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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.83 Belo Horizonte ene./jun. 2022  Epub 28-Out-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n83.10 

Artigo

A importância da entrevista inicial para a formação do vínculo analítico

THE IMPORTANCE OF THE INITIAL INTERVIEW FOR THE FORMATION OF THE ANALYTICAL BOND

Renata Franco Leite1 

1Psicanalista. Membro autorizado pelo Círculo Psicanalítico de Sergipe


Resumo

Diante da importância da entrevista inicial como ponto de partida para o desenvolvimento do processo/tratamento psicanalítico, o presente trabalho tem por objetivo demonstrar o quanto uma entrevista bem conduzida pode efetivamente se concretizar como o primeiro e mais importante passo para a formação do vínculo analítico. Além disso, aborda os principais aspectos dessa entrevista e apresenta outros momentos dela decorrentes, a exemplo do contrato, do enquadre e do setting.

Palavras-chave: Entrevista inicial; Vínculo analítico; Enquadre; Setting

Abstract

The initial psychoanalytic interview is undoubtedly an important starting point for the formation of the analytic bond. Considering the importance of such a bond for the development of the psychoanalytic process/treatment, this work aims to address the main aspects of this interview, as well as to present other moments arising from it that can influence the formation of such a bond, such as the contract, the setting and from the setting. The main objective is to demonstrate how a wellconducted initial interview can effectively materialize as the first and most important step in the formation of the analytical link.

Keywords: Initial interview; Analytical bond

Introdução

Os primeiros contatos entre analisado e analista acontecem, em geral, na chamada entrevista inicial. Trata-se do primeiro momento - que em alguns casos pode ser estendido para mais encontros ou atendimentos - de fundamental importância para o estabelecimento do vínculo analítico.

Esse vínculo consiste basicamente na relação que se forma entre o analisado e seu analista, uma relação que se considera bem estruturada quando fundada em preceitos básicos de confiança, respeito, consideração e partilha de um objetivo comum (Zimerman, 1999).

É certo que o vínculo analítico não decorre tão somente da entrevista inicial, mas de uma série de aspectos que dizem respeito aos primeiros contatos estabelecidos, a exemplo do contrato terapêutico, do enquadre e do setting. Entretanto, uma entrevista inicial bem conduzida, que respeita as técnicas procedimentais adequadas e conta com a competente atuação de um analista que utiliza não apenas conhecimentos técnicos, mas também faz uso de sua sensibilidade e habilidade para perceber importantes aspectos da personalidade e da vida do paciente, constitui-se, certamente, no passo mais importante para o início da formação desse vínculo.

A aliança terapêutica e a formação do vínculo

De acordo com Zimerman (2004, p. 129), a denominação “aliança terapêutica” pertence a Elisabeth Zetzel (1956), psicanalista norte-americana que

[...] concebeu um aspecto importante relativo ao vínculo transferencial, ou seja, o fato de que um determinado paciente apresente uma condição mental, tanto de forma consciente quanto inconsciente, que permita que ele se mantenha verdadeiramente aliado à tarefa do psicanalista.

Quando se fala de aliança terapêutica, o que se quer é explicitar a importância do elo e do compromisso estabelecido pelo analisando com o processo analítico, além da importância do compromisso assumido pelo analista no sentido de bem desenvolver tal processo. Pode-se dizer resumidamente que a aliança terapêutica está ligada ao compromisso entre analista e analisando com o direcionamento do trabalho.

O vínculo analítico, por sua vez, envolve a relação do analisando com o seu analista. Conforme Barros (2013, p. 76), “o vínculo precisa ser estabelecido para gerar confiabilidade nessa relação e, dessa forma, o paciente se sentirá ‘cuidado’ [...]”. Zimerman (2004, p. 65) fala do vínculo analítico como “uma relação nivelada pelos aspectos humanos de respeito, consideração e partilha de um objetivo comum”.

Sendo assim, podemos dizer que, para que a aliança terapêutica e o vínculo analítico sejam formados, é necessário um fator extra e inicial que de alguma forma propicie esse acontecimento. Por isso, a entrevista inicial é muito importante para favorecer essa interação e em que possam se desenvolver os aspectos necessários para a construção da relação entre analisando e analista.

A entrevista inicial: conceituação e finalidades

Em termos gerais, a entrevista psicanalítica é entendida como o primeiro (ou o principal) contato entre o analista e o analisando. Gastaud (2008, p. 104) enfatiza a importância da entrevista como método clínico e informa que se trata de uma técnica de investigação científica em psicologia e que,

[...] por se tratar de uma técnica, possui procedimentos empíricos com os quais se aplica o conhecimento, fazendo coexistir no psicólogo clínico as funções de investigador e profissional.

Essa ‘dupla função’ pode ser observada na medida em que o analista não se utiliza tão somente de seus conhecimentos técnicos, mas também de sua sensibilidade e habilidade para perceber importantes aspectos da personalidade e da vida do paciente, de modo a se tornar capaz de avaliar a real indicação para um processo/ tratamento psicanalítico.

Nesse sentido, Etchegoyen (2004), ao descrever a estrutura e os objetivos da entrevista, afirma que esse contato é fundamental para o analista perceber se o sujeito tem o perfil para um processo/ tratamento psicanalítico, ou seja, se estão presentes os critérios de analisabilidade descritos por Freud, bem como identificar as possíveis indicações e contraindicações acerca do processo.

A propósito da palavra “contato”, Zimerman (1999, p. 281) explica que se trata mesmo de ver o seu significado pela própria formação da palavra, pois ‘con’ significa ‘junto com’ e ‘tato’ significa “um ‘pele a pele’ emocional, que tanto pode evoluir para um rechaço quanto para uma empatia”.

Dessa forma, a entrevista inicial já se mostra como o primeiro passo para que tanto o analista quanto o paciente decidam se realmente pretendem dar continuidade a um convívio que será longo, profundo, íntimo e imprevisível (Zimerman, 1999).

Ainda no âmbito da conceituação, é importante distinguir a entrevista inicial da primeira sessão. Zimerman (2004, p. 58) explica que “a(s) entrevista(s) inicial(is) antecede(m) o ‘contrato’, enquanto o termo ‘primeira sessão’ concerne ao fato de que a análise já começou formalmente”. Gastaud (2008, p. 104) esclarece que

[...] a partir do momento em que os encontros passam a ter uma periodicidade estipulada e regular, eles deixam de constituir uma entrevista propriamente dita [...] os objetivos de uma entrevista e da psicoterapia são radicalmente diferentes: em um caso é orientar uma pessoa para determinada atividade terapêutica; no outro, realiza-se o que antes se indicou.

E para esclarecer ainda um pouco mais a respeito da conceituação da entrevista inicial, Bleger (1971) citado por Etchegoyen (2004), descreve a diferença entre anamnese, interrogatório e entrevista. A anamnese seria tão somente uma investigação de dados preestabelecidos a respeito de uma sintomatologia, considerando seu início e sua evolução. O interrogatório, por sua vez, é feito através de perguntas e visa essencialmente obter informações a respeito do que o entrevistado sabe conscientemente. A entrevista, mais ampla e completa, pretende garantir a percepção de como o indivíduo funciona e não de como ele diz que funciona, ou seja, permite que o sujeito se expresse de forma mais livre, de modo que o psicanalista consiga perceber o seu funcionamento.

Existem algumas normas e diretrizes para que a entrevista ocorra de maneira adequada. No entanto, mais do que as formalidades e um processo rígido, é fundamental que o analisando possa se expressar livremente, sem a sensação de estar sendo interrogado. Apresentando posicionamento de diversos autores, Etchegoyen (2004) procura demonstrar a importância de uma primeira expressão empática, seja através de gestos, de olhares ou de questionamentos simples. Acredita-se que, nessas primeiras impressões empáticas, o analisando inicia o processo de vinculação, já que é ali que se iniciam as primeiras questões transferenciais e contratransferenciais.

Etchegoyen (2004) evidencia, portanto, que essa avaliação feita na entrevista inicial é fundamental para o diagnóstico e a orientação acerca do processo terapêutico e nesse momento o vínculo começa a se estabelecer.

Quanto às muitas finalidades da entrevista inicial, Zimerman (1999) fala da importância da primeira avalição pelo analista das condições gerais que envolvem a vida do paciente e, assim, a modalidade de terapia mais indicada. Menciona também a qualidade da motivação do paciente e sua expectativa quanto ao tratamento e à oportunidade que se abre para o psicanalista elaborar uma impressão razoavelmente segura do modo como o paciente processa a própria comunicação entre o seu consciente e seu inconsciente. Afirma ainda que a entrevista inicial proporciona ao terapeuta uma ideia clara de seus próprios alcances e limitações. Por fim, resume dizendo que a finalidade maior é “avaliar a analisabilidade e a acessibilidade do pretendente à análise” (Zimerman, 1999, p. 283).

A respeito do significado de analisabilidade e acessibilidade, Zimerman (1999, p. 283) apresenta o entendimento de Etchegoyen (1986) que, baseado em Zetzel (1956), considera a analisabilidade como

[...] o primeiro é o critério clássico empregado para a referida indicação de análise, o qual se baseia fundamentalmente nos aspectos do diagnóstico clínico [...] e prognóstico, como uma antecipação de possíveis riscos e frustrações.

Quanto à acessibilidade, Etchegoyen (2004, p. 35) baseia-se em B. Joseph e a considera como o critério voltado principalmente “para a disponibilidade e a capacidade de o paciente permitir um acesso ao seu inconsciente”, de modo que o interesse do psicanalista fica dirigido

[...] não é dirigido para a doença, mas muito mais para a sua “personalidade total”, notadamente para a reserva de suas capacidades positivas (Zimerman, 2004, p. 60).

A entrevista inicial pretende, portanto, possibilitar ao analista observar o sujeito que está diante dele e avaliar, de acordo com os critérios citados, se é prudente iniciar o tratamento e, então, traçar as possíveis estratégias para isso. Ou ainda, a depender do perfil apresentado naquele momento, se é o caso de encaminhar o paciente para outro tipo de tratamento.

Vale ressaltar ainda que, de acordo com Zimerman (1999), a entrevista inicial nem sempre se resume a uma única entrevista, ou seja, a avaliação inicial pode exigir um período mais longo, maior número de contatos preliminares. Em outras palavras, antes do estabelecimento do contrato, pode haver mais de um encontro sem que isso se caracterize como início do processo terapêutico. É nesse sentido que, embora utilize em sua obra a expressão mais usual - entrevista inicial -, o autor considera a possibilidade de mudança de nomenclatura para “entrevistas de avaliação” ou “entrevistas preliminares”.

Por fim, é importante acrescentar que, ao ser encerrada a fase da entrevista inicial, é aconselhável que haja um momento de devolução, em que o analista se posiciona, embora sem grandes detalhamentos, frente ao analisando.

Penso que a devolução não deve ir além do objetivo básico da tarefa realizada, isto é, aconselhar ao entrevistado o tratamento mais conveniente, a indicação com seus fundamentos, sempre muito sucintos (Etchegoyen, 2004, p. 48).

Embora tenha o objetivo voltado para o trabalho do analista, a entrevista acaba por apresentar sentido à possível relação que está por se estabelecer. É a partir da entrevista inicial que os primeiros conceitos e técnicas vêm a se formar, de maneira que o vínculo se inicia e tende a se fortalecer gradativamente, levando o paciente a entrar em análise.

Enquadre, setting e contrato analítico - aspectos posteriores à entrevista inicial que podem influenciar na formação do vínculo

Existe, na literatura técnica psicanalítica, certa ‘confusão’ quanto a esses termos. Alguns autores tratam o enquadre como sinônimo de contrato; outros diferem-no do contrato e o tratam como sinônimo do setting; outros ainda apresentam distinção entre as três expressões.

Após diversas leituras, é possível entender que o contrato é uma das primeiras etapas do processo terapêutico e o ponto mais concreto da relação, embora seja realizado sempre de forma verbal. Ele ocorre após o psicodiagnóstico e deve ter clareza e objetividade, já que irá orientar todo o processo.

O enquadre analítico, por sua vez, vai além. Dias e Berlinck (2011, p. 227) explicam:

O enquadre está referido ao estabelecimento da regra fundamental da psicanálise, na qual o paciente deve falar tudo que lhe vier à cabeça, sem censura, orientado por um pensamento livre associativo [...] o analista deve manter uma escuta movida por uma atenção flutuante à fala do paciente. [...] estabelece um compromisso do analista e do analisando [...] a regra é fundamental porque funda, constitui, dá início ao tratamento e, por isso, precisa ser explicitamente declinada pelo psicanalista e formalmente aceita pelo analisando.

Assim, o enquadre abrange o perfeito esclarecimento dos papéis, delimitando as funções do terapeuta e do paciente, além dos aspectos como a determinação de lugar, os horários em que acontecerão as sessões e os honorários.

Zimerman (2004, p. 67) informa que o setting é o mesmo que enquadre; tratase de tradução do termo para o nosso idioma. Mas durante a leitura de sua obra, é possível perceber uma abrangência um pouco diferente quando trata das duas terminologias. O autor conceitua setting como a soma de todos os procedimentos que organizam, normatizam e possibilitam o processo psicanalítico. Assim, o setting resulta de uma conjunção de regras, atitudes e combinações, como as contidas no “contrato analítico”. Até aí o sentido parece ser o mesmo do enquadre definido por Dias e Berlinck (2011). Mas Zimerman (2004) reafirma por diversas vezes a importância da manutenção do setting, mostrando a importância para o paciente, na situação psicanalítica, da garantia do setting instituído. E faz, então, referência tanto a um “setting externo” (constância de lugar, horário, regras, limites, etc.), como a um “setting interno” do analista (a sua autêntica atitude psicanalítica interna). E conclui que

[...] por meio de um sagrado respeito ao seu espaço e tempo - propiciado pelas combinações do setting - o analisando vai reconhecendo o seu território, os seus direitos e limitações em relação ao mesmo e, sobretudo, vai desenvolvendo um sentimento de pertencência (Zimerman, 1999, p. 171).

Moreira e Esteves (2012, p. 6) também dão amplitude maior ao setting:

[...] o setting é mais do que os aspectos físicos do ambiente de terapia ou das combinações estáticas do contrato, ou seja, ele é recheado pela forma como a relação dos dois se encontre, pela aliança terapêutica, pelas questões éticas e pela confiança mútua.

Isso, evidentemente, corrobora a afirmação que aqui se faz no sentido de que a formação do vínculo analítico se inicia na entrevista inicial e vai se fortalecendo e reafirmando nos passos seguintes do processo terapêutico.

Conclusão

Quando entendemos os conceitos preestabelecidos sobre as técnicas adotadas no processo psicanalítico, podemos perceber como todo o processo é importante para o desenvolvimento do sujeito em sua análise.

Percebemos através das ideias apresentadas que a entrevista tem importância fundamental para o início do processo, não apenas por ser o primeiro passo para o desenvolvimento da análise, mas também por estabelecer o vínculo com o analista que, de alguma forma, se inicia nesse momento.

É importante ressaltar que a formação do vínculo nem sempre ocorrerá na entrevista. Afinal, ele pode se estabelecer ao longo do processo ou pode sequer acontecer, a depender do processo de transferência e contratransferência que venha a se desenvolver. O contrato, o enquadre e o setting, por sua vez, também se mostram como fortes aliados na construção do vínculo analítico.

Sendo assim, concluímos que é fundamental o analista entender cada um dos conceitos para que as necessidades do sujeito possam vir a ser percebidas e logo direcionadas para o processo analítico. Voltamos a ressaltar, como é o objetivo deste artigo, a importância da entrevista inicial não apenas para a formação do vínculo, mas principalmente para a construção do processo psicoterápico. j

Referências

BARROS, G. O setting analítico na clínica cotidiana. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, MG, n. 40, p. 71-78, dez. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000200008&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 02 abr. 2016. [ Links ]

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MOREIRA, L. M.; ESTEVES, C. S. Revisitando a teoria do setting terapêutico. Psicologia.PT, p. 1-8, maio 2012. Disponível em: http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0628.pdf. Acesso em: 02 abr. 2016. [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre, RS: Artmed, 1999. [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre, RS: Artmed, 2004. [ Links ]

Recebido: 18 de Janeiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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