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versión impresa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.84 Belo Horizonte jul./dic. 2022  Epub 22-Nov-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n84.06 

TEORIA PSICANALÍTICA

Da mais-valia ao mais-de-gozar e suas vicissitudes no capital

FROM SURPLUS VALUE TO SURPLUS ENJOYMENT AND ITS VICISSITUDES IN CAPITAL

Audrey de Castro1 

Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Bacharel em direito. Mestre e doutora em direito internacional pela PUC Minas. Professora

1PUC Minas. Círculo Psicanalítico de Minas Gerais


Resumo

Este estudo tem como objetivo analisar a teoria dos discursos de Jacques Lacan, com base no seu Seminário 17: O avesso da psicanálise. Enfatizamos o discurso do mestre, em seu aspecto histórico, ordenador dos demais discursos, trazendo o discurso do capitalista, comumente conhecido na atualidade como o avatar moderno do mestre ou um quinto discurso capaz de traduzir as ações humanas diversas, bem como as de cunho sentimental, que envolvem a sexualidade e suas vicissitudes, na condição de atitudes do sujeito passíveis de um valor expresso no consumo do objeto a.

Palavras-chave: Lacan; Teoria dos discursos; Discurso do mestre; Discurso capitalista; Sexualidade

Abstract

This study aims to carry out an analysis of Jacques Lacan’s theory of discourses, based on his XVII Seminar - The Reverse of Psychoanalysis. We will emphasize the Master’s discourse, in its historical aspect, which organizes the other discourses, bringing the capitalist’s discourse, commonly known today as the modern avatar of the master, or a fifth discourse, which has the ability to translate diverse human actions, such as the ones of a sentimental nature, which involves sexuality and its vicissitudes, in the condition of attitudes of the subject to a value expressed in the consume of the object “a”.

Keywords: Lacan; Theory of Discourses; Master’s Discourse; Capitalist discourse; Sexuality

Introdução

No Seminário 16: De um Outro ao outro, Lacan ([1968-1969] 2008) desenvolve o conceito do mais-de-gozar, realizando uma homologia desse termo em relação ao conceito marxista de mais-valia. Ele enfatiza que está fazendo uma homologia, e não uma analogia entre os dois conceitos e assim explica:

[...] dizer homologia é dizer, justamente, que a relação entre eles não é de analogia. Trata-se, com efeito, da mesma coisa. Trata-se do mesmo tecido, na medida em que se trata do recorte de tesoura do discurso. Todos os que acompanham há tempo suficiente o que enuncio veem que a relação do mais-de-gozar com a maisvalia gira em torno da função do objeto a (Lacan, [1968-1969] 2008, p. 44-45).

De fato, a definição do capitalismo é uma tarefa complexa por si só, pois ele vai muito além de uma simples teoria econômica. Trata-se de um sistema capaz de tornar as ações humanas, inclusive as de cunho sentimental e, especialmente, a sexualidade e suas vicissitudes, passíveis de um valor expresso no capital.

Os discursos lacanianos falam de laços sociais, onde S1, S2, S e objeto a se alternam e são denominados, respectivamente, o agente, o outro, a verdade e a produção. O agente (S1) é aquele que fala, que se dirige ao outro (S2), apoiado por uma verdade (S) que estrutura, alicerça o discurso e lança ao outro uma demanda, um tipo de satisfação inconsciente do desejo, que sustenta o enunciado do agente. O lugar do outro (S2) é aquele que recebe a demanda selecionada pelo agente (S1), a qual pode aceitar ou não e produzir algo em torno da demanda a ser satisfeita (objeto a). Ou seja, a produção é o efeito do discurso. Nesses lugares, haverá duas divisões principais: a primeira coluna, da esquerda para a direita, permite que Lacan defina qualidades e possibilidades de troca entre o agente e a verdade; a segunda coluna estabelecerá relações entre o outro e a produção. Vejamos:

Fonte: Lacan, [1969-1970] 2008, p. 161.

Figura 1 Lugares discursivos 

Embaixo da barra, no local da verdade, se coloca aquilo que é desconhecido dos protagonistas do laço social: o desejo inconsciente do falante (a verdade, um sujeito barrado). Entre a verdade e a produção, conforme diz Lacan, há algo que se fecha, demonstrando um desencontro entre a produção e a verdade (//). Portanto, existe uma relação de impotência entre a produção e a verdade. Pensemos que um caminho a percorrer está onde a verdade (verdadeira) não existe, já que há um impossível no dizer do sujeito e há uma verdade da qual nunca se sabe. Ou seja, será que existe até mesmo uma meia-verdade, mas só até aí?

A forma mais elementar de descrever esse discurso se apresenta na dialética do senhor e do escravo, de Hegel, representado no par S1 - S2 onde o escravo trabalha para seu senhor, ou seja, o escravo tem o saber, enquanto o senhor apenas quer que a produção aconteça, abrigando uma contradição interna: o senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e porque vive do trabalho desse escravo. Assim, vemos que o “mestre é castrado”.

Aqui apontamos algumas distinções entre o assim chamado “mestre antigo” e o “mestre moderno”. O que o mestre faz, portanto, é fornecer um significante, um significante-mestre. Ele “dá um sinal” (signo) e todos os seus poderes dependem desse signo.

Fazer com que as pessoas trabalhem é ainda mais cansativo do que a gente mesmo trabalhar, se tivesse mesmo que fazê-lo. O mestre nunca faz isso. Ele dá um sinal, o significante mestre, e todo mundo corre (Lacan, [1969-1970] 2008, p. 185).

Após a Conferência de Milão, de 1972, Lacan escreveu a fórmula de um suposto “quinto discurso” - o discurso do capital. Ele foi, aos poucos, teorizando acerca da emergência do discurso do capitalista, a partir do qual ele vai fazer uma outra torção do discurso do mestre, em que o sujeito barrado, que não mais se endereça ao Outro, se conecta diretamente ao objeto a, de seu autoconsumo, se apoiando na cadeia de significantes para tal.

O pensamento de Slavoj Žižek

Para Žižek, filósofo e psicanalista esloveno, a lógica capitalista é algo de uma fixação estético-política por uma ruptura, por uma idolatria à transgressão e pela radicalidade da violência, como aparecimento de uma nova ordem, em que a fantasia ideológica não se opõe à realidade. Ao contrário, ela estrutura a própria realidade social.

Nessa linha, Žižek (2003, p. 117) vai nos dizer que “a tese lacaniana fundamental é aquela segundo a qual o próprio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, exige um influxo constante de jouissance”. A palavra “jouissance”, trata do “gozo” (tradução mais usada para esse termo lacaniano).

Žižek (2003) revela o papel vital que o “gozo” desempenha na vida cotidiana. Porém, para entender a concepção de gozo que ele extrai do pensamento de Lacan, é necessário ter em mente que se trata não de um prazer propriamente dito e sim de uma insistente e repetitiva angústia, um tanto quanto desconfortável.

Trata-se de uma espécie de enjoyment, de uma euforia, porém insustentável, que se assemelha à dor. Um “algo-a-mais”, que traz a pulsão de morte como um imperativo: “Goza”!

Žižek nos lembra que Lacan disse palavras de desafio aos estudantes revolucionários de 1968: “Vocês são loucos que pedem um novo patrão [mestre]. E o terão”.

É importante lembrar que o discurso capitalista é aquele que não faz laço social, diferentemente dos quatro discursos anteriores. Žižek (2006) vai refletir justamente sobre o isolamento do indivíduo, o que exclui a intersubjetividade e o encontro com o Outro.

Para Foucault ([1976] 1988, p. 102), o dispositivo da sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, o inovar, o anexar, o inventar, o penetrar nos corpos, de maneira cada vez mais detalhada, e controlar as populações de modo cada vez mais global. Vale lembrar o filme Crimes of the Future, no qual novos órgãos são criados pelo próprio corpo dos “sujeitos” de um futuro distópico, enfatizando o gozo autoerótico e nos trazendo fortemente a máxima de Lacan “não há relação sexual”, com uma série de inovações/máquinas tecnológicas de sobrevivência e gozo no corpo de cada um, e uma sutil tentativa de controle desses corpos pelo poder.

Dentro de um projeto “transumano”, em que ficam mais evidentes o gozo autoerótico e a inexistência de relação sexual, começamos a pensar mais profundamente em transexualidades, intersexualidades, encontros sexuais, seja como for, partindo do princípio de que o gozo, uma vez localizado no corpo do próprio indivíduo, não envolve o Outro.

Passamos, então, a nos indagar: como será a orientação sexual do futuro? O que acontecerá no corpo e nos órgãos sexuais desses seres futurísticos? O que eles farão com isso? Podemos pensar também que efeitos inesperados novos órgãos provocarão nos seres vivos. Como serão esses movimentos seja nas massas, seja individualmente? Como será a direção de tratamento de um(a) analista frente a essas novas formas de gozo? Quais sintomas serão formados por esses novos seres de gozo?

Lacan: entre a mais-valia e o mais-gozar A homologia, na qual Lacan ([1968-1969] 2008) irá se deter mais no Seminário 16: De um Outro ao outro e será fundamental para o entendimento subsequente de suas ideias, é a relação entre mais-valia e o mais-de-gozar que, a partir daí, irá designar o objeto a.

Para compreendermos a importância da mais-valia para a psicanálise e a teoria dos discursos, é preciso entender que o conceito marxista da mais-valia, grosso modo, vai significar a diferença entre o valor final da mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do valor do trabalho. Entretanto, há um problema: o proletário não recebe o justo valor de sua produção, mas apenas o necessário para sua sobrevivência como força de trabalho, então ele produz certa quantidade de mercadorias que não serão pagas. É essa lacuna que Marx chama de mais-valia, ou seja, a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador, que vai se constituir na base de exploração do sistema. Ele pode até produzir mais, mas esse “mais” nunca será suficiente para alcançar o que já foi perdido.

O que Lacan introduz em sua análise do capitalismo é que a mais-valia está na base da lógica capitalista, o que inaugura uma nova etapa na história da humanidade. Esse detalhe é o que marca a transição de um período histórico que Lacan irá chamar de passagem do discurso do mestre para o discurso capitalista, cuja transmutação do objeto a, que compõe todos os discursos, ao mais-de-gozar, se constitui no eixo central desse entendimento. É certo que o objeto a vai atuar de forma marcante em todos eles, mas é no discurso do capitalista onde ele será fundamentalmente diferenciado, ao marcar uma diferença básica na própria concepção de objeto a, a partir do fato de ser atrelado irremediavelmente ao seu homólogo, sem a barra do impossível com seu objeto de gozo.

No Seminário 17: O avesso da psicanálise, Lacan ([1969-1970] 1992) esclarece que o mestre teria renunciado a tudo, ao gozo em primeiro lugar, pois, dando a ordem ao escravo, ele perde algo desse gozo (que pertence ao escravo). Entretanto, algo lhe deve ser restituído, e é nesse caso que se situam a mais-valia e o mais-de-gozar.

Quanto ao novo discurso, Lacan ([1968-1969] 1992, p. 33) diz:

O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser procurado pelos que substituem o antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis, tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí (grifo do autor).

O que está desenhado no discurso capitalista é a relação direta do sujeito (S) com os objetos (a) que, desse modo, não se constituem mais como causa de desejo, mas como objetos de consumo, cujo acesso deve ser irrestrito. E é porque a afinidade contemporânea se dá por meio dos objetos [gadgets] que essa relação tem como efeito a fragmentação dos laços sociais. Não há mais o mestre. O que há é a “possibilidade” de se reaver um gozo perdido (que, de fato, nunca mais será encontrado), e a real condição de se consumir naquilo que se consome.

Em suma, o discurso do capitalista facilita o gozo através da mediação dos objetos que encenam a dinâmicas capitalista da ‘mais-valia”, com a dinâmica libidinal do “mais-de-gozar”. Para Žižek (2003), esse “gozo” de algo sem o seu algo, ou seja, do café sem cafeína, do leite sem lactose, do chocolate sem cacau, da manteiga sem gordura, é o que se obtém no capitalismo, como um semblante do gozo, mas não o seu real, pois sempre falta algo da sua essência. Nas latusas/gadgets, são oferecidas desde pornografia ilimitada a algoritmos sexoafetivos ou plataformas sexuais virtuais de toda ordem, desde que nos poupem do encontro problemático e obsceno com o outro.

Vejamos ainda que, a cada dia, não é mais suficiente um gozo regulado, mas uma explosão insana e desordenada, de um excesso que nos desumaniza e angustia, transformando os sujeitos em avatares nas redes sociais, semblantes nas “baladas”, que não fazem laços com o outro, seja para encontros casuais, ou sexuais, ou assexuais, ou transexuais, ou bissexuais, ou homossexuais, ou heterossexuais, independentemente das anatomias interessadas a cada um, desde que o “gozo” [jouissance] esteja presente e cada vez mais intenso, mais mostrado. No entanto, o pano de fundo é a falta estabelecida em cada suposta satisfação, quando o sujeito barrado, ao consumir o objeto a, faz com que esse objeto se consuma nele próprio como uma via de mão dupla.

Conclusão

Simbólicos frágeis, formados por significantes mestres fugazes, estruturam de forma precária a identidade dos sujeitos, sua sexualidade líquida, seus empregos breves, sua família sem laços, suas relações afetivas cada vez mais carentes de solidez, bonecos infláveis, ipads, Tinders para todos os ‘gostos’. Como se estivéssemos numa Matrix, onde o sujeito se encontra imerso ideologicamente em projetos sexuais consumíveis tão diversos e sempre com um “plus”, mas que nunca têm fim.

Lembremos da série de TV Black Mirror, no episódio chamado 13 milhões de méritos, quando o rapaz apaixonado, que vive no futuro, dá à moça todos os seus pontos (méritos), para que ela consiga um programa de TV onde poderá ser a cantora que tanto sonha. No entanto, o “sistema” a coloca como atriz de um programa pornográfico, devido à sua beleza corporal, pois trará mais audiência aos que irão assisti-la. Indignado, ele decide denunciar o ocorrido a todos, indo a um outro programa de TV para falar sobre sua aversão ao ocorrido. Entretanto, ao conseguir expor sua indignação no palco, cuja plateia é feita dos avatares, assexuados, dos que os assistem em seus cubículos (casas), lhe é oferecido um lugar melhor (mais amplo) para morar. E um novo programa de TV, no qual ele vai expor suas questões contra o sistema. Ele aceita. Fazer o quê? Denunciar a Matrix serviu como um novo alimento do sistema. Sua explosão angustiante foi transformada numa nova forma de “mais-de-gozar”, oferecida aos sujeitos que enviam seus avatares aos shows de TV. Quem goza? Os que consomem? Os próprios avatares? Enquanto isso, os sujeitos continuam sós, gerando energia para alimentar o sistema, sem, no entanto, terem encontros verdadeiros com nenhum outro, já que seus avatares cumprem suas funções, participando das plateias dos programas. Pobres de nós, escravos da contemporaneidade, e de seu futuro! j

Referências

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber (1976). Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1988. [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro (1968-1969). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

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ŽIŽEK, S.; DALY, D. Arriscar o impossível: conversas com Žižek e Glyn Daly (2006). Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins, Fontes, 2006. [ Links ]

Recebido: 05 de Outubro de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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