O pensamento obsessivo é feito de ideias repetitivas que se manifestam em uma série de ações das quais o sujeito parece ser incapaz de escapar, ideias que são camufladas e deslocadas diante de um fértil imaginário. O sofrimento psíquico do neurótico-obsessivo passa, atualmente, por novas formas das quais ele deve lançar mão, seja estrategicamente, ou não, para que não venham à tona sua paralisia, sua culpa e a falta que carrega.
Por outro lado, mesmo que eventualmente nele resulte um sofrimento, o obsessivo ainda está teimosamente ligado a táticas pessoais que contêm um excedente insuportável de gozo, em que o fantasma do pai morto, em declínio na sociedade atual, faz com que a neurose obsessiva seja uma estrutura psíquica inerente às regras impostas ao meio social contemporâneo.
O obsessivo atual tenta compensar a antiga potência do pai, avalizando esse pai morto, degradado, fazendo-se valer de algo mítico para salvar aquele antigo herói, cujas proezas são enumeradas repetidamente. Isso o enjaula, o aprisiona, tal qual um homem-rato que corre na roda giratória infindável de sua própria fantasia, uma vez que seu pai, outrora cheio de proezas, não mais lhe “interessa” culturalmente como antes.
Isso implica que os atributos da neurose obsessiva, no caso desses homens-ratos que rodam na roda giratória da contemporaneidade, estejam sempre numa dívida implacável com a sociedade. Entretanto, as relações com o gozo não são mais como as de antigamente. Os gadgets, por exemplo, fornecem gozos prontos, adequados aos que não desejam por si. E os obsessivos entram nesta roda giratória de homens-ratos, da qual não é possível sair, e onde o imperativo é “rode”, ou melhor, “goze”.
Além disso, há aspectos da sociedade moderna que são inseparáveis de uma certa produtividade exacerbada do obsessivo, para que a dívida do pai morto seja paga com inúmeras contribuições a partir de seu pensamento e de suas dúvidas. Dentro da própria contextualização do sistema como um lugar no qual cada indivíduo é supostamente livre, o obsessivo tem momentos de interrogação permanente sobre seu saber, pois esse saber deveria trazer uma solução para a questão das novas formas de gozar.
Será que podemos pensar que esse aspecto fantasmático que assombra a realidade cotidiana do obsessivo está numa metonímia real de gozo, a qual se opõe ao mito do pai decaído? Como ele age diante das novas realidades que lhe são apresentadas, já que hoje é a posição simbólica do pai que prevalece nas relações interpessoais, o que faz com que suas estratégias imaginárias se tornem cada vez mais complexas, uma vez que seu pai está humilhado (o que pode levar à aparição de sua condição faltosa)?
Hoje qualquer sujeito como tal é inserido no sistema ideológico de regras atuais como um indivíduo que percebe, conhece e escolhe entre diversos caminhos alternativos de ação. Porém, na específica condição patológica da neurose obsessiva, trata-se de um sujeito-rato, produto da roda giratória do capitalismo, em que ressoam incertezas, procrastinações, impotências, ressentimentos sobre um mundo que o torna culpado, em seu âmago, por seu fracasso. Essa é a condição do homem-rato, que ocupa esse lugar em seu sofrimento psíquico.
Elaboremos alguns traços de comportamentos sociais que justificam a afirmação de que nossa sociedade atual apresenta um padrão de atributos aprisionantes, tendo como alvo qualquer sujeito neurótico, seja ele um homem-rato, ou não. Vivemos uma entidade da incerteza. Surpreendentemente, podemos pensar que esses atributos que aprisionam a sociedade são encontrados precisamente na falsa ideia de liberdade que é passada ao indivíduo atual, por exemplo, a liberdade de escolha, de como se deve viver para ter uma vida ideal, do que comprar e com quem se deve “conectar” com seus gadgets, em suas redes sociais.
Slavoj Žižek (2017, p. 62-63) diz:
[...] na economia libidinal predominante, a relação com um Outro humano é gradualmente substituída pela captura dos indivíduos por aquilo que Lacan batizou com o neologismo les lat houses: objetos-engenhocas consumistas que atraem a libido com a promessa de proporcionar um prazer excessivo, mas que, efetivamente, reproduzem apenas sua própria falta. [...] É assim que a psicanálise aborda o impacto subjetivo de novas invenções tecnológicas: “a tecnologia é um catalizador, ela amplia e reforça algo que já está presente - nesse caso um fato virtual fantasístico.
Podemos dizer que vivemos algo de uma falsa “tirania da escolha”. Temos que escolher, só que não. Para onde quer que olhemos em nossa sociedade, estamos confrontados por uma gama desconcertante de coisas, itens, produtos, parceiros, serviços, de curto prazo, num “mundo líquido”, como disse Zygmunt Bauman.1
O custo de vida nestes tempos de falsas opções infinitas é a ansiedade e a depressão generalizadas diante da necessidade de se escolher entre tudo o que é oferecido. No caso do neurótico-obsessivo, a possibilidade de uma decisão ser calamitosa, ou de que suas estratégias sejam descobertas piora exponencialmente a angústia vivida na contemporaneidade.
Entretanto, podemos pensar que o sujeito obsessivo, um homem-rato, aprisionado desse sistema ideológico, que roda infindavelmente, talvez precise, por sobrevivência, de novas estratégias, pois essa falsa gama de escolhas continua a ameaçar sua castração. Assim, nos momentos de “decidir” de fato, ele pode continuar a negar seu desejo, diminuindo o ritmo, indo para o último lugar na fila da roda giratória, já que a sociedade praticamente pode decidir por ele: para onde se deve viajar, o que se deve vestir, onde se deve comer, o que comer, para onde viajar, o que gera mais likes no Instagram, etc. Vamos percebendo as nuances da estrutura neurótica-obsessiva, uma vez que podemos verificar, em outras estruturas psíquicas, sofrimentos diversos, que também advêm dessa falsa escolha, ou melhor, dessa escolha forçada, imposta pelo conjunto de regras ideológicas atuais.
Parece-nos que as escolhas de vida são descritas praticamente nos mesmos termos das escolhas de um consumidor: para se fazer uma escolha “perfeita”, nada, de fato, precisa ser decidido, pois todas as opções, que nada têm de verdadeiramente diferente ou inovador, já estão expostas na prateleira, é só “pegar”. Porém, mesmo assim, tem-se a sensação de liberdade, de que se decidiu algo: Pepsi ou Coca-Cola? Chocolate com ou sem muito cacau? Café com cafeína ou descafeinado? Leite desnatado ou semidesnatado? Miami ou Orlando?
A “cultura de conselhos” e de autoajuda de hoje também apresenta saídas a qualquer um, porém pensamos que o obsessivo deve fazer bom uso dela, pois assim ele é ensinado a como ter a melhor performance, como procurar um carro adequado, como deve se vestir, qual relógio usar, como ter o sono de um anjo, técnicas para desapegar, até mesmo como ser um milionário.
Vamos enxergando que essa noção de escolha ilimitada, unida à falsa liberdade de escolha, é de fato uma ferramenta ideológica poderosa da atualidade. Ao mesmo tempo, podemos pensar que, quanto mais difundida se torna essa cultura - supostamente destinada a fornecer todos os ingredientes para a realização de uma vida “ideal” - mais ela pode se tornar um fardo para o obsessivo, o que explicaria por que uma de suas consequências foi a absurda expansão da cultura do conselho, fundamentada em livrar os homens-ratos da onerosa tarefa de escolher por si próprios, com um falso título de autoajuda. Trata-se, de fato, de uma questão de “passar a bola para o outro”, ou de “passar o outro rato na frente da roda”.
Supostamente livres para fazer o que quiserem de sua vida, na realidade, os homens-ratos acabam sofrendo numerosos constrangimentos, pois inevitavelmente são pegos de surpresa com os acontecimentos reais, intrusivos, em que a antecipação dos perigos (aprendidos nos livros de autoajuda ou tranquilizados com itens prontos na prateleira), de nada adiantarão. Assim, mesmo encorajados pelo sistema a agir como se estivessem verdadeiramente presentes em um mundo ideal, uma “falsa escolha” pode demonstrar que ele não estava lá, quando “deu o golpe”.
Nesse sentido, Lacan ([1958-1959] 2016, p. __) formula, no Seminário 6, a ideia de que o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente lá no lugar onde algo está realmente em jogo, que poderia ser qualificado de seu desejo. Lá onde ele arrisca o golpe, aparentemente não é lá que ele está. É desse próprio desaparecimento do sujeito, o $, no ponto de aproximação do desejo, que é preciso, se pudermos, dizer sua arma e seu esconderijo.
O estratagema do obsessivo-rato é o tempo. Ele roda, roda, vai para último lugar da fila e procrastina obsessivamente, sempre adiando seu verdadeiro desejo. Há que indagar como fica hoje o seu tempo para compreender, que é praticamente infinito. O efeito da intrusão do real é desastroso para qualquer sujeito cujos furos estão bem revestidos. Então, talvez, diante de uma situação constrangedora, em que se possa ver que seu desejo não estava lá, uma escolha aleatória (qualquer chocolate está bom, qualquer destino está ótimo, gosto de todos os leites), seja uma boa estratégia para o homem-rato contemporâneo, caso ele perceba que, de fato, não deseja nada.
Por isso, passamos a nos indagar se o obsessivo-rato está, de fato, sofrendo mais atualmente do que antigamente. Na realidade ele pode estar, ao contrário de outros sujeitos inseridos no meio social estrategicamente, se aproveitando dessa gama de escolhas falsas, pois, embora viva numa sociedade de tirania dessas escolhas, qualquer decisão tomada ou qualquer objeto escolhido vai dar na mesma.
Em outras palavras, com uma sensibilidade considerável para as consequências de ser, invariavelmente, confrontado com a necessidade de tomar decisões sobre o excesso de opções falsamente disponíveis, podemos perceber que as múltiplas instâncias de incertezas do obsessivo-rato atual estão intrinsecamente entrelaçadas com a falsa cultura de escolha contemporânea.
Entretanto, nos resta a dúvida: o obsessivo-rato contemporâneo tem, de fato, estratégias novas para tudo que vive hoje, já que pode fingir para todos a seu redor que escolhe, ou será que está mesmo sendo inserido na roda giratória do sistema atual de regras ideológicas a cada nova “falsa escolha” que deve fazer, na condição de um verdadeiro prisioneiro, girando, girando, como qualquer outro inserido na cultura atual (não necessariamente um homem-rato)?
De qualquer forma, os ajuste sem jogo na atualidade implicam a prática de estratégias para o homem-rato, para equipá-lo com a força necessária para administrar conflitos e adaptar-se à realidade imposta, sem sair de seu esconderijo.
Vimos também que a ideologia da falsa escolha anda de mãos dadas com a ideologia contemporânea do não desejo, seja dentro da neurose-obsessiva, seja fora dela.
Como diz Slavoj Zizek (2003, p. 79),
[...] o preço da felicidade é permanecer o sujeito preso à inconstância do desejo. Na vida diária, (fingimos) desejar coisas que na verdade não desejamos.
Há uma promoção do “viver o momento” e do “aceitar as coisas como elas nos são colocadas”, para qualquer um que se sinta mais “confortável” ao sentar-se no banco do passageiro e passar por todo o seu percurso só olhando a vista, e “escolhendo” o café mais fraco da prateleira, sem desejar ser o primeiro da sua própria fila e, assim, não sendo protagonista de sua vida. Paralisia.
Outro aspecto interessante é relacionar a dívida do obsessivo com a questão do “endividado” contemporâneo, que é um valor que marca a condição de muitos sujeitos, em vários níveis e locais de endividamento, inclusive hipotecas de casa, empréstimos estudantis, parcelamento de automóveis e dívidas pessoais, para pagar qualquer número de outros débitos feitos. Podemos pensar em “deslocamentos” de dívidas? De um pai rebaixado para uma prestação não paga? De um pai humilhado para um pagamento atrasado? De fato, os empréstimos e os parcelamentos se tornaram um meio de muitos viverem em um contexto social... bastante obsessivo.
Mais do que isso, podemos dizer que um sujeito-rato atual pode ser “tomado” por dívidas infindáveis, que passam a controlar seu modus operandi: do consumo à própria sobrevivência. Podemos exemplificar tal ideia com a série de TV sul-coreana chamada Round six, de Hwang Dong-Hyuk, em que centenas de jogadores falidos, endividados sem saída, aceitam participar de um estranho convite para um jogo mortal, no qual, caso sejam vencedores, conseguirão pagar suas dívidas e se tornarem milionários. “Pagar dívidas”, portanto, se torna um imperativo cada vez mais forte no modo de vida contemporâneo... bastante obsessivo.
Ou seja, diante de dívidas que não terminam e pelas quais o sujeito é responsável, a “culpa financeira” também vem se tornando uma forma de viver de maneira obsessiva-compulsiva, não explícita, ou seja, seria o endividado uma representação ideológica contemporânea do obsessivo-compulsivo, cujo pai se encontra em declínio permanente?
Para finalizar, pensemos, então o que diz Zizek (2003, p. 47) quando ele nos oferece um lema:
Para a análise contemporânea da ideologia, citada por Freud no início de A interpretação dos sonhos: acheronta movebo. Se não se pode mudar o conjunto explícito de regras ideológicas, pode-se tentar mudar o conjunto subjacente de regras obscenas não escritas (itálico nosso).
Diante dessa análise, talvez sejamos capazes de pensar melhor as supostas estratégias ou talvez as capturas ideológicas que bem servem à posição ocupada no mundo por esses homens-ratos contemporâneos, bem como as formas de gozo e os deslocamentos atuais da dívida e da culpa do obsessivo-compulsivo, ao lidar com um universo onde o declínio do pai invade sua fantasia todo o tempo, além de observar como as regras sociais implícitas também podem enlaçar outras estruturas psíquicas, gerando sofrimentos diversos na cultura atual... bem obscena.