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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.83 Belo Horizonte ene./jun. 2022  Epub 28-Out-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n83.13 

Artigo

Psicanálise e cinema: fantasia, desejo, trauma e ficção

PSYCHOANALYSIS AND CINEMA: FANTASY, DESIRE, TRAUMA AND FICTION

Mardem Leandro Silva1 

Psicólogo graduado pela PUC Minas. Mestre em psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ-MG). Doutor em psicologia pela UFMG.

Helena de Almeida Cardoso Caversan2 

Graduada em psicologia pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG - Divinópolis). Tem experiência na área da psicologia clínica pelo viés psicanalítico, presencial e on-line

Elizabeth Fátima Teodoro3 

Psicóloga graduada pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG - Divinópolis).

Daniela Paula do Couto4 

Psicóloga graduada pela PUC Minas. Mestre em Psicologia pela UFSJ.

1Professor e chefe do departamento de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG - Cláudio)

2Mestranda em psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ-MG)

3Mestre e doutoranda em psicologia, na linha de pesquisa Fundamentos teóricos e filosóficos da Psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ-MG)

4Doutoranda em Psicologia UFMG. Professora do curso de psicologia da PUC Minas


Resumo

Pensando a relação psicanálise-cinema, objetiva-se apresentar algumas aproximações possíveis entre fantasia, desejo, trauma e ficção, por meio de uma investigação teórica. Depreende-se que essa relação se daria justamente no espaço de elaboração entre o que seria possível de conjecturar frente ao encontro traumático com o real. Em outras palavras, na elaboração do que seria o real traumático na perspectiva de uma narrativa, da fantasia, de uma ficção suportável. Por consequência, o cinema, assim como a fantasia, seria uma elaboração nos termos de uma estrutura de ficção sobre o real como impossível de ser plenamente simbolizado.

Palavras-chave: Desejo; Fantasia; Ficção; Trauma

Abstract

Thinking about the psychoanalysis-cinema relationship, the objective is to present some possible approximations between fantasy, desire, trauma and fiction, through a theoretical investigation. It appears that this relationship would take place precisely in the space of elaboration between what would be possible to conjecture in the face of traumatic encounter with the real. In other words, in the elaboration of what would be the traumatic real in the perspective of a narrative, of fantasy, of a bearable fiction. Therefore, cinema, like fantasy, would be elaborations, in terms of a fictional structure over the real as the impossible to be fully symbolized.

Keywords: Desire; Fantasy; Fiction; Trauma

Introdução

O fundamento de articulação entre psicanálise e cinema pode ser localizado na dinâmica lógica dos conceitos analíticos, na perspectiva decisivamente clínica que sua prática promove ao escutar o que se desdobra no arco dramático das cenas cinematográficas. A essa forma de escutar dá-se o nome de escuta fílmica, que se refere a uma prática de extração de cenas que ambicionam articular a prática clínica psicanalítica com recortes existenciais dos filmes, extraindo uma espécie de vinhetas clínicas para tornar comensurável um conceito e seu correspondente dramático.

Partindo dessa articulação entre psicanálise e cinema, conceitos como fantasia, trauma e desejo podem ser explorados para apresentar um verdadeiro cenário de ficção do sujeito. Com isso, não sustentamos que o sofrimento neurótico seja uma ficção, mas que “a verdade tem uma estrutura, se podemos dizer, de ficção” (Lacan, [1956-1957] 1995, p. 258-259), ou seja, o sofrimento já é uma forma de suportar uma dimensão de real, um mal-estar irredutível estrutural (Dunker, 2015).

Para tanto, objetivamos apresentar os pontos de aproximação da psicanálise e do cinema no que tange à fantasia, ao desejo, ao trauma e à ficção, por meio de uma investigação teórica de base psicanalítica.

Sabemos que, por definição, um conceito implica a proposição de respostas provisórias para questões específicas e, em psicanálise, esse gesto se refere a respostas que buscam investigar a posição do sujeito em meio ao seu sofrimento. Assim, este texto busca associar ao resultado formal e abstrato do conceito sua dinâmica dramática e existencial - conteúdo vivencial imprescindível para sua inteligibilidade e perspectiva de aplicação. Nesse aspecto, a pesquisa sobre psicanálise e cinema compõe um sofisticado recurso para mais inteligibilidade crítica da dinâmica teórico-clínica das noções de fantasia, desejo, trauma e ficção.

Psicanálise e cinema: entre a fantasia e o desejo

Inicialmente, vale destacar que, aqui, o cinema é entendido não só como imagem, ficção e narrativa, mas também como um campo de formulação e representação de problemas cruciais sobre a subjetividade e suas modalidades de sofrimento - que perpassam a cultura contemporânea tal qual a literatura, tão utilizada por Freud nas articulações de sua produção conceitual, que atravessavam o contexto cultural do século passado (Weinmann, 2017).

A psicanálise, por sua vez, é definida como uma teoria do funcionamento psíquico, que teria como condição a dinâmica do método clínico, que possuiria como pressuposto de atividade a hipótese de que o simbólico poderia cifrar algo da ordem do real, ou seja, a fala e os atos do paciente poderiam modificar a realidade de seu sofrimento por serem capazes de rearranjar a cena contingente de suas causas. Além dessa definição, de maneira muito pertinente, Jorge (2010, p. 13) define a clínica psicanalítica como uma “clínica da fantasia”.

Não sem razão, o cinema é uma arte contemporânea à psicanálise. Ambas nascem no contexto dos fins do século XIX, em que o desejo se encrustava no horizonte comum da cultura como experiência central na produção da subjetividade. Em ampla perspectiva, o que a psicanálise e o cinema retratam na conjuntura de suas produções é o modo como o desejo passa a definir a experiência do homem no mundo (Dunker; Rodrigues; senhorini, 2017). Contudo, se a psicanálise o faz pelo expediente clínico do tratamento, o cinema, por sua vez, o faz por meio da dramatização encenada.

Nas duas perspectivas, trata-se de uma leitura circunstanciada de uma dada situação, que não desconsidera a interpretação como recurso para a produção do sentido. Ou seja, o que seria encenado no cinema poderia ser análogo ao que seria encenado nos sonhos, e ambos não prescindiriam da interpretação como condição de sua inteligibilidade mínima da parte do sonhador ou do expectador.

Mas segundo Rivera (2008, p. 20-21), em seu livro Cinema, imagem e psicanálise,

[...] dizer que o filme imita o sonho não fornece ao cinema um modelo de construção de imagens em sucessão; antes, põe em relevo a enorme complexidade em jogo na relação entre sujeito e imagem, seja no sonho, seja no cinema.

Não é de estranhar que desejo, sonho e fantasia componham o mesmo quadro semântico na dinâmica das produções psíquicas. Desde Freud ([1900] 1996), cientificamente, o sonho diz do desejo que se encena por meio da fantasia. Mas, o que é o desejo? Para Freud, o desejo é aquilo que é realizado pelo sonho ou pela fantasia e se relaciona a um desejo sexual, infantil e recalcado. Já para Lacan ([1958] 1998), o desejo se refere ao desejo do Outro que encarna a ordem simbólica, ou seja, o desejo é desejo do Outro e a resposta do sujeito ao que quer o Outro é o que se encontra na fantasia: a fantasia, por sua vez, é a resposta do sujeito à pergunta sobre o que quer o Outro. De forma geral, o desejo implica a relação singular de um sujeito com as condições de subjetivação de sua cultura, o modo como ele nega, recalca, subjetiva, anseia ou fantasia algo.

Nessa perspectiva, entre a teoria do desejo em psicanálise e o processo de produção cinematográfica, seria possível reconhecer ainda uma analogia fundamental referente à função intersubjetiva do desejo: uma gramática para desejar. Em outras palavras, o que o cinema em sua dinâmica de interação oferece para o sujeito se refere a uma gramática, um roteiro possível para a realização do desejo, um modo para o sujeito aprender a desejar. E a fantasia é justamente essa gramática para desejar.

Desse modo, a pergunta “o que há em comum entre psicanálise e cinema?” pode ser sumariamente respondida ao se reconhecer que, tanto a linguagem do cinema com suas características específicas quanto o uso que a psicanálise faz da linguagem remetem irredutivelmente a uma gramática, um roteiro do desejo. Assim como a ficção cinematográfica é o desejo encenado, a fantasia significa um roteiro para desejar. Um bom exemplo é o documentário encenado pelo filósofo, cinéfilo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek (2006), O guia pervertido do cinema, que ilustra o uso reflexivo dessa gramática ao propor que “o problema para nós não consistiria em ter nossos desejos satisfeitos ou não. O problema seria: como sabemos o que desejar?”

O uso problematizado da noção de desejo por Žižek (2006) permite ilustrar a complexidade da conceituografia psicanalítica, de modo que o recurso cinematográfico confere a dimensão dramática da qual o conceito, muitas vezes, se vê desarticulado em decorrência de sua organização teórica e abstrata. Mas se a psicanálise é beneficiada devido à exemplificação conceitual, o cinema, por sua vez, ganha outra profundidade. O que está em jogo é uma chave de leitura que permite ampliar o sentido da cena cinematográfica remetendo-a à realização de uma fantasia pessoal, autoral ou social.

Partimos do princípio de que essa chave de leitura diz respeito não apenas a uma função dicionaresca, mas também ao reconhecimento de uma região opaca em toda produção humana que se refere, em última instância, ao modo como o sujeito se posiciona frente ao real produzindo realidades. Logo, a chave de leitura, ou de interpretação, permite-nos concluir que a realidade, como quer Lacan ([1966-1967] 2003), não prescinde da fantasia que a supõe, pois a fantasia é um artifício do sujeito para dar conta da impessoalidade do real.

Segundo Žižek (2006), “não há nada de espontâneo, nada de natural no desejo humano, nossos desejos são artificiais. Precisamos ser ‘ensinados’ a desejar”. Essa gramática do desejo, referente tanto ao cinema quanto à psicanálise, pode ser condensada na interpretação feita pelo autor logo no início do documentário: “o cinema é a mais perversa das artes porque ela não te dá aquilo que deseja, mas te diz como desejar” (ŽiŽek, 2006).

Se o desejo é algo que deve ser aprendido, é porque se trata, como já foi dito, de um artifício. Em analogia com o cinema, a psicanálise nos apresenta um panorama da complexa produção do sujeito desejante e suas condições de possibilidade: a fantasia, a narrativa e as ficções em torno do real. É com esse material psíquico que se faz cinema (Penha; rosa, 2017).

Psicanálise e cinema: entre o trauma e a ficção

Em 1897, dois anos após a primeira apresentação cinematográfica em Paris pelos Irmãos Lumière, Freud (1950 [1892-1899] 1996), na Carta 69 (21 set. 1897) a seu amigo Fliess, diz que não acredita mais em sua neurótica. A neurótica de Freud seria sua teoria sobre a gênese dos sintomas (histéricos, neuróticos, fóbicos, etc.) que, até então, remetia-se à objetividade de um acontecimento traumático.

A mudança da noção de trauma, da parte de Freud, significava reconhecer que o acontecimento traumático decorria de certa implicação subjetiva, ou do modo como o trauma seria elaborado. Nesse sentido, o trauma seria menos a objetividade empírica exterior do que sua reelaboração nas malhas dos sentidos possíveis ao sujeito. “As histéricas mentem”; esse é o corolário de uma hipótese que Freud ousa levar adiante, a saber, a hipótese do inconsciente. Hipótese que Lacan tomará como um saber que não se sabe sobre o que nos traumatiza, ou seja, um saber alheio, estrangeiro ao sujeito, mas ainda assim um saber. Desse modo, a hipótese do inconsciente segue da articulação do trauma, como elaboração subjetiva, e da fantasia, como efeito de implicação do sujeito nessa subjetivação.

Nessa perspectiva, a ideia de trauma é relida por Lacan ([1964] 2008) em estreita afinidade com sua definição de real. De forma geral, o trauma seria aquilo que resistiria a ser subjetivado, seria aquilo que não entraria plenamente na história do sujeito, nas suas coordenadas fantasmáticas de apropriação, algo que resistiria a ser lembrado ou ficcionado, funcionando, assim, como impasse para a linguagem. Em resumo, é aquilo que uma época ou uma cultura não conseguem pensar plenamente, e que, portanto, exige um posicionamento ético e inventivo da parte do sujeito.

É por essa razão que a elaboração do trauma implica o desejo. Trata-se de uma questão ética, um modo de pensar, refletir e narrar os impasses das consecuções morais, os impasses que a determinação exterior nos impõe. O trauma é o encontro com o real sem nome, acontecimento imprevisto, instante que se estende porque ocorre num momento inesperado (ŽiŽek, 2017). O trauma implica o desejo porque o desejo é o propositor da realidade para o sujeito, porque é o ponto no qual ele se fixa para vivenciar suas ficções. Sem essas ficções, o sujeito ficaria ad eternum preso ao real do trauma. O traumático, em articulação ao desejo, passa a gerar marcas que permitem localizar o sujeito no espaço singular de sua existência. O desejo permite fixar o sujeito na fantasia que ele usa para superar o trauma. Assim, a ficção assume a marca da torção lacaniana que o escreve como ‘fixão’, aquilo que fixa o sujeito, conferindo consistência às suas elaborações fantasísticas.

Assim, o trauma, em sua relação com a fantasia, passa a ser minimamente elaborado, já que a fantasia elabora o impossível traumático na perspectiva de um roteiro mínimo (Derzi, 2016). A verdade que o cinema nos mostra e que a psicanálise endossa é que a fantasia inventaria uma forma de sustentar o desejo. O desejo é uma ficção, é uma produção simbólica em torno de um núcleo real traumático. Todo esse arranjo é de importância fundamental, pois, segundo Lacan ([1966-1967] 2008), é essa produção ficcional que formula o fundamental do que poderíamos conceber como realidade.

Mas qual seria o fundamento psicológico que organizaria o trauma ao desejo? Trata-se de reconhecer e definir o que vem a ser essa ação psíquica para que essa articulação seja explicitada e legitime o uso do recurso cinematográfico para sua explicitação cabal. Ora, desde Freud e passando por Lacan, o desejo não se confunde com a pura necessidade. O desejo é algo a mais, é uma ação de um sujeito frente a algo que o implica, o incomoda ou o traumatiza, pois não desejamos objetos fora desse crivo. Mas o desejar não é uma ação simples, o desejar implica algo inédito, já que consiste em produzir o objeto. O desejo produz seu objeto ao recortar, ao extrair da cena comum algo próprio ao sujeito, algo que será próprio ao passar pelas coordenadas fantasísticas e que, sendo assim, será um objeto próprio ao sujeito. O desejo é, nesse sentido, negação do dado, ação de negar o dado imediato, ação que implica temporalizar o objeto, torná-lo humano. Nesse cenário, o objeto será um valor, e o será sobretudo se for um objeto desejado pelo outro que compõe, com o sujeito, a cena afetiva fundamental, aquela que se atualiza na transferência.

O desejo nega o real imediato, relançando o sujeito para o futuro, no tempo em que ele se verá livre da ansiedade traumática, e o desejo o faz remetendo o sujeito ao passado, tempo no qual ele era marcado pela certeza de ser amado. Passado, presente e futuro são alinhavados pelo desejo que, como um fio, reconduz o sujeito à esfera própria de suas invenções. Entre o trauma e o desejo, há a fantasia, ação que gera os meios imaginários e simbólicos para se suportar o real na medida em que ele se verá excluído. Não sem razão, esse é o enredo típico que o cinema exemplifica, tanto do ponto de vista de suas histórias, quanto do ponto de vista de ser uma obra de arte, que vem dar conta do espaço sem representação do traumático. O cinema representa o trauma e, ao fazê-lo, produz a arte que convoca nosso desejo, nos fisgando desde nossa fantasia mais elementar, pois, como afirma Žižek (2006), o cinema nos ensina a desejar!

Para Freud ([1900] 1996), a fantasia representa o núcleo da realidade psíquica encenada no inconsciente, a fantasia organiza os afetos e as representações a partir de um enredo. É esse enredo que é atuado no setting analítico através da relação de transferência. Ou seja, a fantasia é efeito da tese de que existe uma realidade psíquica capaz de causar sintomas e sofrimento ao sujeito que, por isso, busca ajuda psicológica, mas é essa mesma fantasia que é atuada no cenário da relação psicoterápica. Portanto, no âmbito clínico, a realidade psíquica é a realidade crucial.

Para caracterizar a realidade psíquica, Freud busca apoio nas noções de fantasia e desejo, como pode ser observado com relação ao abandono de sua teoria da sedução. A teoria da sedução havia levado Freud (1940-1941 [1892] 1996) a um impasse em que pesava sua concepção de sujeito: ou todos os pais seriam perversos (por seduzirem as próprias filhas) ou todas as histéricas seriam mentirosas (por estarem fantasiando e não vivenciando uma cena de sedução). Nessa condição, o sujeito poderia ser definido como assujeitado a um ato perverso da parte de seus cuidadores e das consequências advindas dele, que contribuiriam, de alguma maneira, com a construção da realidade vivida.

O abandono da teoria da sedução implicava ainda pensar na consequência do trauma para o aparelho psíquico. O que seria o trauma em sua materialidade? O trauma

[...] pode ser considerado como algo que vem de fora, como um choque violento que exclui o sujeito. O trauma exclui o sujeito porque não é articulado ao desejo, é alguma coisa que vem de fora e que tem intensidade suficiente para superar a capacidade do sujeito de dominar e elaborar psiquicamente o ocorrido. Por isso mesmo, por ser algo da natureza de um evento e de não poder ser significado, é que o trauma é da ordem do real. [...] A temporalidade do trauma é de ruptura, de um instante, porém, de um instante que promove uma mudança permanente no sujeito (Câmara, 2011, p. 58).

O trauma era visto como desencadeador da maioria dos sintomas histéricos, ou seja, “qualquer experiência que [pudesse] evocar afetos aflitivos - tais como os de susto, angústia, vergonha ou dor física [...]” (Breuer; FreuD, [1893-1895] 1996, p. 41).

O sintoma histérico desaparecia quando era possível

[...] trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras (Breuer; Freud, [1893-1895] 1996, p. 42).

Com o impasse imposto pela teoria da sedução, Breuer e Freud ([1893-1895] 1996) perceberam que a cena traumática se impunha na vida do sujeito e os sintomas histéricos não poderiam continuar a ser tomados, por parte da comunidade médica, como veleidades sintomáticas somente. É a partir da noção de representação que Freud ([1891] 2003) avança na compreensão do processo de significação, afirmando que este seria o resultado das associações entre as representações.

Entretanto, essas associações não poderiam explicar, por si mesmas, o modo singular como determinado acontecimento seria dotado de significação, já que essa significação pressuporia uma intenção do ato de significar. Somente com o desenvolvimento da noção de realidade psíquica é que se tornou possível, para Freud, considerar os desdobramentos dos aspectos implícitos do ato de significar, a saber, o modo como as representações seriam alinhavadas por um recurso que as dispusessem como um roteiro capaz de gerar um efeito de ser.

E esse recurso seria justamente a fantasia. A fantasia gera um efeito de ser porque sua temporalidade “[...] é constante, é o chão do sujeito” (câmara, 2011, p. 58), ao contrário da temporalidade instantânea e disruptiva do trauma. Assim, a fantasia seria menos uma produção aleatória do desejo e da ociosidade imaginária do que uma função que conferiria intenção ao ato de significar, denunciando, portanto, que os processos cognitivos não seriam neutros. A fantasia seria uma manifestação do desejo no que teria de mais radical: seu caráter de mediação na relação possível entre sujeito e objeto. Nessa perspectiva, Safatle (2009, p. 31) afirma que o desejo seria condição de percepção do mundo “[...] revelando sua função intencional determinante na interação do sujeito com o meio”.

Considerações finais

As reflexões até aqui apresentadas nos permitem ressaltar que o desejo, segundo Quinet (2003), seria a realização de um anseio e, se esse anseio é motivo de transformação/construção da realidade, é porque ele é intermitente e não se realiza somente na cena objetiva, mas sobretudo na cena subjetiva, em que ganha força pela possibilidade de um mundo que pode gerar.

Esse conceito pôde ser teorizado como causa e elemento de análise somente com Freud ([1900] 1996), no plano de uma clínica que considerava os conflitos decorrentes da ambivalência do desejo. Desse modo, a ultrapassagem do modelo médico semiológico se deu pelo constante desenvolvimento da própria psicanálise, ao revelar o desejo como condição da constituição da subjetividade.

Essa ultrapassagem revela o desejo como uma função negativa, na medida em que postula a fantasia como uma função positiva, ou seja, a fantasia providencia o que falta ao desejo. Ao desejo falta o objeto, pois o desejo é pura negatividade, no sentido de ser um ato psíquico que busca realização por meio dos recursos fornecidos pela fantasia.

Então, a relação da psicanálise com o cinema se daria justamente no espaço de elaboração entre o que seria possível conjecturar diante do encontro traumático com o real. Em outras palavras, na elaboração do que seria o real traumático na perspectiva de uma narrativa, da fantasia, de uma ficção suportável. Por consequência, o cinema, assim como a fantasia, seria uma elaboração, nos termos de uma estrutura de ficção por sobre o real como o impossível de ser plenamente simbolizado. E se o cinema pode ser considerado como uma arte do movimento que busca representar algo do real, a psicanálise seria uma práxis, segundo Lacan ([1964] 2008), capaz de operar um tratamento do real pelo simbólico, ou seja, tratar algo do real por meio da implicação do sujeito com seu desejo, via fantasia.

Referências

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Recebido: 28 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Abril de 2022

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