.

A infância na história do Brasil

A busca pelo lugar da infância em um contexto sociocultural tão específico, a saber, nas políticas públicas brasileiras contemporâneas - não seria possível sem um diálogo com a história na qual se inscrevem. “A história não é o passado”, nos diz Lacan ([1953-1954] 2009, p. 22). Para o psicanalista, a história é o passado enquanto historiado no presente e se é historiado no presente é porque já foi vivido no passado. Ou seja, toda realidade humana, com tudo o que dela provém e tudo o que nela converge, está fundamentalmente atada à história por meio de um dispositivo primordial constituinte de todo elo social, o discurso.

Um discurso, como Lacan ([1957-1958] 1999) nos lembra, é mais do que sua materialidade na medida em que implica também a sua temporalidade, sua espessura. Portanto, se há uma infância no Brasil contemporâneo, compreendê-la, e compreender os fenômenos que a infligem, seria por meio da análise do discurso que a inscreve na história em que jazem as significações que perpassaram por esse significante ao longo dos anos, resultando nas diferentes formas de relação da infância ao Outro social em questão.

Iniciamos este percurso histórico pelo fato de que no Brasil, em razão da manutenção de uma estrutura feudal e escravagista até o final do século XIX, o “sentimento de infância”, proposto pelo historiador francês Philippe Ariès, irá ocorrer tardiamente (Cirino, 1994). Na Europa o surgimento desse fenômeno e a sua inscrição no imaginário social foi um fator que contribuiu para a apropriação da infância pelas diversas especialidades da ciência moderna (pedagogia, pediatria, psicologia do desenvolvimento, etc.) que se ocuparam em determinar as suas características, o que, no Brasil, conforme dito acima, ocorreu tardiamente (Cirino, 1994), não, claro, sem consequências.

No nível do discurso do Estado, ou seja, principalmente em seu arcabouço legal, temos que, nos períodos colonial (1530-1822) e imperial brasileiro (18221-889), não houve nenhuma preocupação por parte das respectivas classes dominantes em elaborar leis ou políticas que protegessem a criança e lhe garantissem seus direitos fundamentais, ela estava, desse modo, oculta, ausente, excluída do discurso do Estado. A situação de pobreza, exclusão, marginalização, mortificação e silenciamento em que as famílias escravizadas se encontravam, permaneceu após a abolição da escravidão, porque não foi acompanhada de um processo de inclusão social digno, resultando no aumento do número de crianças abandonadas pelos progenitores e, consequentemente, no aumento da criminalidade e da delinquência infanto-juvenil.

Para a criança em situação de vulnerabilidade, o que havia nesse período era o predomínio de ações de cunho assistencialista, por parte de entidades ligadas à igreja católica e a subordinação desta à mesma lei aplicada aos adultos, de caráter punitivo. Os menores de 14 anos eram considerados inimputáveis, mas caso se comprovasse, mediante apuração, a responsabilidade em ato cometido sob pleno entendimento do seu caráter ilícito e criminoso, eram levados para as casas de correção e recebiam penas rigorosas (Silva Filho, 2013).

Foi em 1927, que ocorreu a promulgação do Código Mello Mattos, também conhecido como Código de Menores, primeira legislação específica para esse público. Segundo Silva Filho (2013), tal legislação tinha como objeto as crianças abandonadas ou delinquentes, assim denominadas ‘menores em situação irregular’. O Código de Menores estabeleceu os parâmetros e as formas de punição, vigilância e controle que transformavam essa criança - os menores - num objeto passivo de controle por parte do Estado.

Nota-se, aqui, que a inscrição da criança no discurso do Estado aconteceu de forma a oficializar o processo de segregação a que ela estava submetida desde antes da independência do Brasil. Para a psicanálise, a segregação é definida como um fato inerente à humanidade, na medida em que está relacionada à existência dos discursos (GuimarãeS, 2010). Os discursos, segundo Lacan ([1958-1959] 2016), como formações simbólicas, existem sob a condição de se apresentarem prévia e fundamentalmente como uma estrutura de linguagem, como sistema sincrônico.

Este sistema sincrônico se refere à rede dos significantes de um discurso, em cuja estrutura os significantes se encadeiam segundo uma lei de oposição. Segundo essa lei, num discurso, a escolha de um significante implica a exclusão de todos os outros (GuimarãeS, 2010). No nível do discurso do Estado brasileiro, a exemplo do Código de Menores, nota-se que a segregação da criança aconteceu por meio do significante menor, em referência às crianças que sofreram abandono moral e/ou material e/ou praticaram algum ato infracional, significando, portanto, um grupo etário e étnico de indivíduos que deveriam ser controlados e vigiados pelo Estado. Esse significante fazia oposição à criança branca, não abandonada, não delinquente e em situação regular. A segregação oficializada pelo Código de Menores consistiu, portanto, na criação de um processo de diferenciação entre crianças e menores, mas convém lembrar que mesmo a criança em situação regular não era reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro.

Foi na Constituição Federal de 1934 que se manifestou a preocupação em elaborar medidas de proteção à infância desamparada, por meio de atribuições específicas nos níveis municipais, estaduais e federais (Silva Filho, 2003). Já no período da ditadura brasileira, as políticas destinadas à infância eram regidas por duas leis: a Lei n.º 4513/64, conhecida como Política de Bem-Estar do Menor (PNBEM); e pela Lei n.º 6697/79, o Código de Menores de 1979. Sob a égide de ambas as leis, permanecia a segregação baseada em critérios raciais e socioeconômicos, uma forma de intervenção estatal absoluta sobre as crianças pobres, abandonadas e delinquentes - os menores - e o não reconhecimento do estado de direitos da criança devido à recusa do governo do Estado brasileiro em incluir na sua legislação os dez princípios da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959 (Frota, 2003).

Uma nova concepção de infância e seu novo lugar na agenda política dos governos do Estado brasileiro

No Brasil, foi somente a partir da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com a promulgação do ECA em 1990, que a criança foi reconhecida como “sujeito de direitos” independentemente de qualquer critério singular de diferenciação. Pela primeira vez, o Estado brasileiro apresenta no texto da lei uma definição de criança que se aplica a todas as crianças. Digno de nota é também o fato de que, como sujeito de direitos e em razão de sua condição peculiar de desenvolvimento, as crianças

[...] não podem mais ser tratadas como objetos passivos de controle por parte da família, do Estado e da sociedade (Frota, 2003, p. 66).

O Estatuto reconhece e define os direitos sociais, de educação, saúde, convivência familiar e comunitária, lazer. Concede à criança a prioridade absoluta no acesso aos meios de garantia e proteção de seus direitos e discorre sobre as políticas de atendimento às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, em função de sua própria conduta ou de outrem (Frota, 2003). Outras leis surgiram como desdobramento do ECA, como a Lei n.º 13. 257/2016, também nomeada como Marco Legal da Primeira Infância, que fundamenta programas como o Criança Feliz, o Programa Primeira Infância Melhor (PIM), entre outros, que visam a promoção do desenvolvimento infantil como forma de reduzir as desigualdades socioeconômicas no futuro. Portanto, investir na proteção e no desenvolvimento infantil no contexto de políticas públicas é uma estratégia política que visa a produção de resultados específicos no cenário social e não necessariamente blindam esses sujeitos contra a pulsão de morte que incide sobre eles.

A despeito de todo o avanço nas leis e dispositivos de atendimento à criança, o que se observa no nível da realidade é a persistência do quadro de negação e violação dos mesmos direitos garantidos pela lei, como observou Sarmento (2013), em fenômenos como: o aumento do número de casos de infanticídio, pedofilia, participação de jovens e crianças em atividades criminosas, uso, abuso e tráfico de drogas, etc. Segundo a autora, esses fenômenos sinalizam o deslocamento da criança do lugar de ideal, no contexto da família tradicional, para o lugar de objeto de gozo do adulto na contemporaneidade (Sarmento, 2013).

É justamente neste ponto que a questão-pivô do presente artigo vem à superfície na medida em que, na transição das legislações anteriores para o ECA, e considerando todas as mudanças ocorridas no cenário político e social no decorrer dos anos, houve também um deslocamento da infância no interior do discurso do Estado: de um lugar de ausência, de ocultamento, para um lugar onde é reconhecida como sujeito de direitos, um lugar onde ela não pode mais ser tratada como um mero objeto. E se ela não pode estar no lugar de objeto passivo nas políticas públicas a ela destinadas, qual é o seu lugar?

Para nos auxiliar no esclarecimento desta questão, buscamos no interior do discurso psicanalítico algumas de suas contribuições acerca da infância.

A criança entre a infância e o infantil

No seu artigo Sobre a psicanálise, apresentado no Congresso Médico Australasiano, em 1911, Freud a definiu como um método de pesquisa sobre as neuroses, além de um método de tratamento fundamentado pela etiologia descoberta na experiência clínica (Freud, [1911-1913] 1996).

No curso de sua pesquisa, Freud descobriu a importância da infância para a constituição dos sintomas, acrescentando “o fato ‘infantil’ ao somático e ao hereditário, até então identificados” (Freud, [1911-1913] 1996, p. 226). Para ele, certos autores superestimavam a influência dos fatores hereditários na etiologia das neuroses, desconsiderando o que se passava na existência de cada sujeito nessa fase da vida chamada, infância (Freud, [19111913] 1996).

Embora Freud e Lacan não tenham se ocupado em oferecer uma concepção de infância que fosse própria da psicanálise, eles nos forneceram elementos suficientes para nos sinalizar o distanciamento da psicanálise em relação à concepção de infância do discurso científico moderno, que se centrava no determinismo e no desenvolvimento biológico e temporal, na medida em que se voltava para a atemporalidade do inconsciente, que está relacionada a um outro conceito fundamental da psicanálise - o infantil.

O infantil adquiriu várias nuances e conotações ao longo da obra de Freud e, posteriormente, com o ensino de Lacan, ele toma uma nova forma e ganha um novo alcance. De todo o conjunto de elementos mnêmicos que ficam inscritos sob a ação do recalque, no inconsciente, ele passa ao que Sauret (1998) definiu como um traço de perversão que resiste ao desenvolvimento, um quantum ineliminável de gozo do Outro que advém ao sujeito pelo fato de que ele consentiu às leis do significante.

O conceito de infantil está em estreita relação com a sexualidade e, mais especificamente, com a sexualidade infantil e com as próprias formações do inconsciente tal como Freud ([1911-1913] 1996, p. 162) expressou em sua fórmula “os neuróticos preservaram o estado infantil de sua sexualidade ou foram retransportados para ele”.

A sexualidade infantil foi uma grande revolução do discurso psicanalítico, algo que Freud nunca recuou apesar de todas as objeções e acusações que sofreu e que fez transformar a criança do discurso do início da era moderna remetida à inocência, que deveria ser preservada, à fraqueza e ignorância que deveriam ser eliminadas, ou suprimidas, por via da educação regressiva (Cirino, 1994). Freud constatou o erro da opinião popular segundo a qual a pulsão sexual estaria ausente na criança sendo despertada apenas na puberdade (Freud, 1996).

A criança da psicanalise, portanto, carrega em si os efeitos do seu encontro com o sexual e com o Outro da linguagem, ela sente raiva, tristeza, ciúmes, desamparo, é capaz de transgredir as mais diversas formas de controle, moralização e educação impostas pela cultura. É portadora das pulsões de vida e de morte e, sobretudo, é um sujeito de desejo. É uma criança não possível de ser reduzida a um conjunto de funções e processos biológicos e cognitivos tal como é considerada no discurso da lei e das metodologias das políticas públicas. Conceber a realidade subjetiva do ser humano a partir dos conceitos psicanalíticos de sujeito, do infantil, da sexualidade, entre outros, nos permite uma forma de apreensão dos diversos fenômenos que ocorrem e que envolvem a criança em sua relação com aqueles a sua volta e, por meio de sua ética, uma forma de intervir sobre esses.

O lugar da infância nas políticas públicas da sociedade contemporânea

Segundo Barroso (2010), diversas transformações sociais vêm sendo constatadas na contemporaneidade a partir do declínio, das estruturas edípicas, da metáfora paterna e da fusão da ciência com o capitalismo tendo como efeito a transformação do próprio sujeito em uma mercadoria como tantas outras. Neste contexto nos questionamos acerca dos efeitos deste fenômeno no âmbito das políticas públicas destinadas à criança tomando, a título de exemplo, o próprio Programa Criança Feliz que mencionamos em tópico anterior.

No manual do programa intitulado Guia da visita domiciliar, as ações realizadas nas visitas domiciliares assumem as funções de prevenção, proteção e promoção do desenvolvimento integral da criança no período da primeira infância (Brasil, 2019). Esse período etário, que vai do nascimento aos seis anos de idade, foi escolhido para as ações dessa política por ser o período em que o cérebro humano se encontra no ápice do desenvolvimento das interações neuronais, que vão dar origem e suporte às funções cognitivas, motoras, socioafetivas e de linguagem.

O visitador como agente desse discurso deverá realizar as visitas às famílias, cumprindo os objetivos expressos por verbos como apoiar os esforços familiares [...]; identificar as interações [...]; identificar necessidades [...]; orientar as famílias [...]; informar as famílias [...] (Brasil, 2019). Pode-se dizer, portanto, que, embora as visitas domiciliares sejam também relações estruturadas pela linguagem, as intervenções que nela ocorrem são de cunho diretivo em que, via de regra, não há espaço para que se manifeste, fale e seja escutado esse sujeito, que dissemos estar elidido nesse discurso, o sujeito do inconsciente - essencialmente diferente do sujeito de direitos, objeto do conhecimento.

Temos, por conseguinte, a família e a própria criança na posição de objeto de um saber, o saber científico, um saber que não é o seu, na medida em que é ocultado, elidido em prol de um imperativo educacional e normativo que acaba por desconsiderar o que ocorre no interior das relações da criança com seus cuidadores. Há um real em jogo, como nos diz Drummond (2007), desde antes do nascimento de uma criança, no qual ela irá se inscrever e assumir uma função.

Lacan ([1956-1957] 1995, p. 247) foi preciso ao nos lembrar algo que “qualquer que seja a situação real, a criança nunca está sozinha com a mãe”. Isso quer dizer que a criança, na sua relação com a mãe, intervém como elemento substituto, ou compensatório de uma falta fundamental e estrutural da mãe - a falta simbólica do falo. Na contemporaneidade, o discurso analítico nos revela um deslocamento da criança, não mais um objeto que se relaciona à angústia de castração no nível simbólico, passível de representação, mas como um objeto real relacionado à angústia da privação (Drummond, 2007). E é em torno desse objeto que a família contemporânea se estrutura, contrapondo-se à família tradicional, que se estruturava em torno dos ideais e das estruturas edípicas.

Isso significa que a criança não é indiferente ao que ocorre na família; afinal, é dentro da família que a criança irá emergir como sujeito. E é da família que a criança dispõe para interpretar seu sintoma (Drummond, 2007). Isso posto, temos que essa mudança estrutural na família contemporânea implica diretamente na forma dos sintomas que as crianças manifestam e que serão encaminhados aos especialistas que atendem, muitas vezes, nos dispositivos das diversas políticas públicas. E nesse contexto temos a criança no lugar de mero objeto do saber desses especialistas que, regidos pelo princípio do para-todos, pela tendência à universalização, tratarão de forma a segregar e silenciar tudo o que de particular é comunicado por esses sintomas (GuimarãeS, 2010).

Nesse sentido, tanto os diversos especialistas quanto o próprio Estado, por meio de políticas públicas específicas, são convocados a atuar para fazer a vigilância, o controle e o acompanhamento de casais, de famílias e de crianças, ditando-lhes o que fazer para reparar a desordem na vida delas, e para prevenir desastres piores na vida dos seus filhos no futuro e no próprio cenário social.

Na contemporaneidade, temos a criança como a criança-objeto, tal como descrevemos ao longo deste artigo, seja para a família, seja para a sociedade, seja para o Estado. Uma criança objeto do saber, cujo estado de direitos é reconhecido, ao contrário da sua condição de serfalante. Como nos diz Guimarães (2010), a incidência do discurso científico sobre a subjetividade faz surgir um saber sem sujeito - um objeto. E como poderia a psicanálise contribuir nesse âmbito?

A psicanálise pode contribuir justamente na oferta de um espaço em que esse sujeito emerja e seja escutado. Em vez de basear uma política pública inteiramente em um discurso, uma metodologia que objetifique seu público-alvo, pode-se articulá-la a um outro discurso, uma outra metodologia, outra ética que possibilite o estabelecimento de outra relação que permita ao sujeito reconhecer o próprio saber, o próprio desejo e assumir seu próprio destino (Sarmento, 2013). Para isso é preciso que se reconheça que a fala em si é o instrumento-chave desse processo e que, em vez de conduzir o sujeito para uma fala plena deve-se deixá-lo livre para se experimentar nisso, sabendo que essa liberdade para falar é, para ele, algo muito difícil de tolerar (Lacan, [1958] 1998).

Certamente, articular algo da teoria, da técnica e da ética psicanalítica no campo das políticas públicas é um grande desafio, pois não é de fácil manejo, demandará mais dos profissionais envolvidos e elevará o custo das operações. Mas talvez assim possamos conceder à criança um novo lugar, um lugar que jamais ocupou na história e no discurso do Outro, a saber, o lugar de uma criança-sujeito.

Referências

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Recebido: 12 de Janeiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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