Introdução
Em seus estudos sobre o amor, Regina Navarro Lins (2012) aponta que, após as doenças e a miséria, as relações amorosas são consideradas a maior fonte de sofrimento humano com a qual temos contato. Isso porque, não raro, a expectativa da maioria dos casais passa pelo viés da autorrealização por meio do amor que se oferece e se cobra do parceiro. Nessa linha de raciocínio, em O mal-estar na civilização, Freud ([1930] 1996) discute o mal-estar enfrentado pelos sujeitos diante de suas relações. Na concepção do autor, o sofrimento que advém desse campo talvez seja mais penoso que qualquer outro.
Nesse contexto, percebe-se que essas tentativas denunciam que entre as pessoas há mais nós do que laços, uma vez que existe um (des)compasso entre o que vigora na conjuntura das relações e o que se propõe como linha de força estrutural de cada sujeito. Assim, nota-se que, em busca da completude amorosa, os sujeitos surgem no cenário clínico com discursos nos quais o amor é confundido com várias formas de violência, em que o ciúme e a agressão física aparecem nas relações inclusive como demonstração de amor e cuidado.
Diante desses discursos nos quais o sujeito aponta para algo que seja da ordem do amor, numa tentativa incessante de fazer laços, levanta-se a seguinte questão: o que leva alguns desses sujeitos a manifestar comportamentos de hostilidade e violência na relação com sua parceria amorosa?
A partir desse questionamento, pretende-se engendrar uma investigação teórica através da psicanálise freudiana quanto aos aspectos subjetivos envolvidos em relações baseadas no ciúme excessivo, na dependência incondicional dos parceiros e até mesmo nas mais variadas formas de violência. Objetiva-se realizar uma leitura da relação entre o sujeito e seus laços (des)amorosos.
O amor em Freud: as vicissitudes da libido na escolha do objeto amoroso
Entre os discursos que se ocupam do amor, interessa-nos, nesta investigação, o discurso freudiano, visto que se diferencia por atribuir ao amor uma lógica que passa sobretudo por sua concepção pulsional, ancorada principalmente em sua prática clínica. Sabe-se que o criador da psicanálise muito se preocupou com o desenvolvimento da sexualidade, como diz no ensaio O esclarecimento sexual das crianças que “muito antes da puberdade, já está completamente desenvolvida na criança a capacidade de amar” (Freud, [1907] 1996, p. 125). O autor compreendia o fenômeno amoroso não como exclusivo à vida adulta, mas como fundamental para a constituição psíquica do sujeito desde a mais tenra idade (Ravanello; Martinez, 2013). Dessa forma, busca-se traçar breves considerações sobre o movimento pulsional em que o sujeito se lança para suas escolhas objetais como Freud ([1914] 1996) esclareceu em Sobre o narcisismo: uma introdução.
Ao estudar os textos freudianos, é possível perceber que, embora o tema perpasse toda a sua obra, o amor não é circunscrito enquanto um conceito psicanalítico. Contudo, é caro e relevante para a psicanálise, tendo em vista que falar do amor “abarca as tramas subjetivas, epistemológicas e conceituais que estão envolvidas em toda a construção teórica empreendida tanto por Freud quanto por Lacan” (Ravanello; Martinez, 2013, p. 160), na tentativa de uma construção sobre o que vem a ser o sujeito e o modo pelo qual a psicanálise aponta o amor transferencial como motor do processo analítico.
Embora não haja um estatuto conceitual fechado que caracterize o que vem a ser o amor para a psicanálise, é possível estabelecer uma relação sobre o tema em inúmeras teorias, como a pulsão, a sexualidade, o narcisismo, a feminilidade, entre outras. Por esse motivo, Ianinni e Tavares (2018) apontam a impossibilidade de trabalhar o amor de maneira isolada.
Assim, considera-se que a constituição amorosa das crianças passa inicialmente por uma fase narcísica, na qual elas amam em primeiro lugar a si próprias e apenas mais tarde aprendem a amar e a sacrificar algo seu para investir libidinalmente nos outros, o que caracteriza uma segunda fase denominada de escolha objetal.
Entretanto, é indiscutível o fato de que, desde o início da vida, o ser humano se encontra num estado de completa dependência do outro, visto que sua fragilidade biológica não lhe permite efetuar minimamente suas necessidades básicas como se alimentar, de modo que é a mãe ou alguém que exerça essa função que estabelece uma primeira relação fundamental pautada nos cuidados que possibilitarão à criança sobreviver.
Esse primeiro relacionamento é de extrema importância para o desenvolvimento psíquico do infante, uma vez que, como Freud demonstrou ao longo de sua obra e Lacan teorizou, as marcas inscritas nessa época moldarão os modos de relação que o sujeito irá estabelecer ao longo da vida (Chaves, 2005; resstel, 2015). Entre essas marcas, encontra-se a angústia, que está atrelada ao medo do abandono e ao desamparo, sentimentos que acompanham o ser humano desde seu nascimento como Freud ([1927] 1996) argumenta em O futuro de uma ilusão.
Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud ([1914] 1996) aponta que, após o período anaclítico, de autoconservação, o indivíduo, que supostamente tinha todos os seus desejos atendidos e gozava do amor pleno dos pais, se vê desamparado, por isso dirige sua libido para outros objetos externos. Nesse movimento, ele busca algo que diga dele próprio, uma parte de si mesmo. Ao dirigir seu amor a um outro, o sujeito apaixonado não ama especialmente esse outro, mas o reflexo de suas próprias características que foram projetadas e identificadas no objeto eleito.
Freud ([1914] 1996) destaca também que a fase mais elevada do desenvolvimento do narcisismo se encontra no enamoramento do sujeito com o outro, pois se apresenta um abandono da própria personalidade em favor do investimento no objeto externo, ou seja, quanto mais investimento há nos objetos, mais empobrecido e rebaixado o Eu se torna.
Esse superinvestimento pode caracterizar a angústia que o sujeito apaixonado vive ao se deparar com a possível perda de seu objeto eleito. Como esse outro ocupa o lugar de suplência na vida do sujeito amante, se o sujeito perder esse amor, perde também a possibilidade de desejar além do campo do outro.
Na concepção freudiana, o amor, mesmo objetal, é um movimento narcisista do sujeito em direção ao objeto, que supostamente pode recuperar a integridade de seu Eu. Essas formulações nos interessam na medida em que se verifica que, para a psicanálise, o amor diz respeito a esse despertar pulsional. Isso significa dizer que o destino que o amor assumirá é variável e não previsível, pois se percebe que nenhuma posição subjetiva apresenta um centro preestabelecido.
De posse dessas formulações freudianas, é possível destacar que, desde o início da psicanálise, as pessoas buscavam a clínica para falar dos desencontros amorosos da vida adulta e já se associava essa impossibilidade ao amor objetal infantil.
Nesse sentido, Jean Allouch (2010) assevera que os discursos clínicos produzidos na contemporaneidade apontam frequentemente para as demandas relativas ao fenômeno amoroso. Nas palavras do autor, “hoje, por vezes, apelamos [...] para um psicanalista, quando fica evidente demais que, em se tratando de amor... a coisa não funciona” (Allouch, 2010, p. 11).
Sadismo, violência e hostilidade: o que isso quer dizer?
De acordo com Freud ([1905] 1996) em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, a sexualidade da maioria dos homens aponta para um elemento de agressividade, uma tendência a dominar, explicada biologicamente pela necessidade de romper a resistência do objeto sexual sem a necessidade de cortejá-lo. Dessa maneira, um traço daquilo que chamamos de sadismo se caracterizaria como um componente agressivo da pulsão sexual, que se tornou independente, exacerbado e foi colocado na posição principal mediante deslocamento.
Partindo dessa perspectiva, o conceito de sadismo, em sua configuração mais extrema, atravessaria os seguintes estágios: inicialmente uma atitude ativa, seguida de uma posição violenta frente ao objeto sexual, que resulta no vínculo da satisfação com humilhação, maus-tratos e hostilidade contra o objeto de desejo (Scaglione, 2018).
Em contraponto, Freud ([1905] 1996) considera masoquismo todos os comportamentos passivos em relação ao sexo e ao objeto sexual, de maneira que sua forma mais elevada se refere à satisfação com o sofrimento físico ou psíquicos suportados pelo próprio sujeito. Ele acrescenta que o prazer inconsciente advindo da humilhação e da submissão poderia ser pensado como uma continuação do sadismo, só que voltado para o próprio sujeito.
Ancorado nos estudos de Freud, Birman (2009) considera que o desejo original do sadismo não se forma apenas na pretensão de humilhar, agredir, controlar e infligir a dor no outro, mas de assegurar o poder e as possibilidades que o próprio sujeito detém. Francesco Scaglione (2018) considera que o sadismo pode ser lido à luz de uma vingança pelo objetivo de empatar as contas, guiada por uma espécie de lei da retaliação, que exige revide.
Scaglione (2018) acrescenta que, quando não consegue dominar uma experiência conflituosa na relação com seu parceiro, o sujeito passa a colocar a agressividade em ação a serviço da destruição do outro e, por consequência, sua própria destruição. O autor argumenta que a vingança é estritamente funcional para a remoção da dor, particularmente na gestão da angústia da separação. Assim, “a vingança seria uma maneira de manter a ligação libidinal com a pessoa que nos ofendeu” (Scaglione, 2018, p. 16). Para ele, trata-se de um Eu que reage à dor pela via de uma inversão simplista e reativa no oposto, baseando-se na negação, ou seja, para o sujeito, não é ele quem recebe a dor e sim o outro.
Não são raras as vezes em que comportamentos sádicos, não só no campo sexual mas também no moral, são praticados por sujeitos que vivem em função da vingança, que se transforma numa espécie de impulso motivacional, que se traduz como único propósito de vida. Nesse viés, Scaglione (2018) destaca que a vingança desempenha um papel compensatório, a ponto de assumir uma função estrutural, na medida em que nutre um Eu fraco, esvaziado e frágil em relação à economia psíquica. O autor considera também que, no sadismo, a vingança ou qualquer outra forma de hostilidade pode servir como defesa contra qualquer afeto reprimido e a ansiedade de separação, fazendo um desvio da dor e uma tentativa de restaurar a integridade do Eu.
Entre laços e nós: o amor e seus (des)compassos
É no campo do amor que atos de violência e hostilidade se manifestam da forma mais cruel, já que uma manifestação de amor pode esconder uma relação de ódio e não é incomum que o ódio, em igual medida, seja interpretado como amor (Xavier; Ferrante, 2016).
À vista disso, é possível retornar à questão inicial deste trabalho: o que leva alguns desses sujeitos a manifestar comportamentos de hostilidade e violência em relação a sua parceria amorosa?
Na tentativa de responder a tal questão, recorremos aos estudos de Manuella Cruz Araújo (2018) que indicam que, quando existe uma escolha de objeto e um investimento da libido em relação à outra pessoa, e o sujeito é contrariado ou se decepciona com algo vindo da pessoa amada, ocorre um abalo na relação de objeto. Nesse movimento, toda a libido que era para ser retirada do objeto amado e deslocada a um outro, é transferida para o próprio Eu. Por consequência, há uma identificação com o objeto abandonado, que transforma essa perda na perda do Eu, estabelecendo um conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu alterado pela identificação, segundo Freud [1917/1915] 1996) esclarece em Luto e melancolia.
Freud ([1917/1915] 1996) destaca duas possíveis saídas para tal processo: a fixação no objeto amoroso ou uma resistência de investimento no objeto. Essa contradição ocorre porque a escolha do objeto foi feita a partir de uma base narcísica, de modo que, diante de dificuldades, o investimento objetal possa regredir ao narcisismo.
Não sem razão, Araújo (2018) defende que essa identificação narcísica com o objeto substitui o investimento amoroso. Apesar do conflito com o objeto, a relação amorosa não necessariamente precisa ser abandonada. Em linhas gerais, a possibilidade ou a perda do objeto amado traz à tona a ambivalência nas relações amorosas. Quando o objeto é renunciado, mas o amor em relação ainda prevalece, o ódio é direcionado ao objeto na forma de insultos, hostilidade, rebaixamento, destituição, provocando sofrimento.
Entretanto, vale destacar que a violência e a agressividade em relação ao outro são indissociáveis da agressividade em relação a si mesmo, uma vez que toda ação violenta se sustenta na identificação. Por esse viés, é possível pensar “no sujeito que agride o outro como alguém que está agredindo algo em si que não pode ser admitido como seu” (Araújo, 2018, p. 31).
Considerações finais
Embora o amor seja considerado e idealizado como um objeto suplente da falta do sujeito, nota-se que, nas estrelinhas dos discursos que nos chegam na clínica, há arranjos para um modo de amar que, por vezes, são receitas para o fracasso e o sofrimento. Nesse sentido, este trabalho buscou refletir, ainda que de forma breve, alguns (des)compassos do amor calcados em comportamentos violentos e hostis por parte de alguns sujeitos.
Tais comportamentos denunciam uma dificuldade na elaboração daquilo que se refere às dores e à angústia por parte desses sujeitos, que encontram uma saída na manifestação de atos de violência das mais diversas ordens na tentativa de aliviar seu sofrimento. Posto isso, destaca-se a importância da escuta profissional qualificada, a fim de possibilitar o testemunho e a nomeação daquilo que ainda não foi possível simbolizar. Nesse sentido, a teoria psicanalítica torna-se relevante na medida em que apresenta subsídios para a compreensão dos fenômenos psíquicos que permeiam o campo das relações amorosas e suas dinâmicas, sem desresponsabilizar os sujeitos envolvidos.
Por fim, considera-se como limitações na investigação pesquisas mais aprofundadas em alguns conceitos freudianos, tais como pulsão de morte, repetição e narcisismo, visto que todos se articulam e podem auxiliar na compreensão dos (des) caminhos do amor. Salienta-se que o aprofundamento na teoria lacaniana tem muita relevância, tendo em vista que conceitos como gozo e parceiro-sintoma também podem contribuir para o desenvolvimento desse trabalho. j