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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.84 Belo Horizonte July/Dec. 2022  Epub Nov 22, 2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n84.03 

Artigo

A anatomia é o destino ou o destino é o que os homens fazem com a anatomia?1

IS ANATOMY FATE OR IS FATE IS WHAT MEN DO WITH ANATOMY?

Paulo Roberto Ceccarelli1 

Psicólogo. Psicanalista. Doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Université Paris 7 - Diderot. Pós-doutor pela Université Paris 7 - Diderot. Chercheur associé de l’université Paris 7 - Diderot. Membro da Société de Psychanalyse Freudienne (SPF) - Paris, França. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA). Membro do Corpo Docente do Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade - POA, RS. Professor na pós-graduação em psicanálise do Hospital Santa Catarina, Blumenau (SC). Pesquisador Associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUC-Rio. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor e orientador de pesquisas do mestrado em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP da Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenador e professor da pós-graduação em sexualidade humana da Faculdade Santa Casa, Belo Horizonte (MG). Membro do Programa Antártico Brasileiro. Diretor científico da Clínica Ampliada de Saúde Mental (CASM). Fundador e Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX)

1Université Paris 7, Universidade Federal do Pará. Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade. Faculdade Santa Casa


Resumo

O autor procura problematizar a máxima de Freud - a anatomia é o destino - contrastando-a com Stoller, que sustenta que o destino é o que os homens fazem com a anatomia. O debate se concentrou na questão de saber até que ponto a anatomia é um dado anatômico natural ou se, assim como o gênero, é uma construção atrelada a um discurso de poder que determina o lugar da mulher e do homem no tecido social. Para apoiar o debate, fez-se breves considerações sobre a história do corpo e como foi percebido ao longo dos séculos, bem como as leituras anatômicas. Por fim, considerou-se que o sexo, o gênero e a anatomia do sujeito respondem ao lugar que eles ocupam no desejo que quem acolheu a criança quando de sua chegada no mundo, dando-lhe um berço psíquico.

Palavras-chave: Anatomia; Sexo; Gênero; Formas discursivas

Abstract

The author seeks to problematize Freud’s maxim - anatomy is destiny - contrasting it with Stoller, who maintains that destiny is what men do with anatomy. The debate focused on the question to what extent anatomy is a natural anatomical datum or whether, like gender, it is a construction linked to a discourse of power that determines the place of women and men in the social world. To support the debate, brief considerations were made about the history of the body, and how it was perceived over the centuries, as well as anatomical readings. Finally, it was considered that the subject’s sex, gender and anatomy respond to the place they occupy in the desire that whoever welcomed the child when he arrived in the world, giving him a psychic cradle.

Keywords: Anatomy; Sex; Gender; Discursive forms

O título da minha intervenção, em forma de interrogação, na XL Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, foi inspirado em uma observação de Robert Stoller (1924-1991), psiquiatra e psicanalista norte-americano, cujas pesquisas foram realizadas, em grande parte, na Clínica de Identidade de Gênero da Universidade de Medicina de Los Angeles, na Califórnia. As contribuições teórico-clínicas de Stoller, considerado um teórico freudiano sui generis, são extremamente originais e abordam temas pouco trabalhados em psicanálise, como as vicissitudes pulsionais na excitação erótica, bem como as chamadas “disfunções sexuais”. Contudo, foi seu trabalho pioneiro e inovador sobre as transexualidades (na época denominadas transexualismo), que lhe deu reconhecimento internacional, transformando-o em uma referência mundial sobre o tema.

Devemos a Stoller a introdução da categoria de gênero em psicanálise. Separando os dois aspectos do conceito freudiano de bissexualidade - o biológico e o psíquico -, Stoller examina a dimensão psíquica (gênero) através do estudo de sujeitos transexuais. Ele conclui que o gênero prima sobre o sexo. Esse desdobramento vai permitir-lhe trabalhar melhor a aquisição das categorias do “feminino” e do “masculino” - o gênero -, por um homem [male] ou uma mulher [female] - sexo (Ceccarelli, 2013).

Foi em determinada altura de suas pesquisas clínicas com sujeitos trans, que Stoller proferiu, há quase 50 anos, a afirmação vanguardista, que, na atualidade, vem se transformando em uma realidade cada vez mais presente no cotidiano da clínica, e que motivou esta jornada: “a anatomia não é, de fato, o destino. O destino vem do que os homens fazem da anatomia” (Stoller, 1975, p. 150).

Como sabemos, as construções identitárias e os caminhos que levam à chamada “escolha sexual” fazem parte do repertório pulsional do ser humano (Freud, [1905] 1974). À psicanálise cabe apenas, nos lembra Freud, “revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais” (Freud, [1920] 2016, p. 188). Tais repertórios, presentes desde sempre em todos os grupamentos humanos, recebem explicações e justificativas pontuais em ressonância com as construções sintagmáticas tributárias da visão da sexualidade de uma dada cultura (Gregersen, 1983). Entre os elementos que fazem parte dessa construção, temos a percepção ou leitura do corpo, que atesta o quanto tal apreensão está longe de ser consensual.

Falar da “história do corpo” ou “os destinos do corpo”, como mostrei em um texto anterior, mereceria por si só uma jornada (Ceccarelli, 2011). O corpo tem uma história. E o corpo, com o qual trabalhamos hoje, é um corpo a partir dos discursos atuais. Assim, não podemos nos esquecer de que o corpo não é um dado puro isento de leituras culturais. O que lhe dá vida, e destinos, é a cultura. Para os propósitos deste texto, gostaria apenas de lembrar que qualquer que seja a apreensão do corpo, ela será sempre tributária das condições de vida e das possibilidades que a cultura na qual o corpo está inserido se dá a conhecer. Cada época lhe atribui um significado, o constrói e o reconstrói, o decora e o desvela, o destrói, o deforma e o mutila. Os modos de se utilizar e de se dispor do corpo refletem as normas e os valores da dinâmica cultural da sociedade em questão. E estudar o corpo não é possível sem levar em conta os códigos sociais, as concepções de higiene, a arte, a poesia: o corpo possui uma dimensão política. Esse brevíssimo resumo da história do corpo nos permite avaliar a dimensão da empreitada que nos aguarda, pois, sendo a anatomia tributária da leitura do corpo com a qual trabalhamos, ela é histórica também.

Graças às mudanças discursivas geradas pelos movimentos sociais resultantes, sobretudo, das lutas políticas e pelos direitos do cidadão, testemunhamos no dia a dia da clínica novas modalidades de construção subjetiva que traduzem possibilidades de alienação no desejo do Outro: sujeitos transgêneros, transexuais, assexuados, bissexuais, pansexuais, sujeitos não binários, homem com vagina, mulher com pênis e outras tantas designações. Muitas vezes, tais sujeitos desorganizam nossas referências de masculino e de feminino, pois fazem emergir um real que não encontra simbolização nos universais da anatomia em relação às categorias de macho/fêmea no sentido anatômico.

Tais categorias do masculino e do feminino, supostamente imutáveis, bem como a concepção de identidade sexual, mostraram sua fragilidade no caso de Thomas Beatie, que ficou conhecido como “o homem grávido” (People, 2008). A história de Thomas mostra os efeitos provocados em nossas referências, quando o corpo não sustenta os universais do masculino e do feminino. O impacto provocado pela notícia foi tal, que passou totalmente despercebido que, anatomicamente, Thomas Beatie não era um homem, mas uma mulher que adquiriu uma aparência masculina, após uma série de cirurgias, mas que manteve os órgãos reprodutores femininos.

Até bem pouco tempo, os sujeitos que não respondiam às referências heteronormativas do masculino e do feminino eram classificados como portadores de um distúrbio ou uma disforia. Contudo, as contribuições inter e transdisciplinares recentes da antropologia, do direito, da sociologia, da etnopsicanálise e da etnopsiquiatria, entre outras, têm levado os psicanalistas, mesmo os mais reticentes, a rever sua posição sem se sentirem ameaçados pelo retorno de moções pulsionais recalcadas, geradoras de estranheza [Unheimlich], frente às subjetividades citadas. O ‘estranho’ (Freud, [1919] 1976) aqui, acreditamos, tem por origem o fato de que as relações entre o real do corpo e as leituras feitas a partir desse real, sobretudo as relações sexo-gênero, não têm nada de natural, sendo antes construções culturais. Assim, o contato com sujeitos que trazem outras construções identitárias abala nossas certezas, provocando estranheza, pois nos remete ao tempo da indiferenciação, da bissexualidade originária. Seja como for, em todo sujeito (trans ou cis), sempre existirá um sentimento de estranheza [Unheimlich], oriundo do real do sexo.

As subjetividades atuais trazem questões que afetam o arcabouço teórico da psicanálise. Se, com efeito, se perguntam alguns, o real do sexo nunca é objetivável, e o gênero é performativo, o que haveria de “patológico” em um sujeito cuja performance reflete o imaginário atribuído à feminilidade (ou à masculinidade), mas que diz se sentir homem (ou mulher)? Ou sujeitos trans que, após a cirurgia que lhes atribui caracteres anatômicos do sexo reivindicado, mantêm relações afetivosexuais com pessoas de seu sexo de origem? (A menos, é claro, que o novo estatuto identitário lhes traga sofrimento psíquico.)

As considerações têm acirrado o debate sobre a diferença sexual e as construções identitárias, e promovido encontros como o que aconteceu no dia 28 de outubro de 2022, na Escola Normal Superior, em Paris. Com o título instigante - A diferença entre os sexos ainda existe? - o encontro debateu as consequências do uso, cada vez mais radical, do conceito de identidade de gênero. Insistir nessa radicalidade, advertem os organizadores do evento, levaria a uma amputação da dimensão biológica que, juntamente com o social e o psíquico, sempre foi usada pela ciência ocidental na categorização do sujeito. Outros, entretanto, defendem que manter a “diferença biológica dos sexos” na caracterização do sujeito daria continuidade à ordem social e reprodutiva dominante, baseadas em práticas heteronormativas”, que excluíram as sexualidades minoritárias, além de assegurar a dominação dos homens sobre as mulheres. Argumentam ainda que temos que descontruir certos parâmetros se quisermos entrar no “novo mundo” no qual as subjetividades, alforriadas de seus laços biológicos, seriam liberadas, e as múltiplas manifestações identitárias livremente “escolhidas” pelo próprio sujeito. (Podemos imaginar o que nos aguarda.)

A dimensão do debate é extremamente relevante, pois envolve não somente a inserção do sujeito no tecido social como igualmente as Consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (Freud, [1925] 2011), operador irredutível para a psicanálise.

Não se trata nem de negar a diferença entre os sexos tampouco de instituí-la como um parâmetro irredutível, logo natural. Acreditamos que a diferença entre os sexos é sempre performativa: uma repetição constante de um modelo que só pode ser pensado como um dado a priori por ser repetido e cuja performatividade do sexo e do gênero que ela determina não se dá “naturalmente”, mas resulta de um produto social, fruto da ideologia discursiva (Ceccarelli, 2005).

O saber que o recém-nascido construirá sobre seu sexo e seu gênero, sobre seu corpo e sobre sua anatomia, traduz a consolidação de uma crença, que começa após seu nascimento, pela atribuição feita por aquele(a) que o acolheu quando de sua chegada ao mundo e, posteriormente, pela inscrição no cartório civil. Essa atribuição, que atesta a primazia do outro, “é uma série complexa de atos que se prolonga na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno” (Laplanche, 2007, p. 167). Pouco a pouco, a criança será informada sobre o lugar que ela deve ocupar segundo o gênero ao qual pertence. Isso significa que a diferença anatômica, logo a designação do sexo e do gênero, é dada pelo olhar do outro.

Todo esse processo está diretamente relacionado com o que chamo de “berço psíquico”: o lugar que a criança ocupa, a partir da interpretação que ela faz do desejo do Outro (a alienação no desejo do Outro). Ou seja, de quem lhe deu vida psíquica e a acolheu (o berço psíquico), ou não, no mundo (Ceccarelli, 2022).

Sabemos, desde o Projeto para uma psicologia científica (Freud, [1895] 2017), que ver, tocar, sentir, isto é, qualquer que seja a percepção sensível, ela nunca corresponderá ao real da percepção, mas à “multiplicidade das inscrições imaginárias e simbólicas pelas quais o corpo é psiquizado e simbolizado” [os traços mnêmicos] (Ayouch, 2014, p. 59). A percepção que o sujeito construirá de seu corpo, e do corpo do outro, passa pela fantasia mediatizada pelo desejo, fazendo com que a anatomia seja uma construção fantasmática. E o lugar que o recémnascido ocupa na economia libidinal do outro definirá como o corpo próprio será investido e marcará a construção da representação psíquica de seu corpo.

Nessa perspectiva, antes de falarmos da diferença entre os sexos, a partir da diferença anatômica que a percepção do corpo se nos oferece, é importante sabermos qual corpo percebemos; de que corpo estamos falando quando levamos em conta a impossibilidade de termos acesso ao real do corpo: o biológico? o anatômico, o mediatizado pelo pulsional? o erógeno? o fantasmático? O “nascimento de um corpo, [seria a] origem de uma história”, como sugere Piera Aulagnier (1985) em um texto dedicado aos destinos do corpo? Cabe, pois, avaliarmos a partir de qual registro se dá a apreensão do corpo, para discutirmos se, de fato, a anatomia é o destino (um destino possível?), ou se o destino é o que os homens fazem com a anatomia (isto é, com a percepção do corpo).

Não estamos, em absoluto, negando a realidade do corpo, mas, antes, lembrando que essa realidade é o efeito de regulamentações sociopolíticas em consonância com discursos normativos. O corpo não pode ser abordado como algo que antecede a linguagem, como uma “essência” anterior à cultura (Butler, 1993).

Se “a psicologia individual é também, de início e simultaneamente psicologia social” (Freud, [1921] 2020, p. 137), para alcançarmos a subjetividade de nossa época, devemos estar atentos às mudanças sociais para, se necessário, revermos nossas posições teórico-clínicas tradicionais.

A anatomia é o destino ou a anatomia é um dos destinos possíveis?

Logo no início dos Três ensaios, Freud ([1905] 1974) abandona qualquer determinismo biológico da sexualidade ao falar que a sexualidade infantil é polimorficamente perversa. Com essa afirmação, ele se posiciona na contramão da opinião popular e desvincula a sexualidade da reprodução desvinculando, ao mesmo tempo, a pulsão de um objeto fixo. Ao sustentar que o objetivo da pulsão é o prazer, não se pode mais falar de complementaridade entre os sexos.

Ademais, não nos passa despercebida a dificuldade de Freud em definir masculino e feminino, cujo significado, que parece claro para as pessoas comuns é, ao contrário, bastante confuso (Freud, [1905] 1974). E embora a psicanálise coloque os conceitos de masculino e feminino na base de trabalho, ela não os pode elucidar (Freud, [1920] 2016). E no final do texto Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, no qual esperávamos encontrar alguma precisão sobre a diferença sexual, lemos:

[...] todos os indivíduos, graças à disposição bissexual e à herança genética cruzada, reúnem em si caracteres masculinos e femininos, de modo que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem construções teóricas de conteúdo incerto (Freud, [1925] 2011, p. 268).

O caráter incerto da masculinidade e da feminilidade se deve a sua independência da realidade anatômica. A significação dessas noções, que nada têm de natural, traduz convenções culturalmente construídas, resultantes de processos bem mais complexos que predisposições e determinações instintuais e geneticamente herdadas (Freud, [1930] 1974).

No entanto, nem sempre Freud é coerente com suas posições. No texto de 1924, A dissolução do complexo de Édipo, se lê a conhecida frase: “a anatomia é o destino”. E no texto A análise finita e a infinita (Freud, [1927] 2017), o determinismo biológico entra em cena novamente:

[...] para psíquico, o biológico realmente tem o papel de fundo de fundo. A recusa da feminilidade nada mais pode ser do que um fato biológico, uma porção daquele grande enigma da sexualidade (Freud, [1937] 2017, p. 361).

Enquanto, para Freud, a diferença anatômica é centrada no ter/não ter o pênis, o “campo biológico”, tido para ele como parte do “grande enigma do sexo”, é subvertido por Lacan ([1958] 1998) com o conceito de falo. Com esse expediente, a concepção biológica da diferença sexual se desfaz, uma vez que o falo, significante do desejo do Outro, prescinde da diferença anatômica. Em A significação do falo Lacan ([1958] 1998, p. 701) coloca na base da relação entre os sexos o “semblante”, isto é, uma comédia que busca as “manifestações ideais ou típicas dos comportamentos de cada um dos sexos”.

A diferença sexual e sua história

Thomas Laqueur (2001), em Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, nos apresenta uma historização das diferenças sexuais tendo por base a anatomia. Laqueur faz uma desconstrução histórica sobre a existência de um “sexo único”, modelo utilizado por Freud, a partir do qual haveria uma diferenciação. Para o autor, através de um rico material histórico, a “natureza” dos corpos deve ser entendida como um artifício político, historicamente construído e que repete a ideologia dominante.

O entendimento dos sexos e da diferença sexual responde a um discurso de poder e moral, que passa pela ordem religiosa, pela jurídica, pela médica, pela psicanalítica, pela sexologia, pela pornografia: são tentativas de normatizar e, ao mesmo tempo, patologizar a alteridade interna que desconhecemos e que nos assusta. Parece improvável que a profusão de discursos sobre a sexualidade tenha surgido em uma cultura na qual a moral sexual não fosse produtora de doença nervosa (Ceccarelli; salles, 2010).

Gêneros e anatomia

Há algum tempo, as questões de gênero vêm recebendo mais atenção na psicanálise, e as novas possibilidades de subjetivação têm sido ouvidas no trabalho clínico, sem serem patologizadas. Cada vez mais, o gênero se revela um operador de peso na compreensão dos novos caminhos pulsionais e na reavaliação das relações entre corpo, sexo, construções identitárias e discurso do poder: repensar as referências simbólicas que utilizamos para ler o mundo, ajuda-nos na compreensão de novos arranjos de Eros. Caso contrário, como defendi no Congresso do CBP em Salvador, em 2017, corremos o risco de provocar um equívoco de consequências não menos graves que os denunciados por Freud nos Três ensaios (Ceccarelli, 2017).

Para a filósofa norte-americana Judith Butler (2003, p. 38) não existem “[...] relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. Essas relações são, antes, construídas e reguladas por práticas de controle. Em seu trabalho de referência Problemas de gênero - feminismo e subversão de identidade, Butler (2003) critica a ideia segundo a qual o sexo seria natural, e o gênero construído a partir da designação do sexo. A autora retoma a emblemática afirmação de Simone de Beauvoir (1949) - “A gente não nasce mulher, torna-se mulher” - para dizer que “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (Butler, 2003, p. 27). As teorias de gênero reformularam o enunciado “torna-se mulher”: “o que o sujeito pode se tornar, sendo (também) mulher”? (Kehl, 1998, p. 5).

Em Freud, encontramos elementos que nos permitem pensar em uma teoria de gênero, embora ela não se apresente de forma teorizada (Sartori; Ceccarelli, 2021). No texto Sobre as teorias sexuais das crianças, Freud ([1908] 1976) se refere a uma forma de classificação que ocorreria antes da percepção da anatomia, isto é, segundo o gênero. Nesse sentido, o gênero viria primeiro, embora seja o sexo que o determine: é a partir da percepção anatômica (do sexo) que o gênero é atribuído ao recém-nascido (Laplanche, 2006).

A tão conhecida e comentada fórmula de Freud ([1921] 2020) - “a identificação primitiva ao pai da pré-história pessoal” -, Laplanche (2007, p. 167) sugere que se trata de uma “identificação por”; uma identificação “pelo socius da pré-história pessoal”. Seria, então, o socius que faria a atribuição de gênero.

Em Lacan ([1964] 1988) encontramos, no Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, uma passagem que, sem dúvida, nos remete à atribuição de gênero. Ali também o sexo vem igualmente antes do gênero, o que mostra que nascemos ‘sexualmente indiferenciados’:

[...] no psiquismo não há nada pelo que o sujeito possa situar-se como ser de macho ou ser de fêmea (sexo) [...] aquilo que se deve fazer, como homem ou mulher (gênero), o ser humano terá sempre que aprender, peça por peça do Outro” (Lacan, [1964] 1988, p. 228-229).

Com essa leitura, Lacan afasta a questão do surgimento do sujeito como atrelada à questão dos órgãos genitais masculino e feminino. A supremacia não é do pênis, mas, já o dissemos, da ordem fálica, uma instância simbólica.

Sem dúvida, as teorias de gênero produzem impacto na psicanálise. Se o sexo, como sugere Butler (2003), é tão historicizável quanto o gênero por responder a posições ideológicas e de poder, temos que repensar as categorias do masculino e do feminino que, para a psicanálise, se apoiam no biológico (o rochedo da castração). E mais ainda: se, como o gênero, o sexo é também uma construção cultural e histórica, a anatomia não é o destino, mas uma fabricação histórica.

Felizmente, vários psicanalistas têm levado em conta as questões de gênero na subjetivação e entendem que, nos processos de sexuação, uma leitura intersubjetiva e social do gênero se faz presente (Ayouch, 2017).

Conclusões provisórias

“Por falta de identidade, somos condenados à identificação” (Ceccarelli, 2013, p. 112). Eis nosso destino trágico, mas igualmente libertador. Nossas construções identitárias, assim como nossa anatomia, são um sintoma, no sentido psicanalítico do termo: uma relação de compromisso entre as moções pulsionais sempre em busca de satisfação, e tributárias do desejo do Outro, e os limites impostos à satisfação pelo trabalho de cultura [Kulturarbeit]. Desse conflito surge o Eu, um “precipitado de identificações” (Freud, [1921] 2020, p. 43).

Entendemos a identidade como o resultado “consciente” dos processos inconscientes de identificação, que se traduz pelo fantasma de uma síntese pontual que o sujeito faz quando diz “eu”. A identidade constitui uma espécie de pano de fundo, cuja base é formada pelos conteúdos do recalcado, que dá ao sujeito o sentimento de ser sempre a mesma pessoa. Repousando sobre uma linha imaginária, a identidade se estabelece a cada momento em movimentos que se repetem continuamente (Ceccarelli, 2013). Os processos identificatórios, que sustentam a identidade, são temporários e mutáveis, sendo afetados pelo tempo e pelas atribuições vindas do outro.

Quanto à pergunta que orientou nossa apresentação - A anatomia é o destino, ou o destino é o que os homens fazem com a anatomia? - não temos, evidentemente, elementos para dar uma resposta definitiva. As pistas que seguimos vêm da clínica: além das subjetivações já citadas, que interrogam os universais do masculino e do feminino, temos os importantes trabalhos de Françoise Dolto (2014), Maud Mannoni (2016), Piera Aulagnier (1985), Joyce Mcdougall (2013), Paul Schilder (1935), Cristina Lindenmeyer (2017), Paul-Laurent Assoun (1997), para citar os mais conhecidos, que trabalham a percepção da imagem inconsciente do corpo, o esquema corporal, o corpo no psicossomático e outras tantas questões ligadas ao corpo. Tais estudos mostram, entre outros pontos, que crianças que nasceram com handicaps físicos os mais diversos, inclusive a falta de um membro, são capazes de criar uma representação do corpo “sadia”, desde que esse corpo tenha recebido a “informação libidinal”, expressão de Piera Aulagnier, necessária. A tudo isso, acrescentamos os distúrbios da oralidade nos quais, exatamente, o corpo e a anatomia escapam a qualquer percepção objetiva. E, igualmente, as questões de gênero no cyberspace, o corpo aumentado, o transumanismo. Há uma série Alterd Carbon [Carbono alterado] que mostra o futuro que nos aguarda.

Se, como vimos, é o outro que nos informa sobre nosso sexo e nosso gênero, somos sempre atravessados pelo dilema da anatomia real, e do real da anatomia. j

Referências

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Recebido: 05 de Outubro de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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Conferência apresentada na XL Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais: A anatomia e suas vicissitudes. Belo Horizonte (MG), 22, 23 e 24 set. 2022.

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