Introdução
A pandemia da covid-19 legou efeitos dramáticos sobre todos os aspectos da organização social, impondo a diversas práticas a necessidade de importantes adaptações e limitações em nome da vida. A prática psicanalítica inscreve-se entre as atividades atingidas por essa crise global. No contexto deste cenário, os autores deste artigo reuniram-se a partir do dispositivo do cartel, tendo no lugar de +1, o psicanalista Benoît Pascal Rémi Le Bouteiller, para colocar em questão a clínica no isolamento social, estando o próprio cartel submetido a tais condições de trabalho, isto é, constituído e sustentado de maneira on-line.
Neste contexto de grandes incertezas e perdas, ainda se mostra atual o texto quase centenário O mal-estar na civilização, em que Freud ([1930] 1974) enumera as formas de sofrimento a que os sujeitos estão submetidos. Entre essas formas, ele cita o decorrente do nosso corpo “condenado à decadência e à dissolução” (Freud [1930] 1974, p. 95). Essa condição se apresenta agora exposta de forma crua, desvelada pela possibilidade de perdermos tanto a nossa vida quanto a de quem amamos.
Ainda nesse texto, ele nos lembra que nunca seremos capazes de dominar completamente a natureza e o nosso corpo, que somos finitos em nossa capacidade de adaptação. Assim, nos vemos diante das limitações físicas, das nossas incapacidades de lidar com a natureza, e cara a cara com a possibilidade da morte. Morte que não pode ser olhada de frente, mas que, todos os dias, comparece de forma massiva pelo ciframento em números e gráficos, cujo luto pode ser dificultado pela supressão dos ritos fúnebres em função das demandas sanitárias vigentes.
Sobre a psicanálise em contextos tão específicos, Jorge Broide, ao prefaciar o livro As clínicas públicas de Freud, de Elizabeth Ann Danto (2019), menciona que os antecessores da psicanálise, inclusive o próprio Freud, não temeram inventar dispositivos para as “psicanálises nas situações sociais críticas”. E acrescenta:
Nesse processo havia muito debate sobre como abordar as questões e a construção de diferentes dispositivos, mas em nenhum momento do livro surgem expressões tais como “isso não é psicanálise” ou “isso não é clínica”. Ia-se ao campo e debatia-se com profundidade (Broide, 2019, p. 7).
Essa referência histórica da psicanálise forneceu-nos um direcionamento para um possível tratamento das nossas questões: “ir a campo e debater”. Alimentados por essa proposta e tendo como horizonte os textos de Freud e Lacan, além de alguns comentadores da atualidade, a primeira questão que se impôs foi como tratar de algo que ocorre de forma coincidente com o tempo da nossa discussão.
Freud ([1927] 1974), em O futuro de uma ilusão, assevera que, para não sermos ingênuos diante do nosso tempo, seriam necessários pontos de observação. Esses pontos poderiam ser dados por certa distância, ou pelo presente ter-se tornado passado. Ainda nesse sentido, Giorgio Agamben (2009) propõe que o presente não se imobiliza: há sempre um descompasso entre o sujeito e seu tempo, situando pontos de observação, tal como sugerido pelo pai da psicanálise.
Agamben (2009, p. 59) prossegue indicando que a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”. E nesse distanciamento torna-se necessário sustentar um olhar para perceber o escuro em vez [em lugar] das luzes, descobrir as trevas de nosso tempo.
O contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo (Agamben, 2009, p. 64).
Assim, na pretensão de ocupar o lugar de sujeitos denominados contemporâneos, propomo-nos a debater aquilo que percebemos insistindo em nos interpelar - a pandemia (trevas no nosso tempo?) - considerando sua incidência em nossas práticas clínicas.
Para desenvolver esta questão, apresentamos uma discussão acerca dos impactos da pandemia sobre a clínica a partir da questão da alienação e separação e dos conceitos de algoritmo e transferência.
Os efeitos da pandemia sobre a clínica
No seu ensaio Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, Freud ([1912] 1996) concebe a clínica como uma atividade na qual tratamento e investigação coincidem. Podemos acrescentar que essa dimensão investigativa não se reduz aos fenômenos clínicos stricto sensu, mas inclui as transformações sentidas na articulação entre clínica e cultura. Já o método no qual se fundamenta esta [a nossa] investigação, não se confunde com a pesquisa científica, pois em psicanálise não se separa o sujeito pesquisador de seu objeto.
Nesta primeira discussão, nos concentramos nas condições através das quais a clínica subsiste no isolamento social, em vez de abordar diretamente as manifestações clínicas veiculadas pelos pacientes nesse contexto. Para reconstituir a incidência da pandemia sobre a clínica já constituída, retomamos seus eventos iniciais.
A incidência da pandemia requer mais de uma formalização para ser abordada. Nesta exposição preliminar, a reduzimos a dois níveis: o primeiro concernente ao Outro, e o segundo ao sujeito. Essa proposta se baseia na percepção de que a pandemia produz efeitos sobre a ordem social e simultaneamente incide de maneira singular sobre a história de vida de cada sujeito. Trataremos primeiramente do campo do Outro.
O principal efeito da pandemia sobre o campo do Outro é a instauração do isolamento social pelo preço da vida. Em localidades onde o combate à contaminação do vírus é insuficiente ou não reconhecido pelas autoridades, a adesão a esse isolamento assume radicalmente a dimensão de uma escolha. Em todo caso, seja em lugares onde o isolamento é prescrito, seja em localidades onde isso não ocorre, a adesão ao isolamento envolve uma decisão que pode ser remetida à tirada “a bolsa ou a vida?”, que Lacan ([1964] 2008) tornou célebre entre os psicanalistas em seu Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Essa expressão intitula o trabalho homônimo do medievalista Jacques Le Goff ([1987] 2007), que Lacan mobilizou para a abordagem da alienação. A alienação consiste no tempo primário de interceptação do sujeito pela linguagem através do campo do Outro (Lacan, [1964] 2008). No contexto da pandemia, a alienação se atualiza interceptando o singular da clínica por uma nova trama significante: a provocada pelo isolamento social, na qual o sujeito pode novamente advir. Em outros termos, significa que tudo aquilo que podemos situar do ponto de vista da clínica psicanalítica contrai um novo sentido a partir dessa radical atualização de contexto.
Forçosamente optamos pelo sentido. Essa resolução pode parecer trivial, porém é dramática para a modernidade, pois de diversos modos tendemos a eleger a separação como primária à alienação.
Não é sem causa que a alienação é negligenciada, pois sua incidência, que é atualizada incessantemente, provoca uma fratura no ser do sujeito, deposição ontológica que pode ser sentida na própria prática clínica, atividade encarnada naquele que muitas vezes também chamamos de O Clínico. Ao tratar dessa perda, encontramos ocasião para articular esses efeitos do vírus sobre o campo do Outro com seus efeitos na dimensão singular comportada pela clínica.
Uma das consequências do isolamento social é a promoção da perda da sede do tratamento psicanalítico - a clínica. É interessante como esse significante nomina a prática exercida, a rede de atendimento, o lugar de atendimento e o próprio analista. Tal significante, elevado à palavra de ordem, é tão cristalizado que não raro nos deparamos com atitudes que contemplam o que pode ser reconhecido como soberania da clínica.
A repetição do significante clínico produz uma amálgama, como num jogo metonímico no qual é repetida a mesma palavra, produzindo um menos de sentido, um empobrecimento dos sentidos assumidos pela atividade clínica. Essa mesma operação produz uma ilusória consistência do clínico, figura cuja existência é cristalizada pela imaginarização desse significante.
A perda da sede da prática psicanalítica, ou seja, da clínica, não só traumatiza essa cristalização como também atualiza a ferida fundamental no ser dos praticantes da clínica psicanalítica. Dito de outro modo, o vírus coloca o dedo na ferida.
Diante da exposição dessa fratura no ser, encontramos atitudes diversas, como uma desvalorização da clínica on-line, o entendimento do caráter emergencial dessa modalidade de atendimento, até aqueles cuja escolha deve ser respeitada, que optaram por interromper suas atividades. Essa variedade aponta para a singularidade da fratura que subjaz a essas atitudes. De nossa parte, orientados pelo ensino de Lacan, sustentamos que a clínica na pandemia deflagra radicalmente o que há de essencial nessa prática. Nesse posicionamento do próprio Freud ([1912] 1996, p. 129) encontramos a asseveração de que o analista “deve ajustar-se ao paciente assim como o receptor do telefone está ajustado ao microfone”.
A psicanálise não é um vírus, mas com justeza foi chamada de peste na acepção que Lacan quis conferir-lhe. Contudo, na medida em que se constitui instituição e sedia uma comunidade, pode estar mais próxima de ser o cavalo ao qual se referiu Sócrates para falar da polis em sua Apologia. Com seu corpo robusto e lento, alquebrado pelo trabalho contínuo, esse animal pode ser despertado pela ação irritante e provocativa de uma pequena mosca. Quanto mais secular se torna a psicanálise, maior talvez seja essa tendência de se tornar o cavalo da cidade e se torne mais carente da ação desses insetos de meia vida.
Na sua vertente provocativa, ou seja, enquanto peste, a psicanálise é provocação ao trabalho sob o significante da transferência (Miller, [1986] 1994), definição que coloca em questão quais podem ser as incidências sobre essa dinâmica nas condições concretas impostas pela pandemia.
A transferência algoritmizada
Nesse momento de crise, a noção de transferência ganha duplo sentido: na gestão de dados digitais, que vem sendo um recurso para o início ou o prosseguimento de processos analíticos, e na própria relação com o psicanalista, em que os dados em jogo são os significantes.
O algoritmo se faz muito presente principalmente pelo viés da tecnologia da informação e pode ser compreendido, segundo Magrani (2019), como uma sequência em que existe uma lógica finita, que obedece a instruções, a fim de resolver certo tipo de problema ou fazer uma determinada tarefa.
As buscas na internet são norteadas por um algoritmo que lida com as instruções dadas pelo usuário. Há nesse recurso uma aposta de que ele encontre respostas com base naquilo que o algoritmo aprendeu sobre ele e uma suposição de que na rede é possível encontrar um saber a partir das informações ali apresentadas.
Esse endereçamento na busca de um saber ocorre também como um enigma do sujeito, que procurará em outros essa resposta. Freud chamou esse endereçamento de transferência (Übertragung), fazendo as primeiras referências ao termo em A interpretação dos sonhos (Meireles, 2012). Nessa obra, o autor define a transferência como um transporte das representações, que opera o deslocamento de sentido e afeto.
Segundo Lacan ([1964] 1996), a transferência é um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com a pulsão, o inconsciente e a repetição. Em sua definição, esse conceito comporta uma relação estruturante entre analisante e analista, acionada pelo efeito de escuta e produção do significante qualquer na relação de discurso sediada pelo setting analítico.
Freud ([1914] 2017, p. 160), em Lembrar, repetir e perlaborar, ao refletir sobre a transferência e o modo como o psicanalista opera nela, utilizou a expressão “manejo da transferência”. Segundo o autor, esse manejo é o principal instrumento do clínico para atuar com a compulsão à repetição, visando transformá-la em um meio do sujeito recordar.
Lacan ([1967] 2003), em Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola, formalizou a transferência a partir do recurso ao algoritmo. Nessa proposta (Figura 1) estão incluídos os termos do significante qualquer (Sq), sujeito do saber inconsciente s(S1, S2,... Sn) e significante da transferência (S).
O termo sobre a barra é o significante da transferência através do qual o sujeito se representa diante do analista, que está particularizado por um significante qualquer (Meirelles, 2012, p. 128). O saber inconsciente está sobre a barra, ou seja, submetido ao recalque e do lado do analisante. Contudo, o sujeito ingressa na experiência analítica ao supor que esse saber está do lado do analista.
Assim, na transferência, o psicanalista se orienta através do eixo em que incide o sujeito suposto saber. Lacan ([1967] 2003), por sua vez, ressalta que o sujeito não supõe, mas é suposto por um significante que o representa.
Com efeito, embora a psicanálise seja uma relação entre analista e analisante, ela só pode se desenvolver
[...] ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber [...] (Lacan, [1967] 2003, p. 254).
Essas são as linhas fundamentais do desenvolvimento de Lacan sobre o algoritmo da transferência. Tal recurso está presente na arquitetura das redes digitais. Nelas, os algoritmos são recursos para organizar dados e concluir tarefas previamente estabelecidas, desenvolvendo novas formas de concluí-las e podendo aprimorar todo o processo no qual está engajado. Dessa forma, os algoritmos apresentam inteligência e capacidade de aprender, tanto que superaram agentes humanos em diversas tarefas complexas.
O sucesso dos algoritmos levou à atribuição de infalibilidade e totalidade desses recursos. Autores como Taina Bucher (2018) encaram o algoritmo como devir, abordando os aspectos elementares de sua arquitetura geral mostrando como eles figuram como um vir a ser que celebrará relações sobre as quais incidirá sua intervenção. Em outras palavras, os algoritmos não promovem uma previsão determinística ou intervenções infalíveis sobre seus usuários e objetos. Eles são um fator participante, hoje poderoso, na modelagem de uma realidade que sobrevirá e que como dispositivos são continuamente moldados também por dados externos.
A popularidade dos algoritmos com usuários humanos também depende da dimensão da transferência, pois é necessário supor que eles saibam sobre as nossas necessidades na nossa vida ou qualquer tipo de tarefa. Dessa forma, podemos formalizar determinadas relações de sujeitos com os algoritmos através do algoritmo da transferência.
O analista, no seu convite ao trabalho na clínica, partidário de uma ética radicalmente distinta dessa suposição totalizante, não só para os algoritmos, pode se servir da economia de demandas nos ambientes digitais, na medida em que pode ingressar nesse circuito, colocando-se como objeto particularizado passível de uma relação de transferência.
Ao fazê-lo, o analista pode encontrar um novo nicho para sua clínica, desde que consinta com a perda provisória de sua sede, previamente imposta pelo isolamento social. A perda de alguns caracteres julgados essenciais para uma análise celebra a dinâmica e a atualização dessa atividade, mantendo-a em consonância com a subjetividade da época. Trata-se de um arranjo possível, não universalizável, mas que convoca, na sua dimensão de ato, os elementos essenciais da clínica psicanalítica diante dos impactos dos recentes eventos.
Segundo Lacan ([1958] 1998), em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, o analista continuamente paga com seu ser em sua atividade. Sua existência tênue está condicionada a sua colocação em uma relação de transferência sustentada pela ilusão do suposto saber. É a partir da ilusão de que a verdade do sujeito está no psicanalista, que um sujeito pode entrar em análise. O psicanalista se faz o objeto ou, em outras palavras, entra nessa cena, de acordo com as vestimentas dadas pelo analisante. Para isso, deixará de lado sua pessoa, seu Eu, para se fazer esse objeto.
Por isso, no Seminário 15: O ato psicanalítico,Lacan (1967-1968, p. 57) citado por Meireles (2012, p. 128) esclarece:
O que constitui o ato psicanalítico como tal é muito singularmente esta simulação [...], simular que a posição do sujeito suposto saber seja sustentável.
Considerações finais
Diante de um efeito decorrente da pandemia, o analista se viu implicado na escolha de adotar um novo - para alguns nem tão novo - modo de prosseguir em sua clínica, de maneira on-line, através do computador e do celular. Foi possível entender que a pandemia produz efeitos sobre a ordem social e incide de maneira singular sobre cada sujeito. Cada um tem nos mostrado as incidências deste novo contexto na sua vida, as invenções possíveis diante disso, bem como as dificuldades e os sintomas que se formam.
Então, diante da escolha que o analista faz, implicado pelos efeitos que uma crise instaura inclusive na cena analítica, retomamos a questão, já colocada anteriormente, que tem nos orientado em nosso trabalho: atender neste tempo, e deste modo, seria um ato analítico? Apostamos no sim. Com isso, estamos testemunhando um ato analítico frente ao acontecimento da pandemia. Essa resposta, advinda do campo do desejo, não comporta concessões e não se inscreve enquanto garantia.