Psicanálise e física quântica: uma breve conjuntura das afinidades
A maioria dos cientistas considera o período entre os anos 1895 e 1905 como o período da grande revolução na física com as descobertas da teoria quântica e da relatividade (Pais, 1986), pondo fim às “concepções inquestionáveis de energia e matéria, espaço e tempo, derivadas da física clássica2” (Bass, 1997, p. 235, tradução nossa). Essa revolução na física aconteceu acompanhada por outra revolução no campo da teoria da mente e do tratamento mental das neuroses com o surgimento da psicanálise, iniciada em 1900 com a publicação da obra A interpretação dos sonhos (Freud, [1900] 2017).
Como não é de surpreender, desde o início, o pai da psicanálise fez uso de analogia com vários aspectos/pontos da física para explicar seu novo modelo de estruturação do psiquismo.3 Tal fato é importante de ser notado, até porque alguns críticos comparam Freud com Max Planck, o pai da teoria quântica (Pais, 1986).4
Para Botella e Botella (1992), a aproximação entre psicanalistas e físicos é possível, uma vez que a teoria do inconsciente freudiana representa uma evolução do pensamento científico da época, tal como a teoria quântica e a relatividade. O modelo do aparelho psíquico de Freud rompe com a necessidade do Eu de acreditar em evidências tangíveis. De certa maneira, a premissa pós-positivista (Hanly, 1995) com a qual Freud trabalha é bastante semelhante à da física quântica. Para alguns estudiosos (Botella; Botella, 1992; Hanly, 1995; Bass, 1997), a realidade do inconsciente é mais parecida com as visões quânticas e relativísticas mais amplas do que os antigos postulados da física clássica, os quais tornavam mais difícil o colóquio entre a psicanálise e a física.
Contudo, como bem aponta Mayer (1996), uma aproximação entre esses dois campos somente faz sentido na medida em que essa paridade nos faz pensar no modo como o conhecimento causal ou preditivo pode ser gerado, ou seja, fora das limitações da racionalidade clássica (newtoniana) em que “a verdade desvencilha-se das amarras do pensamento cartesiano” (Farjani, 2013, p. 9). Todavia, não se trata de uma questão de aplicação direta da física quântica à psicanálise ou vice-versa, pois esse caminho nos conduziria por muitas armadilhas. Essa discussão pode nos levar a debater as fronteiras da psicanálise, como aponta Mezan (2019a) em Fronteiras da psicanálise, e a questionar o próprio estabelecimento da sua identidade epistemológica seja entre a Naturwissenschaften e a Geisteswissenschaften (Iannini, 2008; Mezan, 2019b), seja entre a Kulturwissenschaften (Assoun, [2008] 2012), ou até mesmo retomar a velha discussão entre mente e corpo. Entretanto, esses não são o foco deste artigo e estamos cientes da nossa limitação.
Freud empreendeu analogias com a física logo muito cedo, desde o texto pré-psicanalítico do Projeto para uma psicologia científica (Freud, [1950/1895] 1976) com o uso de termos: Q (Quantidade, em geral ou da ordem de importância no mundo externo), Q’n (quantidade, da ordem de importância intercelular), j (sistema de neurônios permeáveis), ψ (sistema de neurônios impermeáveis), ω (sistema de neurônios perceptíveis), entre outros.
Em As psiconeuroses de defesa, Freud [1894] 1976, p. 61) diz:
Esta hipótese, que aliás, já fundamenta nossa teoria da ab-reação em nossa Comunicação preliminar, pode ser aplicada no mesmo sentido que os físicos aplicam na hipótese de um fluxo de fluido elétrico. Essa ideia é provisoriamente justificada por sua utilidade em coordenar e explicar uma grande variedade de estados psíquicos (grifos do autor).
E anos mais tarde, no artigo Análise terminável e interminável, o autor ainda faz analogia com a física usando expressões como “campo biofísico” (Freud, [1937] 1976, p. 280). Em Esboço de psicanálise, ao se referir ao aparelho psíquico como algo que se estende no espaço, ele afirma: “essa hipótese nos coloca em posição de estabelecer a psicologia em bases semelhantes às de qualquer outra ciência, tal como, por exemplo, a Física” (Freud, [1940/1938] 1976, p. 225).
Freud realiza essas comparações porque sabia das questões mais importantes da ciência, sobretudo da física de sua época. Na sua famosa carta dirigida a Einstein sobre o tema da guerra ele não hesita em indagar:
Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo [...] pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno (Freud, [1933/1932] 1976, p. 245).
As analogias com a física utilizadas por Freud perpassam sua obra de maneira considerável. Todavia, esse não é o foco deste artigo. Aqui nos interessa investigar os quanta psíquicos de Marie Bonaparte na breve conjuntura de afinidades entre física e psicanálise. Seu interesse pela ciência da sua época foi enorme, de acordo com Amouroux (2012). Bonaparte tinha uma atração especial pelas ciências da natureza [Naturwissenschaften]. Ela chegou a patrocinar inúmeros laboratórios e diversas pesquisas no Instituto Pasteur, em especial no combate à tuberculose, e no Instituto Radium, território dos pioneiros na luta contra o câncer por meio da radioterapia.
Lebovici (1983) nos lembra que Bonaparte “sempre demonstrou um interesse fascinante pelas várias questões científicas”5 (p. 1085, tradução nossa). As referências à física na obra bonapartista são bem pontuais e, nesse sentido, ela “tinha uma concepção modernista da oposição entre as noções de instinto e pulsão”6 (Lebovici, 1983, p. 1090, tradução nossa).
Ao ler seu trabalho L’introduction à la théorie des instincts (Bonaparte, 1951),7 percebemos que ela propõe um modo de funcionamento mental independente das leis biológicas e da cultura. É como se cada renúncia pulsional se tornasse um motor dinâmico, num tipo de determinismo quântico em todas as manifestações mentais. No seu texto L’inconscient et le temps (Bonaparte, 1939) localizamos a referência mais direta da autora à física quântica, o que veremos com mais detalhes na seção seguinte.
Neurose obsessiva, tempo e inconsciente: o que são os quanta psíquicos?
As objeções que Bonaparte (1939) faz à tese freudiana da atemporalidade do inconsciente (Freud, [1915] 1976) podem ser resumidas em três grandes refutações:8 a primeira refere-se à preservação do sentido de tempo mesmo quando dormimos, tanto é que alguns dormentes podem
[...] acordar sozinhos depois de determinado período de sono. O inconsciente sente o tempo fluindo, por isso eles acordam numa determinada hora exata9 (Bonaparte, 1939, p. 75, tradução nossa).
A segunda objeção é fruto de um intenso diálogo entre Bonaparte e Freud a respeito dos postulados kantianos sobre a exposição metafísica dos conceitos de espaço e tempo,10 cujas representações originárias não são conceitos, mas intuições a priori e entre ambos se estabelecem relações coexistentes (Kant, [1787] 1974).
O sonho, essa estrada real, de acordo com Freud, que leva ao inconsciente, não sabe como fazer sem o espaço e o tempo! O espaço é muito evidente, pois o sonho é geralmente visual e a imagem projeta-se no espaço. [...] Mas qualquer distorção que o tempo sofra em um sonho ele é sempre tempo. Portanto, essas formas inelutáveis da nossa percepção, tempo e espaço, estão salvas [no inconsciente]11 (Bonaparte, 1939, p. 75-76, tradução nossa).
Essa segunda refutação não permanece incólume a Freud, que, ao ler o ensaio de Bonaparte (1939), lhe comunica:
Então, o espaço do mundo exterior seria projetado a partir do nosso espaço interno, assim também ocorre com o tempo12 (Freud citado por Bonaparte, 1939, p. 102, tradução nossa).
E em outro momento, na carta a Bonaparte datada de 27 de maio de 1937, mesma época das revisões desse manuscrito, o pai da psicanálise esclarece:
Assim, pode ser que a ideia do tempo esteja ligada ao trabalho do sistema consciente, pré-consciente. Kant, então, teria razão se substituíssemos seu antigo a priori por nossa mais moderna introspecção do aparelho psíquico. O mesmo deve se dar com espaço, causalidade, tempo, etc. (Freud citado por jones, [1961] 1989, p. 451).
Nesse sentido, na ocasião da terceira e última objeção à permanência dos processos do sistema inconsciente sem a referência ao tempo, a autora recorre à noção de quantum psíquico, numa clara alusão às descobertas da física quântica (PlancK, 1901; einstein, 1919).
E tomando como exemplo clínico a neurose obsessiva, a autora esclarece:
[…] quanta psíquicos poderiam se formar no inconsciente e, tendo atingido seu limite efetivo, irrompe no pré-consciente, onde eles perturbariam mais ou menos o sentido do tempo. [...] o eu do obsessivo tem uma rigidez muito específica. A atemporalidade que emana do inconsciente traz ao seu eu, que possui um agudo sentimento de posse do tempo, um conflito enorme. A obsessão com o tempo no obsessivo geralmente não cede13 (Bonaparte, 1939, p. 77-78, tradução nossa).
Parece-nos que esse fenômeno é diferente daquilo que acontece na esquizofrenia, ou seja, um tipo de “temposificação” (Assoun, [1980] 1996, p. 209), em outras palavras, a coisificação do tempo. Isso é resultado da relação específica do esquizofrênico com a linguagem conforme ensina Lacan, ([1955-1956] 1988) em O seminário 3: As psicoses. No caso da neurose obsessiva, a perturbação com o tempo passa menos pela linguagem e mais no campo da experiência através de suas obsessões e compulsões.
Na física, um quantum14 equivale à menor quantidade de qualquer grandeza física envolvida numa interação. A ideia de que uma grandeza pode ser quantizada vem da hipótese da quantização (procedimento matemático que atribui um valor específico a um determinado sistema físico), ou seja, isso implica que a magnitude dessas grandezas pode apenas assumir valores discretos, que são múltiplos inteiros da unidade de um quantum (Wiener, 1966).15 A ideia de quantização de energia e suas consequências na interação de energia e matéria é parte da estruturação fundamental para entender e descrever a natureza na física quântica, fenômeno conhecido como eletrodinâmica quântica (Dirac, 1927).
Quanto a este trabalho, consideramos não apropriado interpretar o sistema psíquico como um sistema físico. Mas podemos passar por alguns pontos da teoria quântica que podem nos ser úteis. Vejamos: a quantizacão ocorre nos osciladores eletrônicos atômicos que compõem o sistema, e a energia irradiada se propaga na forma de ondas eletromagnéticas (Jammer, 1966; 1974). Assim, o elétron não é uma partícula nem uma onda, mas pode se apresentar ora de uma forma, ora de outra, conforme as exigências do contexto. E as partículas podem transferir-lhes parte de sua energia e, assim, envolver perda ou emissão de energia.16
No que concerne à metapsicologia, podemos elucidar a suposição bonaparteana em termos metapsicológicos tomando o modelo do aparelho psíquico da Carta 52 (Freud, [1950/1892-1899] 1976). Nessa matriz, podemos considerar que os sistemas consciente, pré-consciente e inconsciente funcionam como lentes de um telescópio (Assoun, [1980] 1996), cuja performance entre eles pode pender no domínio de um sobre o outro. E a organização entre eles é concêntrica em torno do núcleo traumático, como as camadas de uma cebola.17 Dessa maneira, nesse modelo, a vetorização das quantidades psíquicas das marcas do tempo,18 entra no aparelho psíquico pela percepção. Então, a atemporalidade do inconsciente entrará em conflito com a temporalidade da consciência e do pré-consciente, uma vez que o obsessivo almeja o completo controle do tempo.
Para Bonaparte (1939), os quanta psíquicos se formariam no inconsciente. Mas o que os faz irromper no pré-consciente é o resultado do conflito gerado pelo impossível de conceber o tempo desse sistema e o pleno sentido de tempo nos sistemas consciente e pré-consciente. E essa quantização psíquica chega à consciência dando ao obsessivo a ilusão de posse do tempo. No entanto, isso só é possível porque também nesse modelo cogita-se que no inconsciente só existem conteúdos catexizados com maior ou menor carga de força, e a passagem de um conteúdo inconsciente para o pré-consciente e a consciência é mais fácil do que o inverso (Freud, [1900] 2017). Talvez não seja ousadia pensar que, se para a teoria da relatividade o tempo se constitui numa quarta dimensão do espaço,15 então é provável, tal como sugere Bonaparte (1939), que os eventos espaciais evidentes no sonho se comportem da mesma forma que os eventos temporais.
Conclusão
A teoria quântica é responsável por praticamente todo o progresso tecnológico de nossa era, dos transistores aos chips, dos raios laser aos reatores nucleares, dos supercondutores à engenharia genética. Desse modo, se para a construção da física relativística o espaço e o tempo são conceitos relativos, então, essa tentativa de Bonaparte de formular a noção de quantum psíquico se depara inevitavelmente com os paradoxos que constituem a própria física quântica. E reconhecemos que estamos longe de solucionar e absorver a totalidade das implicações metapsicológicas de sua descoberta. As convicções do fisicalismo biopsíquico bonaparteano não permanecem presos a uma concepção relativamente estreita do enraizamento do inconsciente na biologia.