A perversão tem uma estrutura
Em 2017, Dany Nobus expressou a maneira como ele lê Freud em Lacan nestes termos: “Nos escritos de Freud, não existe algo como uma categoria nosológica específica da perversão (sexual)” (Nobus, 2017, p. 102) e “Lacan é muito mais efusivo do que Freud quando se trata da perversão” (Nobus, 2017, p. 102). Este trecho de seu estudo expõe a matéria:
O que quer que os lacanianos possam ter dito sobre o caráter distinto da perversão e sobre a especificidade da ‘estrutura perversa’ nos escritos e seminários de Lacan, isso é mais representativo do seu próprio desejo de organizar e padronizar a obra de Lacan […]. Diferentemente da neurose e da psicose, a perversão nunca recebeu de Lacan o ‘tratamento estrutural’. Em nenhum lugar, nem em seus volumosos escritos, nem em seus seminários igualmente elaborados, Lacan destacou o desmentido como o mecanismo etiológico chave na perversão, separado do recalque e da forclusão. Naquelas raríssimas ocasiões em que ele de fato se referiu à perversão ou a alguma de suas ‘subsidiárias’ em termos propriamente estruturais, […] o leitor se sente extremamente pressionado a reconhecer nesses desenvolvimentos uma evidência da perversão como uma estrutura psíquica distinta [...] (Nobus, 2017, p. 103).
Tais perspectivas sobre a ausência da perversão como uma estrutura são explícitas quando o autor insiste na ausência de “uma estrutura da perversão em separado na teoria de Lacan”. De fato, Lacan argumentou em favor de uma continuidade entre a perversão e a neurose, consistente com as famosas afirmações de Freud sobre a neurose como o negativo da perversão. No entanto, a continuidade entre a perversão e a neurose para alguns analisandos não exclui a estrutura da perversão para outros. É exatamente por isso que os psicanalistas continuam a considerar uma diversidade nas modalidades da perversão: estrutura, traços, desejos, atos, pulsões, gozos, etc.
Em oposição aos pontos de vista sobre a ausência da estrutura perversa e sobre a perversão como um “não conceito” (Nobus, 2017, p. 99), defenderei, com provas, estes dois argumentos: (1) Lacan claramente escreveu e falou sobre a perversão como uma estrutura distinta em seus seminários.1 (2) Isso permite explicar distintas realidades clínicas que o binário psicose-neurose falha em apreender.
Comecemos com o Seminário 6: O desejo e sua interpretação (1958-1959), que não pode ser mais claro quanto às diferenças entre as estruturas: “A estrutura do desejo na neurose é algo de natureza bem diferente da estrutura do desejo na perversão e, no fim das contas, essas duas estruturas são opostas” (p. 319). Mais adiante nesse seminário, é dito que “só a análise nos dá o que jaz no fundo da estrutura perversa”.
No Seminário 9: A identificação, Lacan (1961-1962, p. 143) insiste que o diagnóstico da estrutura perversa faz sentido, desde que os psicanalistas guardem distância da Psychopathia Sexualis, de Krafft-Ebing, e dos Estudos sobre a psicologia do sexo, de Havelock Ellis. Ele “demanda” que os analistas saibam “o que a estrutura perversa significa que é absolutamente universal”.
De novo, no Seminário 14: A lógica do fantasma, falando sobre o masoquismo e “a estrutura perversa”, Lacan (19661967, p. 195) sublinha que “é necessário distinguir radicalmente o ato perverso do ato neurótico”.
No Seminário 16: De um Outro ao outro, Lacan (1968-1969, p. 149) é ainda mais preciso, ao definir a base e o princípio da estrutura perversa, o que envolve fornecer algo que preenche e substitui a falta fálica, um Outro “assexuado”.
Não há dúvida de que Lacan escreveu e falou sobre a perversão como uma estrutura distinta, e podemos também falar em traços, desejos, pulsões, atos e gozos perversos fora da estrutura perversa como tal. Uma não exclui as outras. Admitindo-se três estruturas (neurose, psicose, perversão), uma diversidade de atos, pulsões, desejos, traços e gozos têm mais poder de explicar teórica e clinicamente a complexidade do ser falante. Isso é exemplificado por vários estudos de caso, inclusive os desenvolvimentos relatados por Alain Abelhauser (2013, 2019) acerca dos pacientes por ele tratados que apresentavam a síndrome de Lasthénie de Ferjol. A síndrome acomete sobretudo mulheres e é concebível no interior da estrutura da perversão.
A síndrome de Lasthénie de Ferjol
A fim de entender como a síndrome de Lasthénie de Ferjol é uma ilustração da estrutura perversa, visitemos, primeiro, algumas das fontes: (1) a pantomima descrita por Georges Dieulafoy em 1908 (Dieulafoy, 1911); (2) a síndrome de Münchhausen, descrita por Richard Asher (1951); (3) a anemia factícia, descrita por Daily et al. (1963); e (4) a síndrome de Lasthénie de Ferjol, descrita por Jean Bernard et al. (1967).
Depois da descrição original da síndrome, foi publicada uma série de artigos, inclusive um livro de Abelhauser dedicado à perversão feminina, misturando estudos sobre anorexia, pantomima, síndrome de Münchhausen, síndrome de Lasthénie de Ferjol e síndrome de Meadow. Embora o livro mereça uma leitura completa, selecionarei apenas alguns argumentos relacionados com a síndrome de Lasthénie de Ferjol.
Primeiro, convém mencionar que Lasthénie é um prenome raro sem nenhuma relação com astenia. Ao contrário do que alguns ainda possam achar, a síndrome de Lasthénie de Ferjol não se escreve “l’asthénie de Ferjol” e não é uma astenia descoberta pelo Dr. Ferjol. O primeiro uso do nome Lasthénie como primeiro nome remonta à Grécia antiga. Curiosamente, Lastênia de Mantineia foi uma mulher que se vestia como homem para frequentar a academia de Platão. Ela não era a única: Axioteia de Filos [ἈξιοθἈα ΦλɛιασἈα] também personificava um homem. Deixo para o leitor avaliar se é apropriado considerar que um dos primeiros filósofos era um travesti ou escolheu uma maneira de ter acesso a algo de valor em um ambiente discriminatório.
Na França de fins do século XIX, Jules Barbey d’Aurevilly (1808-1889) usou o prenome para sua heroína, a filha da Baronesa de Ferjol, no romance A história sem nome, publicado em 1882. Alguns anos antes de morrer, Barbey d’Aurevilly foi visitado pelo jovem escritor Paul Bourget (1852-1935), a quem o romance é dedicado. Trinta anos depois, o médico Dieulafoy pediu a Bourget que encontrasse um nome para a síndrome que ele descrevera (uma síndrome que levava à amputação), e Bourget sugeriu “pantomima” (Abelhauser, 2019). O nome médico foi proposto por um escritor famoso: teria Bourget se esquecido de A história sem nome? Ou será que já estava claro na mente de Bourget que tínhamos que distinguir entre a pantomima como condição médica e o personagem descrito no romance de Barbey d’Aurevilly?
Em breves linhas, A história sem nome é o relato da vida de Lasthénie, que vivia com sua mãe, a Baronesa de Ferjol. Um padre capuchinho entrou na vida delas e depois partiu. Depois disso, Lasthénie ficou grávida, não conseguiu explicar sua gravidez e caiu doente; ela perdeu peso e ficou fraca, pálida e muda. Então deu à luz uma criança natimorta e morreu. Depois da morte de Lasthénie, sua mãe descobriu em seu espartilho dezoito agulhas que espetavam seu coração; elas haviam sido postas ali uma a uma, após o nascimento da criança, manifestando seu comportamento automutilador e induzindo anemia. Finalmente é revelado que ela fora estuprada pelo padre (Karamanou; Androutsos, 2010).
A publicação original sobre a síndrome por Bernard et al. (1967) relata mulheres com idade entre vinte e quarenta anos, que trabalham na área médica ou paramédica e têm um histórico de anemia não tratada, múltiplas hospitalizações anteriores e visitas frequentes a consultórios médicos. Os sintomas da anemia em si estavam presentes, e os médicos apareciam confusos nesses relatos. Eles descobriam seringas, agulhas de injeção e garrafas cheias de sangue, e era presumido que as pacientes faziam sangria em si mesmas. Além disso, doze casos são descritos no estudo inicial (1967) e vinte outros casos mais em Paris na década seguinte (Degos et al., 1982). Gosselin et al. (1968) também descrevem dois casos de religiosas (23 e 35 anos de idade), além de dois casos masculinos (porque o quadro nunca é puro como se gostaria que fosse) (Agostini et al., 2008). Teses de medicina não publicadas, em cidades como Bordeaux, Estrasburgo, Marselha e Paris, dão notícia de dúzias de casos.
o caso da Sra. A
Abelhauser (2013) contribuiu de modo significativo para a compreensão geral desse fenômeno, especialmente porque teve intuições a partir das sessões psicanalíticas que ofereceu a diversos casos como esse. O autor descreve como os pacientes com síndrome de Lasthénie de Ferjol, sempre desapareciam quando desmascarados, o que se parecia superficialmente com o hábito de colecionar consultas médicas.1 Ele alerta que forçar o reconhecimento do distúrbio causou pelo menos um suicídio (Abelhauser, 2013, p. 85). Em seu livro, apresenta relatos do tratamento de um paciente que antes era atendido por Bernard. O paciente, então com a idade de oitenta anos, vinha se tratando quinzenalmente com Abelhauser (2013, p. 187-194) por muitos anos. Um dos principais aspectos da síndrome é o gozo do efeito produzido no momento do desmascaramento. Em outras palavras, o Outro, que é o corpo do “lastênico”, tapeia o outro (por exemplo, a equipe). Ao mesmo tempo, o paciente expõe o horror do real e a irreversibilidade da autodestruição e da doença (Abelhauser, 2013, p. 232). Obviamente, esses casos culminam em uma dramática redução da expectativa de vida e a morte por sangramento entre pacientes com anemia factícia já foi relatada (Hirayama et al., 2003).
O caso da Sra. A, apresentado por Abelhauser em seu livro (2013, p. 225233) e em uma palestra proferida por ele em 2019, é um dos casos mais ilustrativos relacionados com a estrutura da perversão. A Sra. A era uma enfermeira que trabalhava no mesmo hospital que Abelhauser. Ela é descrita como uma pessoa extraordinária, dedicada ao trabalho, muito enérgica e gentil e muito querida. A equipe veio a saber que ela tinha câncer e estava fazendo quimioterapia (com perda de cabelos, entre outros sinais adversos). Depois de alguns meses, ela voltou a trabalhar em tempo parcial e teve uma recaída. Depois de sete anos, ela viajou com o marido para a casa de campo do casal na Bretanha e entrou em coma. O médico local disse que ela se encontrava em estado terminal e precisava ser hospitalizada. O marido chamou uma ambulância, era um sábado, e ela foi levada a Paris, a cinco horas de viagem da Bretanha. A equipe queria interná-la, mas seus registros médicos não foram encontrados. Seu marido ficou enraivecido com isso e fez com que a pusessem de volta na ambulância e a levassem ao hospital onde ela trabalhara. Ela foi levada diretamente à UTI e coincidiu de estar lá a supervisora geral, que era amiga da paciente. A senhora disse: “vamos até a sua casa e acharemos os papéis”. A supervisora foi até a casa da amiga e descobriu que ela nunca tivera câncer. Aparelhos falsos foram descobertos em seu corpo e todos esses elementos contribuíram para a conclusão de que ela nunca tinha feito tratamento. Em seis anos, ela consumira laxativos cujo preço montava a cento e cinquenta mil francos. No início ela raspou o cabelo e, no final, estava em um estado severo de desnutrição, caquexia, perda renal e coma. Logo que saiu do coma, ela rapidamente entendeu que todo mundo sabia. Ela estava fascinada e satisfeita com a reação da equipe. Ela perguntou: “E aí, o que acharam disso?” Ela estava se deliciando com o pânico de todos ali e desfrutando da divisão subjetiva deles.
O exibicionista não é nada, comparado com essa mulher: ela estava fascinada com o impacto que podia causar enquanto era desmascarada. Esse era o objetivo, ser desmascarada e poder desfrutar do efeito produzido (Abelhauser, 2019).
O caso apresentado por Abelhauser é exemplar de uma estrutura perversa e não pode ser pensado fora dessa estrutura. Em primeiro lugar, a hipótese de uma estrutura psicótica é excluída porque a paciente não apresenta nenhum dos sintomas negativos, positivos ou cognitivos que são os componentes intrínsecos dessa estrutura. Quanto à estrutura neurótica, dificilmente achamos algum traço de divisão subjetiva e tal destruição de seu corpo é dificilmente redutível a qualquer tendência masoquista: clinicamente, o quadro exemplifica outra coisa. De fato, o sujeito não está dividido, ela não está angustiada, mas divide os outros, ela os angustia e se nutre da angústia deles, o que é a marca distintiva da estrutura perversa. Nesse caso em particular, o preço do gozo perverso é pago com extrema dor individual e corporal, e a ponto de quase levá-la à morte.
Do ponto de vista lacaniano, se há três estruturas do sujeito (neurose, psicose e perversão), bem como dois gozos (gozo fálico e gozo não fálico), ainda assim há uma limitação do presente estudo, que é o fato de que ele não explora o que eu chamaria a clínica diferencial dos gozos. Se um místico não pode ser situado em nenhuma outra estrutura senão a psicótica, e se o seu gozo é um gozo outro em relação ao gozo fálico, o que dizer do sujeito que se situa numa estrutura perversa? Distinto do gozo fálico, não seria possível um gozo fálico não-todo e, em caso afirmativo, sob que forma? Embora este artigo tenha contribuído para o debate sobre a estrutura perversa2 e sobre a perversão feminina, uma clínica refinada da perversão que inclua a perversão feminina é um importante campo de investigação, propício à renovação e ao refinamento da teoria psicanalítica.
Conclusão
A psicanálise ao modo do tratamento psicanalítico padrão, conduzido no divã várias vezes por semana, raramente é oferecido a sujeitos com uma estrutura perversa. De fato, a perversão tem um status diferente, se comparada à neurose e à psicose. Lacan disse a famosa frase, “o psicanalista nunca deveria recuar ante a psicose”, e isso não necessariamente se aplica à perversão. No entanto, consultas bimestrais a um psicanalista, ao longo de muitos anos, são uma possibilidade (por exemplo, a Sra. A). Certamente, essas sessões podem ter efeitos analíticos no ser falante, e a questão de se poderem esperar efeitos terapêuticos continua aberta (Tucker et al., 1979). No geral, novas pesquisas que discutissem os resultados de uma diversidade de trabalhos em psicoterapia (WooD, 2014) e psicanálise (Kulish; holtzmaN, 2014) seriam cruciais no sentido de contribuir para o estudo e o manejo da anemia factícia. j PERVERSION