“O estilo é o homem”. Com essa citação, Lacan inicia o texto que abre a coletânea de seus escritos.1 Ao longo desse texto de abertura, a frase em questão é acrescida de algumas ressalvas e ponderações que levam o leitor a concluir, ao fim das contas, que o estilo não é o homem. Essa virada se dá por meio de dois passos principais. No primeiro deles, Lacan afirma que o estilo não é o homem que fala ou escreve - como quereria Buffon, o autor da frase -, mas o homem a quem nos dirigimos. Essa inversão, indica Lacan ([1966] 1998, p. 9), é necessária para satisfazer o princípio de que, na linguagem, o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem invertida:
O inconsciente é o discurso do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa, sua própria mensagem esquecida (Lacan, [1966] 1998, p. 440).
No segundo passo, Lacan desfaz toda ilusão quanto à substancialidade disso a que chamamos o Homem. E aprofunda esse desencantamento ao indicar que o sujeito é alienado aos significantes que o nomeiam e ao evidenciar que o sujeito é constituído a partir do objeto - um objeto faltoso, caído, ausente, e que constitui, para esse sujeito, causa de desejo. Desse modo, pode-se reconhecer que, para Lacan, dizer “o estilo é o homem” equivale a dizer que o estilo é condicionado pelo objeto:
É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo. Ao mesmo tempo como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si (Lacan, [1966] 1998, p. 11).
Numa perspectiva mais ampla, podese dizer que o estilo adotado por Lacan em seu ensino é ditado pelo próprio objeto da psicanálise, um objeto pervasivo e fugidio. Esse estilo é também fruto do intuito declarado pelo autor de que, no confronto com seus textos, o leitor “precise colocar algo de si” - talvez do mesmo modo como, para passar a habitar a linguagem, o sujeito precisa dar de si uma “libra de carne”, em uma perda que corresponde precisamente a essa queda do objeto a que alude Lacan no trecho citado. O estilo de Lacan deriva ainda da sua constatação de que não há metalinguagem, isto é, de que não é possível recorrer a um ponto exterior fora da linguagem, ou seja, de que “não há Outro do Outro”.
O estilo do ensino de Lacan não varia muito quando se compara a produção oral, que constitui o principal da obra lacaniana, com a produção escrita, que é muitas vezes um derivado do material enunciado antes oralmente (Iannini, 2013, p. 266-267).2 Aliás, a maneira como Lacan transita entre o oral e o escrito parece influenciar sua concepção da interpretação analítica. Isso se evidencia, por exemplo, no modo como ele concebe o trabalho do analista em termos de uma leitura do sintoma e de uma escuta que, em um exercício de “leitura do que se ouve no significante” (Lacan, [1972-1973] 1985, p. 47), faz passar ao escrito aquilo que é dito pelo analisante. Sob essa perspectiva, parece possível identificar certa recorrência de traços não só entre os ditos e os escritos lacanianos, mas também entre o estilo do ensino de Lacan e o estilo da práxis analítica mesma que ele ensina e performa.
A conjugação entre os registros científico e literário que marca o estilo de Lacan indica uma convergência para a forma-ensaio em sua obra. Em geral, a forma-ensaio, ao aliar o rigor conceitual ao cuidado estético, parece ser a mais apropriada para o discurso psicanalítico e para o lugar híbrido que, por força de seu próprio objeto, a psicanálise ocupa entre ciência e arte. E no discurso lacaniano, especificamente, a formaensaio se impõe menos por capricho estético que por uma necessidade de método. Isso se dá, sobretudo, na medida em que a obra lacaniana trata de abolir a miragem da metalinguagem. O resultado disso é que, no discurso lacaniano, o estilo assume estatuto de método.3 Em Lacan, “[e]stilo é método imerso no objeto, inseparável dele. Parafraseando o achado de Picasso, repetido várias vezes por Lacan, poderíamos dizer que lá onde o método procura, o estilo encontra” (Iannini, 2013, p. 271). Em todo caso, a ensaística lacaniana, propõe Iannini (2013, p. 272), é uma ensaística fraturada, na medida em que nela se intercalam outros modos de formalização discursiva:
Entre ciência e estilo, não apenas a formaensaio se interpõe, mas também certo gosto pela forma aforística no interior dessa forma, assim como procedimentos escriturais herdados da sintaxe poética moderna, além de tudo aquilo que gira em torno da ética do bem-dizer (Iannini, 2013, p. 272, grifos nossos).
Os aforismos lacanianos - entre outros, “a mulher não existe”, “não há relação sexual”, “o inconsciente é a política”, “não há Outro do Outro” -, decididamente exigem que o leitor coloque algo de si para entender o que declaram. Mesmo porque eles constituem “enunciados do impossível de dizer” (Iannini, 2013, p. 256). Esses ditos expressam uma das maneiras que tem Lacan para corresponder à sua constatação - também declarável em forma de aforisma - de que “só é possível semi-dizer (sic) a verdade”, dado que a “a verdade é não-toda”.
Nesse sentido, observa Iannini (2013, p. 257),
Lacan recorre à forma aforismática quando se trata de dizer, ou melhor, de semi-dizer, aquilo que aparece como impossível de dizer [...] (grifos do autor).
Os aforismas constituem, em todo caso, um recurso utilizado por Lacan de modo pontual, embora quase sempre em pontos nodais de articulação do seu discurso. Além disso, comenta Iannini (2013, p. 257), o próprio autor retoma seus principais aforismas e trata de decompôlos em paráfrases de discurso teórico, de modo a reinseri-los no fluxo de sua exposição.
No que concerne à herança advinda da poética moderna, autores como Badiou identificam no torneio da frase lacaniana a influência da poesia de Mallarmé:
Era uma prosa teórica [a de Lacan], um estilo que combinava, justamente na própria prosa, os recursos do formalismo e os recursos de meu único mestre verdadeiro em matéria de poema, que era Mallarmé (Badiou, 2004 citado por Iannini, 2013, p. 258).
A respeito dessa aproximação, comenta Haroldo de Campos ([1989] 2010, p. 175):
O paralelo cabe à maravilha, já que, na esteira de Mallarmé, Lacan é também um syntaxier (um “sintaxista”), um exímio manipulador da sintaxe francesa até os seus extremos limites de diagramação frásica [...].
A obscuridade atribuída por parte da crítica à escrita de Mallarmé é, por vezes, equiparada à de Góngora, o “Príncipe das Trevas do barroco espanhol” (Campos, [1989] 2010, p. 174). Haroldo ressalva, contudo, que a obscuridade gongoriana pode ser reinterpretada “como um efeito de deslumbramento, de ofuscação, provocado por uma radiação estética de hiperluminosidade” (Campos, [1989] 2010, p. 174). Já quanto à obscuridade usualmente imputada ao discurso de Lacan, observa Iannini (2013, p. 308) que, em face da resistência que o objeto da psicanálise oferece à apreensão conceitual, Lacan repele o recurso ao obscurantismo - que consistiria em se resignar à opacidade do objeto de modo a proclamar sua inefabilidade - e, ao fazê-lo, assume uma posição ética que recusa o silêncio como resposta válida às aporias da conceituação. O resultado dessa posição lacaniana, em termos do estilo adotado e dos efeitos por ele produzidos, é que “[o] estilo, quando toca o real do sujeito por meio do objeto, atravessa a tela fantasmática dos impasses da formalização, para escrever o impossível como impossível” (Iannini, 2013, p. 308).
E com referência à figura por vezes sugerida de um Lacan barroco, comenta Erik Porge:
O estilo maneirista e barroco de Lacan [...] é a marca de sua própria dessubjetivação diante do objeto que determina o sujeito (Porge, 2001 citado por Iannini, 2013, p. 300).
A meu ver, em que pesem essas considerações de Porge e de Iannini, parece-me inegável que boa parte do caráter labiríntico, vertiginoso, obscuro mesmo, dos ditos e escritos de Lacan se deve a uma escolha deliberada do autor, ditada mais por sua posição subjetiva em face de seu discurso e de seu auditório do que por uma particularidade do objeto por ele visado. Seja como for, o próprio Lacan acolhe, ainda que com certa ironia, essa aproximação de seu estilo com o barroco e, nomeadamente, com a figura de Góngora:
Não há forma do estilo, por mais elaborada que seja, em que o inconsciente não abunde, sem excetuar as eruditas, as conceptistas e as preciosas, que ele [Freud] despreza tão pouco quanto o faz o autor destas linhas, o Góngora da psicanálise, segundo se diz, para servi-los (Lacan, [1966] 1998, p. 469).
Em suma, Haroldo de Campos parece acertar o alvo quando retrata Lacan, quanto ao estilo, como “este Freud gongorizado pelo fantasma retrospectivo de Mallarmé”, e quando o classifica entre os pensadores “fascinados pela dimensão escritural da linguagem” (Campos, 1992 citado por Iannini, 2013, p. 289).
Já no que concerne à “ética do bem-dizer”, costuma-se evocar a figura de Quintiliano, o provável autor dessa expressão, como uma referência de fundo do discurso lacaniano, e, de modo mais amplo, menciona-se a presença de recursos argumentativos da retórica clássica, e mesmo da sofística,4 no discurso de Lacan. No entanto, interessa-me mais especialmente aquilo que Lacan recebe da ética do bem-dizer por intermédio da gaia ciência. E aqui, trata-se menos da gaia ciência a que alude Nietzsche5 do que daquela à qual se dedicam os trovadores medievais. O motivo de meu interesse pela gaia ciência dos trovadores se deve ao fato de que esse saber alegre, desenvolvido por eles no trato com a materialidade fônica do significante e seus efeitos de gozo, é uma das expressões mais impressionantes daquilo que Lacan designa como o “saberfazer com lalíngua” (Lacan, [1972-1973] 1985, p. 179).
Nesse sentido, o gaio saber vai além de meramente exercer uma influência de fundo no discurso de Lacan. Ao constituir uma expressão especialmente potente do saberfazer com lalíngua,6 o gaio saber se afigura como um referencial no horizonte do final de análise, naquilo que essa experiência envolve de “queda do objeto” (Lacan, [1966] 1998, p. 11) e de configuração desse objeto caído como elemento de estilo. E não se trata de um estilo pré-fabricado que se possa aprender do analista. Trata-se, antes, de um estilo singular, expressão de um saber que cabe a cada ser falante inventar à sua maneira, enquanto se vê às voltas com a travessia da fantasia - e seus consequentes processos de destituição subjetiva e queda do objeto - e com a invenção de um arranjo, uma bricolagem, para essas peças soltas, caídas, para esses troços de real, não simbolizáveis, intratáveis, que restam ao final de uma análise. Dito de outro modo, o estilo assim constituído, fruto de um saber alegre, é o estilo de alguém que renuncia a entronizar morbidamente o objeto ausente como um objeto maisde-gozar e passa a bem-dizer esse objeto em seu estatuto de causa de desejo.