O significante “gênero”, embora não seja utilizado na psicanálise, tomou lugar de significante mestre, evidenciando no nosso mundo contemporâneo uma extensão do domínio dos gêneros sem limite, uma multiplicidade e uma fluidez dos gêneros, que Miller nomeia na sua entrevista com Eric Marty ao discutir sobre a teoria de gênero de Butler, como Do múltiplo sem o Um (Marty; Miller, 2021, p. 3).
Diante disso, destaco frente ao tema deste trabalho dois pontos: a questão “trans”2 em face da diferença sexual, pelo viés de dois fragmentos de casos clínicos de adolescentes, e a relação da inflação da multiplicidade de gêneros na clínica com o nosso mundo contemporâneo.
Passemos aos fragmentos de casos clínicos.
Os pais de João me procuram com a demanda de tratamento para o filho, que tinha se envolvido em uma briga na escola. Segundo os pais, o paciente estava com dificuldade de estabelecer laços sociais, em razão de questões sobre sua sexualidade.
João, de 12 anos de idade, chega ao consultório dizendo que os pais pediram para ele vir me ver. Após algumas sessões, diz ter questões sobre o gênero dele. Diz ser demi-girl, me explicando, assim, que é parcialmente menina. Desde o início ele evidencia uma degradação do saber que advém do Outro, inclusive do Outro escolar, já que não se interessa pelos estudos e ainda não apresenta demanda em construir um saber sobre suas questões. Relata também que, muitas vezes, se sente triste, angustiado e chora muito, apresenta dificuldade de dormir e sente muita falta da tia que já faleceu há alguns anos. Diz também de uma dificuldade em estabelecer amizades, de ter um grupo de amigos na escola, já que ele percebe que o outro sempre o critica.
Ao ir às sessões, João se veste como uma mulher, usa muitos adornos, usa saia, meia-calça, pinta as unhas e os olhos, e usa salto etc. Apesar de se incomodar com o próprio corpo, começa a construir saídas para isso: leva outras roupas na mochila e, quando o corpo dele o incomoda, ele troca de roupa na escola. Tudo indica que a organização dos modelos de roupas tem uma função imaginária que apazigua o mal-estar da falta de adequação com o próprio corpo.
Ele conta que começa a namorar um demi-boy e depois de algumas semanas beijam na boca. Esse namorado passa a ocupar o lugar desse Outro que o critica e, assim, ele termina o namoro. Depois do término, fica muito angustiado, passa a chorar todos os dias e a falar que quer se matar. Alega que não tem grupos de amigos, chegando a brigar com um colega, mandando que ele se matasse.
João se depara na adolescência com a iniciação sexual e, em consequência disso, com a “inexistência da relação sexual”, onde não há arranjo possível entre o sujeito e o objeto. A ausência de relação sexual concerne não apenas ao laço de João com o parceiro, como também ao laço do João com seu próprio corpo e com sua própria identificação sexual.
Depois desse episódio, ele passa a se nomear de gênero fluido; na semana seguinte, de não binário; na semana subsequente, de arromântico e na posterior, de assexual. Relata-me que estava com o ex-namorado, que pede para voltar o namoro. Ele larga a mão do ex. Ao ser questionado sobre esse ato, ele diz que tudo foi muito rápido. Ele não sente atração por ninguém e não gostou do sentimento que o beijo causou.
Observa-se que, diante da diferença sexual, um gozo aparece à deriva, se manifestando de maneira não fixa, de forma múltipla, o que leva o paciente a tentar se organizar tomando emprestado nomes contemporâneos advindos de um Outro social. João lança mão do número ilimitado das nomeações advindas da sigla LGBTQ+, toma o discurso do mestre para escapar da diferença sexual e caminhar em direção à diversidade. Parece-me que João está usando o discurso do mestre para buscar a diversidade sexual e ofuscar a diferença sexual, já que se encontra excluído da partilha dos sexos e se depara com a diferença sexual, o que o desestabiliza. Será que a fluidez dos gêneros de João não aponta para uma aposta de uma possível “solução” para escapar da diferença sexual? Não podendo se apoiar na função fálica nem no Nomedo-Pai, João precisa inventar uma forma singular para localizar seu gozo.
Ressalto que essas tentativas ilustram que João demanda uma inscrição no nível do real do gozo, tentando se inscrever de outras maneiras no seu corpo e no mundo. É uma aposta numa construção da sexuação sem a função fálica. Esse caso mostra sua foraclusão, sua exclusão em relação ao Outro, quando relata que é incapaz de amar e que está excluído de afeto. O Outro do simbólico não existe e aparece uma defesa paranoica a partir dos inimigos que João constrói para protegêlo, provavelmente, de uma melancolia. Ele mesmo se autorrefere, muitas vezes, ora com o pronome feminino, ora com o pronome masculino. Ao ser questionado, diz que para ele tanto faz, mas não sabe o que o Outro pensa sobre isso e, segundo ele, não precisa saber. Esse relato de João mostra sua forma de gozo sem o laço com o Outro do simbólico.
Há aqui a foraclusão do Nome-do-Pai do ponto de vista estrutural em João, mas há também uma falência do Nome-dopai em nossa contemporaneidade, pois o mundo contemporâneo oferece múltiplos nomes que não unificam, não fazem Um.
O discurso analítico retira o paciente da urgência da demanda de realizar uma operação para mudar sexo, pois ele afirma que esperará completar 18 anos, possibilitando a si mesmo suportar um tempo de suspensão sem cair no gozo mortífero. Nesse tempo de suspensão, o significante “construção” se repete: tenta construir amigos, se inserindo em algum grupo de amigos, tenta construir sua sexuação, constrói seus modelos de roupas e participa de vários jogos, construindo casas e personagens. Esse tempo pode ser fundamental, já que pode permitir a João se arranjar de forma singular com esse gozo à deriva não capturado pela significação fálica.
Outro fragmento de caso mostra que a paciente lança mão da diversidade dos gêneros advindos do Outro social não para se esquivar da diferença sexual como faz João, mas para enfrentar os impasses dela, já que o real está em jogo e é irredutível a qualquer identificação.
Maria, filha de pais separados, de 13 anos, inicia atendimento depois de ter feito uma tatuagem de forma abrupta sem o consentimento dos pais. Inicialmente, os atendimentos ocorreram de forma online em função da pandemia, e a paciente não conseguia ligar a câmera, realizando os atendimentos com câmera desligada. No início do tratamento, ela relata que pensava em morrer, fazia cortes no próprio braço e usava drogas para conseguir realizar suas atividades escolares. Ela também mal comparecia às sessões. Maria construía um jeito invisível e anônimo de existir.
Ela inicialmente morava com o pai e se sentia sempre insuficiente às demandas do pai, um pai controlador, segundo ela, “abusador”, que exigia da filha muitas contribuições ao lar. A mãe, segundo ela, quase desistiu dela, delegando seus cuidados para outros. Maria diz que sua mãe sempre se preocupou muito com a mulher, é ativista e luta pelas causas feministas, e ela, a mãe, sempre teve vários namorados, mas em relação à maternidade nunca a priorizou. Há um discurso social presente nessa mãe, mas não há espaço para o singular, não aparecendo desejo para a maternidade na mãe de Maria. Maria me contava que, quando era criança, o pai era excelente pai, mas com a adolescência ele não conseguiu mais controlá-la e começou a brigar com ela.
Muitas mudanças começam a ser realizadas pela paciente: decide sair da casa do pai e vai morar com a mãe, ressalta que a mãe nunca morou com ela, pois é ela quem mora com a mãe, pois o olhar da mãe é sempre para os namorados que passam a morar com elas. Diante dessa mudança de Maria, o pai diz que ela não precisa mais de pai. Maria continua a mudar incessantemente os cortes de cabelo, começa a fazer tatuagens e piercings, muda de escola, demanda constantemente mudanças de horário de suas sessões de análise e, por fim, começa a mudar de gênero: se diz homossexual, depois bissexual, e, em seguida, não binária. Chega, inclusive, a relatar o incômodo com as próprias mamas. O mal-estar da Maria aparece na imagem, desde o início quando não consegue ligar a câmera, já que está presente a falta do olhar de desejo do Outro parental e, sobretudo do desejo da mãe desde a infância. Será que Maria está mudando incessantemente para tentar reconstruir esse lugar de falo imaginário que já teve para o pai? Será que as tatuagens, os piercings não são tentativas de inscrever no corpo as marcas do Outro, já que Maria se deparou com o impossível da relação sexual? Será que essas mudanças de gênero não fazem parte de uma seriação de mudanças tentando dar conta do real sexual? Estaria Maria tentando uma construção singular? Construção essa que exige uma subjetivação do real da castração.
Essa questão sobre a construção singular em torno do sexo é levantada, pois Maria relata que começa a namorar um menino e a fazer alguns amigos na escola. Mas, mesmo assim se sente sozinha, perdida, sem lugar fixo. Ela não apenas questiona qual é o lugar dela no desejo dos pais, como também questiona onde ela irá caber. Relata ainda que faz sexo com o namorado, mas embora o corpo dela esteja presente na relação, a mente está em outro lugar e, assim, ela não sente prazer. Diante disso, ela se questiona como Dora com a pergunta clássica de uma histérica: sou homem ou mulher? É importante retomar que a estrutura de linguagem repousa sobre significantes opostos, nesse caso homem/mulher e o inconsciente repousa sobre essa estrutura como afirma Lacan ([1960] 1998, p. 833): “Um significante representa o sujeito para um outro significante”. Desse modo, pela oposição de significantes, a linguagem oferece uma certa orientação, mas não responde exatamente o que é ser um homem e ser mulher. E por que não? Pelo fato de a mulher não existir, esse Outro sexo resiste à identificação, restando um campo inacessível, pois o par de opostos de significantes - homem e mulher - não traduz o real em causa, esses pares servem como signos, índices, entretanto o real está alhures, nas modalidades de gozo do sujeito em relação ao outro sexo (Morel, 2000, p. 118).
O discurso analítico sustenta um enigma, pois o ser sexuado é da ordem do além das normas, de um devir (vir a ser) de um percurso que não se sustenta pelas identificações nem imaginárias, nem simbólicas. Para a psicanálise, cada um goza de seu próprio corpo de uma maneira singular. Um buraco é introduzido na relação do sujeito com o seu próprio sexo. O encontro com o fora de sentido, coloca o real em jogo e, pelo fato de a mulher não existir, Maria, ao se confrontar com o real se aloja nos estereótipos sociais para apaziguar a angústia do seu ser. A angústia é decorrente do encontro do real da sexuação do ser, da ausência da relação sexual, já que não encontra a possibilidade de complementaridade e ela não faz Um.
Ela constrói a seguinte resposta no momento: sou não binária. Segundo ela, essa é uma resposta que a impede de ficar colada no homem ou na mulher, pois ela não quer ser objetalizada por um imperativo vindo do Outro, seja do Outro social, seja do Outro do par parental. E se um dia ela desejar transformar seu corpo, ela o fará, pois o corpo é apenas uma carapaça, segundo ela. Ela tenta, assim, apagar sua referência ao Outro. A falta de uma definição do que é A mulher, aparece em destaque, no caso, que há um estatuto impossível de simbolizar, o que evidencia um real de gozo que levará Maria a lançar mão da diversidade dos nomes dos gêneros advindos do Outro social como recurso necessário para enfrentar o inassimilável, o real da diferença sexual. Maria se depara com o feminino, e o campo feminino não tem aqui a condição de um gênero entre outros, trata-se de se haver com um gozo enquanto uma alteridade irredutível, o Outro gozo, sempre estrangeiro, tanto para homens como para as mulheres. A concepção do feminino não se define de nenhum modo em relação ao masculino, pois quando falamos do feminino, estamos no espaço da não reciprocidade, da não simetria, tratando-se de um espaço onde o significante não pode abordar. Pelo fato de não abordarmos o gozo feminino pelos significantes, esse espaço não se deixa apreender pelas representações de gênero, pelas identificações, trata-se de um outro modo de inscrição do ser falante.
O que vai esclarecendo no decorrer do percurso analítico é que nenhum discurso social e universal dispensa o trabalho singular que a paciente deve construir em relação a sua sexuação que se encontra entre a falta-a-ser e pulsão, o que nos envia à fórmula do fantasma, ao sujeito barrado, dividido, ausente para si mesmo sendo o objeto a que causa essa divisão. Esse espaço entre a falta-a-ser e a pulsão é o espaço entre os significantes e o espaço que se abre no fantasma, onde o entre deve estar sublinhado introduzindo a não relação sexual. O discurso analítico sublinha a prioridade do singular sobre o universal, onde nenhum discurso social pode dispensar o desejo do Outro tampouco a singularidade do desejo do sujeito. Além de Maria estar exilada do desejo dos seus pais, ela se encontra estrangeira em seu próprio corpo, fora de qualquer identificação sexual.
Cinco considerações extraídas dos fragmentos dos casos clínicos Primeira: Observa-se que a questão “trans” é transestrutural, ou seja, se apresenta tanto nos casos de neurose quanto nos casos de psicose. Os casos clínicos também nos remetem às dimensões de gozo diferentes, João escapando da diferença sexual nos direciona a um gozo mortífero sem mediação fálica, diferentemente de Maria que nos remete à tábua de sexuação, aparecendo um gozo além do falo, o gozo feminino.
Segunda: As questões trans podem aparecer na adolescência, já que os adolescentes se deparam com o real da diferença sexual. Destaco a partir desses fragmentos de casos que o encontro dos sujeitos com o impossível da relação sexual, com a diferença sexual, promove um real em jogo na construção da sexuação que não pode estar reduzido nem às identificações, nem à diversidade dos gêneros. É necessário ir além do sistema de identificações imaginárias e simbólicas, pois esse sistema não esgota a relação do sujeito com o sexo e com o Outro. Há um real em jogo, há um inclassificável do ser, que fez Lacan deslocar sua teoria do “ser ou ter o falo”, teoria que se detém no Seminário 5: As formações do inconsciente (Lacan, [1957-1958] 1999) migrando para a teoria da sexuação, no Seminário 20: Mais ainda (Lacan, [1972-1973] 1985) e no Seminário 23: O sinthoma (Lacan, [1975-1976] 2007).
A partir desse deslocamento, a partilha dos sexos não se fará mais sobre o critério da primazia do falo, ter ou ser, mas a partir do limite do falo, sob o modo de duas lógicas distintas que levam em consideração posições de gozo, não sendo mais identificatórios nem do desejo, pois essas lógicas estão bordejadas por um real que ex-siste, ou seja, há um campo fora do mundo simbólico. Entretanto, para Lacan falar das posições de gozo na tábua de sexuação, ele o faz não recorrendo mais ao falo, mas recorrendo à função fálica, ou ainda, “à frase com buracos”, de Frege. Lacan vai em busca de recursos de procedimentos lógicos para abordar a sexualidade. Mas por que a frase com buracos? O sujeito é resposta do real ao encontro do significante. Isso implica que o sujeito se apreende apenas pela via de um significante que o representa, ao qual se identifica, mas do qual não deixa de ser apenas desaparição. O sujeito é barrado, ou seja, um vazio que recobre de atributos, devendo, assim, cada ser falante produzir seu argumento. A frase com buracos, de Frege, localiza o lugar de um sujeito vazio em relação ao falo, levando em consideração a falta de sentido da sexualidade. O pai da horda primitiva, de Freud, mascara a falta de sentido, entretanto Lacan não o tampona; ao contrário, destaca esse pai gozador, evidenciando esse real, esse fora de sentido. A tábua de sexuação trata o sexual sob o ponto de vista do modo como essa função do furo irredutível inerente ao gozo tem lugar na existência sexuada do ser falante (Morel, 2000, p. 118). E esse furo irredutível inerente ao gozo, pela falta de sentido na sexualidade, mostra a fragilidade da função fálica. A função fálica, a partir da frase com buracos, permite a Lacan localizar o sujeito vazio na sua relação com o falo, pois a estrutura do gozo sexual é falhada. O gozo sexual é falhado, o que torna evidente a insustentável leveza das identificações sexuais. Daí Lacan afirmar: “Trata-se de uma suposição, uma suposição que tenha um sujeito masculino ou feminino, é uma suposição que a experiência torna evidentemente insustentável” (Lacan, [1973-1974], Séance du 15 de janeiro de 1974).
Terceira: Nossa época testemunha a passagem do Um ao Múltiplo. Miller (2021) comenta que os pensamentos dos gêneros são caóticos, pois não se fixam, conduzindo-os à diversificação, ao fracionamento sem trégua. O Um é morto, viva o Múltiplo! O gênero não reconhece nenhuma rainha, tratando-se da lógica do não-todo, lógica da posição feminina que está em todos os lados na nossa civilização. Ele acrescenta que os autores do gênero recusam, negam, anulam a oposição masculino/feminino, da diferença sexual. Miller afirma que a proliferação é sem limite das possibilidades dos gêneros, como ilustra a fluidez dos gêneros. É passar do regime do Um fálico ao mundo descentrado, ilimitado e fluido.
Por consequência, as teorias do gênero promovem um apagamento da referência do Outro. Trata-se de uma aspiração contemporânea de não se ver mais marcada pelo Outro, época das sociedades líquidas e de poder se definir unicamente a partir de uma relação consigo. O ser e o Um, seminário de Miller (2011) traz o traço da nossa época, um apagamento crescente da referência do Outro, uma nova concepção do inconsciente a partir de uma marca que não é mais tanto do Outro, mas a da pulsão que ressoa anonimamente no corpo do falasser, assim Miller (2011) se refere ao Um do “Y a de l’Un”, Há Um, o um sem o Outro, diferente do Um da exceção do campo do “todo”. Enquanto o Um fálico unifica, diferentemente disso, o Um da não relação sexual, promove o apagamento do Outro, provocando múltiplas e infinitas possibilidades de gozar. Trata-se do Um todo só, que exsiste à linguagem, ao mundo e que não se trata do um da exceção, pois o um da exceção funda o universal. Y’a de l’Un é o um da não relação entre os sexos e que são infinitos, não unificando. O Um que não unifica como o Um pela lógica do “todo” mostra a falha entre um significante e o outro, mostrando um intervalo que tende ao infinito.
Miller (2011) trará a primazia desse Um da não relação, sendo caracterizado em primeiro plano pelo gozo. Já não há Outro para localizar o gozo (Lacan, [1974] 2001, p. 529-534) o gozo se encontra separado do Outro. Pois devemos lembrar que, quando há desejo, o desejo do sujeito se constitui a partir do desejo do Outro, havendo sempre uma ligação essencial entre desejo e Outro. Como esse Um encontra-se destacado do Outro, há uma redução do simbólico, aparecendo o Um fora do sentido. Assim, pode-se concluir que a clínica na época de Freud tinha como resposta a estrutura do “todo”, a estrutura do Um fálico, da sexuação masculina, onde o universal se manifestava. A clínica atual evidencia que existe uma quantidade interminável de modos de se arranjar com o gozo não absorvido pelo falo simbólico, ressaltando que cada solução levanta a exceção ao Universal do conjunto fechado onde o gozo fálico se encontra implicado e caminha em direção ao gozo não-todo. O lado da sexuação da lógica feminina ilustra a contingência da nossa época, colocando em questão o Universal da lógica masculina. A exceção tornouse universal. O Outro se encontra em decomposição. Os múltiplos vêm ocupar o lugar da exceção, produzindo uma exceção generalizada aos seres falantes. Como diz Miller (1996-1997), é a época do nãotodo por todos os lados. Assim, estamos diante de múltiplas maneiras singulares de gozar, formas de gozo sem limite. Há uma inflação dos múltiplos sobre o universal, porque há a presença dos Uns sozinhos sem o Outro que não se unificam e, assim, não formam o universal. Qual o efeito na clínica da inflação das múltiplas formas de gozar?
Com as palavras de Laurent (2015, p. 160): “Esse gozo deslocalizado tem necessidade de um espaço para se inscrever, que é o corpo. O corpo tem uma consistência”. A partir disso, pelo viés da clínica, testemunhamos a dificuldade de o sujeito inscrever um gozo sem limites e deslocalizado, em um corpo que é, em contrapartida, limitado e consistente.
Quarta: A inflação dos múltiplos. Por que ocorreu uma inflação dos múltiplos em relação ao Um fálico? Em função da descrença no Pai em nossa época. Essa descrença no Pai é consequência da inexistência do Outro, como anunciada por Miller (1996-1997) no seminário O Outro não existe e seus comités de ética. Há um desmoronamento do pai simbólico que até então era o pilar. Esse desmoronamento do pai simbólico em nossa época denuncia a precariedade do simbólico, a impregnação do imaginário e a manifestação abrupta do real de forma ilimitada, em um mundo onde o sujeito se encontra exilado, sem recurso ao Outro.
O Nome-do-Pai se desloca de seu valor universal, de sua relação com a lei, e vai em direção à pluralização, em direção aos nomes-do-pai, enfim, em direção ao gozo. Assim, não é mais a lei simbólica que nomeia e categoriza os gozos, mas os gozos do sujeito que procuram uma nominação, o que abre no sujeito múltiplas possibilidades quanto à sexuação. Dito de outra forma, a queda do Outro em nossa época denuncia que não há Outro para localizar o gozo, gozo desligado do Outro. Assim, o sujeito, diante do gozo ilimitado, procura soluções das mais singulares, pois os sujeitos devem inventar um arranjo singular, já que não se pode em nossa época contar com a referência do Outro.
Quinta: Os sintomas da nossa época demandam nominações. Nesta época da descrença do Pai, em nosso contexto pós-patriarcado, precisamos fazer valer a clínica do sinthoma (sinthoma com TH). Essa clínica abre perspectiva promissora em relação à condução do tratamento em uma época em que a crença no Pai se encontra debilitada. Lacan alcança a teoria dos nós, pois há um certo apagamento das estruturas, do Nome-do-Pai nos nós borromeus, mostrando uma continuidade nas clínicas pela perspectiva do real. A clínica dos nós mostra o limite da função do Nome-do-Pai nos possibilitando criar suplências a essa função. A partir dos anos 1970, Lacan vai além do campo fálico e promove uma passagem do campo do Édipo aos nós borromeus, onde procura pelo nós formalizar a estrutura dos nós. A pergunta não se encontra mais centrada no desejo, mas em direção ao gozo: como cada ser falante irá se virar com o seu próprio gozo? No Seminário 22: R.S.I., Lacan (1974-1975) propõe a possibilidade de prescindir do Nome-do-Pai, como uma amarração para os três registros da realidade psíquica. As nominações do nó abrem espaço para a pluralização dos Nomes-do-Pai, ela se pluraliza em Nomesdo-Pai nomeantes.
A clínica nodal permite uma nova maneira de abordar a clínica na atualidade, para além do Édipo e da medida fálica. No nosso contexto atual, a dimensão do gozo aparecendo de forma deslocalizada requer um tratamento de gozo pelas nominações. φ