Introdução
A discussão aqui apresentada constitui o resultado parcial de uma pesquisa bibliográfica em torno da questão do sintoma, entendido desde o início como um ponto axial para pensar tanto a clínica psicanalítica quanto os fundamentos da psicanálise. Como parte de um projeto maior (Pelenz, 2021), tomamos por base a elaboração lacaniana que considera o sintoma como o texto de um sujeito falante, mas sem perder de vista a importância de uma constante atualização da descoberta freudiana, com seu campo conceitual e com seu método.
Com os argumentos aqui desenvolvidos, pretendemos afirmar que a experiência psicanalítica considera, na formação do sintoma, uma dimensão de gozo, que, para Lacan, se mostra presente no valor do significante privilegiado articulado às repetições sintomáticas. A função desse significante na inscrição simbólica, segundo ele, é aquela que funda o falante de uma língua singular, lalíngua, com que o sujeito, no limite de sua linguagem, sustenta suas formações do inconsciente. Essa lalangue própria retoma o modo como o sujeito encadeia no discurso a condição de que o inconsciente se estrutura ora metaforicamente, ora metonimicamente.
Para explicitar esse ponto, partimos da concepção de que o inconsciente, embora subverta o cogito cartesiano, não se constitui como o oposto da consciência. Em vez disso, o inconsciente retoma a relação distinta mas não separada entre o eu e o isso, que Freud ([1917] 2014) observou em meio à formação do sintoma neurótico, na conferência Os caminhos da formação de sintomas. Para ele, o sintoma provém do embate entre essas duas instâncias em torno de uma nova “vicissitude” para a pulsão, de forma que os meios incompreensíveis de satisfação que os sintomas encontram devem ser remetidos a uma satisfação que surge como desfecho da divergência de forças que “reconciliam-se, por assim dizer, mediante o compromisso de formação do sintoma” (Freud, [1917] 2014, p. 476). Disso decorre o fortalecimento do sintoma, que é sustentado tanto pelo eu quanto pelo isso.
Outro ponto importante para este texto que se desdobra das proposições acima é a sustentação de que o inconsciente freudiano, conforme a releitura de Lacan, está presente em todas as ações do homem, e suas formações têm relação com o fato de que o corpo goza. Consideramos, portanto, o que Freud ([1926] 2014) nos fez ver no seu texto Inibições, sintomas e ansiedade [angústia]: esse substituto deslocado e inibido da moção pulsional guarda profunda relação com a angústia e a escolha de seus objetos.
Desse traço que parte do recalcado, Lacan ([1961-1962] 2003) nos mostrou no Seminário 9: A identificação que a função do significante em seu valor privilegiado cumpre na cadeia discursiva uma função de rememoração, pois o significante inscrito insiste que a pulsão se conserve, ainda que em nossa busca não haja mais - porque foi apagado - nenhum rastro dela.
O sintoma como formação do inconsciente
O enfrentamento das forças psíquicas entre o eu e o isso, a partir do qual podemos falar de uma pulsão rechaçada no recalque, impedida de advir ao eu, dá origem a “um substituto, mas um bastante atrofiado, deslocado, inibido, e que já não é reconhecível como uma satisfação” (Freud, [1926] 2014, p. 25). Esse deslocamento para um substituto, segundo Freud, é sinal de que a pulsão original não foi extinta, pois, se a pulsão recalcada “se dispõe a aceitar outro objeto no lugar daquele que lhe foi recusado” (Freud, [1917] 2014, p. 476), seu destino será o da regressão, o que significaria ser “atraída pela fixação que deixou para trás” (Freud, [1917] 2014, p. 477).
As ideias às quais a libido agora transfere sua energia, sob a forma de investimento, pertencem ao sistema do inconsciente e estão sujeitas aos processos possíveis neste, em particular à condensação e ao deslocamento. Com isso, estabelecemse condições idênticas àquelas vigentes na formação dos sonhos (Freud, [1917] 2014, p. 477-478).
Essa questão a respeito dos destinos da pulsão, ao modo como Freud pensou a movimentação da moção pulsional, ajuda-nos a pensar sobre as leis que regem o inconsciente. O sintoma, assim como o sonho ou qualquer outra formação do inconsciente, ainda que seja por meio de seu atrofiado substituto, encontra “a realização de uma fantasia inconsciente” (Freud, [1917] 2014, p. 478). A presença mesma das fixações, figuração de uma pulsão regressiva, como disse Freud, é uma possibilidade de contornar o recalque e levar a uma satisfação real, que, “no entanto, é extremamente limitada e já quase irreconhecível” (Freud, [1917] 2014, p. 479). De todo modo, o que esse substituto da pulsão demonstra, ainda que não esteja à altura do objeto que substituiu, é que a moção pulsional continua a se deslocar.
Ainda que os sintomas, por seus meios incompreensíveis de satisfação da pulsão, não lembrem “em nada aquilo que costumamos entender por satisfação” (Freud, [1917] 2014, p. 486), eles, “na maioria dos casos, desconsideram o objeto e, assim, abandonam o vínculo com a realidade exterior” (Freud, [1917] 2014, p. 486). Sendo assim, já estamos alertas sobre o fato de que, em alguma parte, o eu também se realiza com o sintoma. O que esse deslocamento da pulsão fundamentalmente conserva é a asserção de que “a distorção que constitui a formação do sintoma não é feita no representante (o conteúdo ideativo) do impulso instintual a ser reprimido, mas em um completamente diferente dele” (Freud, [1926] 2014, p. 36). Então, o deslocamento da pulsão recalcada, por meio da distorção no representante substituto da pulsão, explicita que o recalque continua sendo um eficaz mecanismo de defesa do eu, contudo ele é capaz de incidir sobre o representante da pulsão [Triebrepräsentanz], e não sobre a pulsão.
O fato de o sintoma promover “uma ação interna em vez de externa” (Freud, [1917] 2014, p. 486) explicita-se por essa modificação corporal. Diante disso, Freud relacionou a condensação e o deslocamento, estabelecendo que esses processos do inconsciente conservam um relevante paralelo entre o funcionamento do sonho e a formação de sintomas neuróticos. Para ele, assim como o sonho,
[...] o sintoma apresenta como realizada uma satisfação; trata-se de uma satisfação à maneira infantil, mas que, por intermédio de uma condensação extrema, pode ser comprimida em uma única sensação ou inervação e, pela via de um extremo deslocamento, pode se restringir a um pequeno detalhe de todo o complexo libidinal. Não admira, pois, que muitas vezes tenhamos dificuldades em reconhecer no sintoma a satisfação libidinal conjecturada e sempre confirmada (Freud, [1917] 2014, p. 487, grifos do autor).
Assim, a condensação e o deslocamento constituem o modo como Freud se refere ao fato de que, como no sonho, na formação de sintomas também está evidente que o desejo, atrás de todo mecanismo de defesa do eu, continua a encontrar satisfação com seus objetos parciais.
Lacan ([1957] 1998), em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, se baseia no deslocamento e na condensação freudianas para desenvolver sua elaboração sobre a metáfora e a metonímia, entendidas como as duas leis da linguagem com que o inconsciente se estrutura. Considerando a letra da descoberta freudiana sob o viés da linguística de Saussure e Jakobson, Lacan recupera de Freud o que lhe foi fundamental para afirmar que do sonho, como um rébus, importa aquilo que pode ser retido “por seu valor de significante” (Lacan, [1957] 1998, p. 514), de modo que a significância seja lida nessa estrutura da linguagem. Daí ele afirma que, em razão de Freud ter depurado o inconsciente ao modo de uma escrita hieroglífica, o inconsciente está condicionado aos efeitos significantes da letra.
Retomando primeiramente o termo freudiano Entstellung [transposição], que se refere à “precondição geral da função do sonho” (Lacan, [1957] 1998, p. 514), que Freud utilizou para chegar à condensação e ao deslocamento, Lacan ([1957] 1998, p. 515) diz:
A Verdichtung, condensação, é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente tradicional desta.
A Verschiebung ou deslocamento é, mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura.
Lacan ([1957] 1998, p. 515) explicita essa elaboração que vai da Entstellung às “duas vertentes da incidência do significante no significado”, dizendo que a condensação e o deslocamento, que Freud notou no sonho, confirmam que esses mecanismos exercem uma “função homóloga no discurso”. Diz também que a condição imposta ao material significante, de se valer do “papel de figurabilidade”, revela que a incidência do significante se constitui como uma questão de linguagem. Desse modo, na medida em que o sonho esbarra “na falta de material taxêmico para representar as articulações lógicas da causalidade, da contradição, da hipótese etc.”, ele dá provas de ser “uma questão de escrita, e não de pantomima”.
Para Lacan ([1957] 1998, p. 518), o trabalho do sonho, de Freud, foi fundamental para definir que “a experiência psicanalítica não é outra coisa senão estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de nossas ações”. Mas, como nos aponta a experiência psicanalítica, sua presença na ordem psicológica não é coextensiva a essa função, no sentido de que tanto os efeitos psíquicos conscientes quanto os efeitos psíquicos inconscientes guardam relação “com o inconsciente no sentido freudiano” (Lacan, [1957] 1998, p. 518).
Desse modo, retomando o psíquico em Freud, Lacan pretendeu relevar que não se o tenha na conta como um efeito do inconsciente, mas que, por psíquico, fica delimitado seu espaço, ou melhor, que Freud estabeleceu com essa terminologia “a tópica desse inconsciente” (Lacan, [1957] 1998, p. 518). A partir disso, definindo que a significância se constitui no encadeamento de significantes que incidem sob o significado, Lacan fará notar que os efeitos de significante se distribuem “de acordo com duas estruturas fundamentais, na metonímia e na metáfora” (Lacan, [1957] 1998, p. 519).
Da metonímia ou da “primeira vertente do campo efetivo que o significante constitui” (Lacan, [1957] 1998, p. 510) para que no discurso tenha um lugar o sentido, Lacan ([1957] 1998, p. 507) nos apresenta sua “lei do paralelismo do significante”. Essa estrutura se designa no deslizar de palavra em palavra que conecta um significante (S’...) a outro (...S’’) na cadeia discursiva, o que abre margem para a ascensão de uma significação a partir da incidência no significado. No entanto, conforme nos aponta, essa estrutura “permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta do ser na relação de objeto, servindo-se do valor de envio da significação para investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta” (Lacan, [1957] 1998, p. 519). Assim, a metonímia demonstra o desejo desse sujeito como algo remetido à resistência da significação, pois a falta do ser visa que esse desejo não se realize.
A metáfora, por sua vez, não se constitui pela conexão entre significantes que define a metonímia; ela se consolida, como Lacan nos assegura, “entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante” (Lacan, [1957] 1998, p. 510). Sua estrutura torna característica a fórmula uma palavra por outra, pois ela explicita “que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação” (Lacan, [1957] 1998, p. 519) que o sujeito falante marca a transposição da barra que separa o significante do significado. O mecanismo de duplo gatilho da metáfora, em um primeiro momento, contempla a substituição do “significante enigmático do trauma sexual” (Lacan, [1957] 1998, p. 522) na cadeia significante atual e depois fixa num sintoma “a significação, inacessível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver” (Lacan, [1957] 1998, p. 522). Dessa maneira, com a metáfora, Lacan definiu que a fixação a um significante garante o sintoma no sentido psicanalítico.
Se a diferenciação entre a metonímia e a metáfora foi necessária de antemão visto que essas duas vertentes cumprem de fato funções distintas, num segundo momento, Lacan tratou de embaraçá-las. Como o sintoma na psicanálise não pode mesmo ser contemplado como formação apartada do desejo, pois “é a verdade do que esse desejo foi em sua história que o sujeito grita através de seu sintoma” (Lacan, [1957] 1998, p. 522), reuni-las novamente consiste em dizer que o inconsciente funciona numa operação conjunta dessas duas perspectivas.
Nesse sentido, podemos dizer que as duas propriedades do efeito significante da letra, a metonímia e a metáfora, dão a conhecer que o desejo, fixado a um significante recusado ou a uma falta do ser, demonstra a função do sujeito.
Lacan ([1957] 1998, p. 521) diz:
[...] esse jogo significante da metonímia e da metáfora, incluindo sua ponta ativa que fixa meu desejo numa recusa do significante ou numa falta do ser e ata minha sorte à questão de meu destino, esse jogo é jogado, até que a partida seja suspensa, em seu inexorável requinte, ali onde não estou, porque ali não me posso situar.
Como efeito da desordem provocada pela razão desde Freud, Lacan localizou o sujeito da psicanálise. Essas leis do funcionamento da linguagem, a metonímia e a metáfora, portanto, garantem que não haja meios de o sujeito se desvincular de ser tão somente aquilo que é, no momento em que profere o discurso. Em razão daquilo que se repete na cadeia de significantes, fica ilustrado que eu digo aquilo que sou, o mais próximo de minha verdade. Mas a isso Lacan acrescenta: por meio da devoção por “vir a sê-lo, não posso duvidar de que, mesmo ao me perder nisso, é aí que estou” (Lacan, [1957] 1998, p. 521).
Com essa aproximação entre o inconsciente freudiano de “dentro da dimensão do ser” (Lacan, [1957] 1998, p. 522) e os mecanismos significantes aí implicados, Lacan reassegura que o retorno a Freud confirma o sintoma como a verdade desse desejo, ou aquilo que não deixa de cumprir sua realização, ainda que votado à falta. Diante disso, cabe dizer que o sintoma cumpre, diferentemente de uma memória, “a função de rememoração” (Lacan, [1957] 1998, p. 523) do significante enraizado. O sujeito, como coisa que advém no lugar em que isso foi, é aquele que demonstra os efeitos desse jogo do significante. Assim, em virtude do traço apagado do significante, sempre remetido à outra coisa, Lacan nos mostra a letra freudiana e confirma o desejo em sua relação com a formação do sintoma.
Decorre da invenção freudiana, então, que “a heteronomia radical” que funda a existência do sujeito no mundo não possa mais ser disfarçada “naquilo que pensa (cogitans)” (Lacan [1957] 1998, p. 520), visto que assim “nunca faço senão constituir-me como objeto (cogitatum)” (Lacan, [1957] 1998, p. 520). Lacan nos mostra que, situando-se somente a propósito de seu pensamento, esse sujeito apega-se a uma parte do que o constitui, mas abre mão daquilo que é a questão de seu ser. Posto isso, a experiência psicanalítica aponta para um limite pouco estabelecido entre interioridade e exterioridade, porque esse outro a que Lacan se refere se encontra cindido do sujeito, fora dele, mas, ao mesmo tempo, em seu âmago.
Apontando para o fato de que há um outro a que “sou mais apegado do que a mim”, Lacan ([1957] 1998 p. 528) situa o outro que agita o sujeito no mais íntimo de seu ser. Para ele, na excentricidade radical da identidade do ser consigo mesmo, é preciso considerar um outro a que estou remetido, mas sua presença “só pode ser compreendida num grau secundário da alteridade” (Lacan, [1957] 1998, p. 529), e isso se dá em razão de que esse outro intermedeia a relação entre o sujeito consigo mesmo e seu semelhante. Desse modo, Lacan introduz o inconsciente freudiano como discurso do outro, ou melhor, do Outro, com maiúscula. Porque esse Outro indica sua localização nesse “para-além em que se ata o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento” (Lacan, [1957] 1998, p. 529), Lacan pôde remetê-lo a essa porção do sujeito votada ao desejo inconsciente.
De como o sintoma se escreve
Até aqui reforçamos o argumento de “que é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade” (Lacan, [1957] 1998, p. 529). Caminhamos passo a passo com as proposições lacanianas a respeito das manifestações somáticas, que explicitam nas repetições a “função do engodo a serviço de uma necessidade” (Lacan, [1957] 1998, p. 529).
Interessa-nos, a partir de agora, tentar desdobrar esta outra pontuação, também lacaniana: tomar o inconsciente como discurso do Outro ressalta que a dimensão de gozo subsiste na linguagem. Ressalta-se, no entanto, que Lacan, mais uma vez, recolhe de Freud (1920) os fundamentos para tal, retornando principalmente ao texto Para-além do princípio do prazer.
Podemos dizer que Lacan, no decorrer de toda a sua obra, realçou da letra freudiana o sintoma como aquilo que ela escreve entre o ser e o Outro, afirmando que as duas propriedades do efeito significante da letra conclamam o sujeito. Lacan estabeleceu, assim, a definição do inconsciente como o discurso do Outro, para mostrar que o inconsciente não se centra no interior do psiquismo, uma vez que desafia a fronteira entre o ser e o objeto. Porque é uma metáfora, o sintoma deve ser pensado em sua relação com o significante privilegiado, e a função dessa inscrição na dimensão simbólica só se sustenta em sua articulação com o gozo.
Para Lacan, a relação entre o significante privilegiado e o gozo conta com a experiência da identificação a um significante, que introduz o traço unário [traitunaire] como o que faz referência ao Einziger Zug, de Freud. Einziger Zug é o que dá à função do significante seu valor, pois implica “esse nervo de que se trata na distinção do estatuto do significante” (Lacan, [1961] 2003, p. 58). A escrita desses significantes encadeados remetidos a um traço único garante que um traço seja necessariamente diferente dos demais e, assim, com efeito, compete dizer que em uma linha desses traços “não haverá um só semelhante” (Lacan, [1961] 2003, p. 59).
Dessa escrita que advém de um traço que sucede o outro sobra “o rastro [trace] de algo que é, sem ambiguidade, significante” (Lacan, [1961] 2003, (p. 60), pois esse significante carrega a marca de algo que se mantém, ainda que nenhum traço seja igual ao anterior. Lacan demonstra, portanto, a distinção entre o significante e o signo, para com isso definir a função desse significante como aquilo “que introduz a diferença como tal no real” (Lacan, [1961] 2003, p. 62). A função do significante em que consiste seu valor privilegiado não está separada da noção de que há um trace que se conserva, presente no que Lacan chamou de nervo de repetição. Portanto, a experiência de repetição está ligada ao fato de que o sujeito não tem “estrita e verdadeiramente nenhuma necessidade [...], isto é, repetições as mais pegajosas, as mais enfadonhas, as mais sintomatogênicas” (Lacan, [1961] 2003, p. 64).
Desse modo, Lacan nos conduz à acepção que considera verdadeiramente importante no advento do significante em sua função, pois para ele “o significante, ao contrário do signo, não é o que representa alguma coisa para alguém, é o que representa, precisamente, o sujeito para um outro significante” (Lacan, [1961] 2003, p. 64-65). É propriamente esse sujeito que pode estabelecer uma relação de identificação entre signo e significante, e é igualmente ele quem pode não estabelecê-la. Lacan está reforçando que essa função de identificação do significante remonta, de modo direto, ao nascimento do sujeito pelo significante. O sujeito será convocado na cadeia significante, que tem uma de suas pontas atadas à la trace d’un pas [ao rastro de um passo] e a outra a Le pas de trace [a nenhum rastro]. Essas estruturas a que o sujeito falante se prende, para que exceda o lugar de objeto, evidenciam o funcionamento ora metafórico desse significante, ora metonímico, donde mesmo o nenhum rastro carregará a marca singular do sujeito.
Os dois extremos da cadeia significante nos fazem retornar às repetições sintomatogênicas, pois Lacan está nos indicando que elas conservam uma relação com o modo como esse sujeito é “constituído pela existência do significante” (Lacan, [1961] 2003, p. 64). O automatismo de repetição, então, importa porque ali se revela a incidência da função do significante, onde, por causa do sujeito, pode haver a experiência de identificação. Portanto, interessa para a psicanálise que essas enfadonhas repetições sintomatogênicas remetam aos traços que insistem na cadeia discursiva e que isso deve ser colocado ao lado da significação que o caráter diferencial do traço escreve na repetição.
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma, Lacan ([1975] 1998) observa que a retomada da descoberta freudiana deve partir da revisão do termo que a nomeia. É porque o inconsciente [Unbewusstsein] “não é simplesmente ser não sabido” (Lacan, [1975] 1998, p. 10) que Lacan retoma a dimensão do gozo nesse texto. Para contemplar a invenção freudiana, seria preciso, então, segundo Lacan, recuperar o termo alemão Bewusst, que, se tomado em sua relação com Wissen, estabelece a noção do “consciente da consciência”. Para ele, o consciente da consciência “é formulado como o que verdadeiramente é, isto é, o gozo de um saber” (Lacan, [1975] 1998, p. 10). Por essa razão, ainda que o sujeito não o saiba, o inconsciente é manifestação desse ser que se goza, pois, segundo ele, uma imprescindível contribuição de Freud foi mostrar que “não há necessidade de saber que se sabe para gozar de um saber” (Lacan, [1975] 1998, p. 10). O inconsciente é também gozo de um saber e, por isso, é possível dizer que se goza inclusive naquilo que não se sabe.
Para Lacan, toda formação do inconsciente do sujeito falante precisa se apoiar em “sua” lalíngua. A função dos significantes articulados na realidade sexual - é o que Lacan nos mostra - tem a ver com lalíngua, porque ela diz respeito à dimensão simbólica com que o sujeito foi concebido no mundo. Isto é, lalangue é propriamente a língua da infância desse sujeito, aquela que lhe foi “ensinada” ao nascer. A partir de lalangue, podemos dizer que o sintoma é aquilo que tem ligação com o modo como esse sujeito em pauta foi inserido no discurso por seus pais, e isso seria o mesmo que afirmar que, em algum momento ainda precoce, o sujeito é tomado por isso “que cabe chamar por seu nome, isto é, os sintomas” (Lacan, [1975] 1998, p. 10). Em outras palavras, “a maneira pela qual lhe foi instilado um modo de falar não pode senão levar a marca do modo pelo qual foi aceito por seus pais” (Lacan, [1975] 1998, p. 10-11). Com isso, Lacan pretende articular que com lalíngua o sujeito dota de valor o significante com o qual estrutura seu sintoma.
Mas Lacan realça também: tudo se dá porque esse circuito simbólico do falante lhe é ofertado ainda precocemente pelo Outro. Lacan está chamando a atenção para o fato de que esse encontro primeiro com o gozo, como alheio, inaugura algo. Portanto, porque há lalíngua, a dimensão simbólica instaura o sintoma como forma de dizer sobre isso que escapa ao conhecimento do sujeito. Lacan está retomando o método da descoberta de Freud, confirmando-o por meio do gozo, já que uma rejeição do saber não impediria de advir um efeito de significação. Daí é que se abre a possibilidade para a decifração do sentido do sintoma, pois o pouco sentido confirma o único compromisso possível na psicanálise - o sujeito com seu desejo.
Em síntese, eis o que Lacan ([1975] 1998, p. 13) lê da letra freudiana: “Freud percebeu que havia coisas das quais ninguém podia dizer senão que o sujeito falante as soubesse sem sabê-las. Eis aí o relevante das coisas”. O sintoma evidencia, portanto, que desse saber o sujeito goza sem saber que sabe, e falará dele querendo dizer outra coisa. Como ocorre na realização das fantasias, o inconsciente de Freud assegura o gozo de um saber - insabido. j BETWEEN LANGUAGE AND JOUIS-