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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.44 no.84 Belo Horizonte jul./dez. 2022  Epub 22-Nov-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v44n84.11 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

A angústia do analista e seu manejo na relação transferencial1

THE ANXIETY OF THE ANALYST AND ITS MANAGEMENT IN THE TRANSFERENCE RELATIONSHIP

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro1 

Psicóloga pela UFMG. Psicanalista pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Professora no Programa de Formação Psicanalítica do CPMG desde 1994. Editora da Revista Reverso (CPMG) desde 2015. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Sócia do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP). Membro da Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas (IFPS). Autora de artigos publicados em livro e revistas de psicanálise. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) - gestão 2002-2004. Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) - gestão 2005-2007. Coordenadora da Clínica da Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) - gestão 1999-2001. Coordenadora da Comissão de Formação Psicanalítica do CPMG - gestões 2001-2003 e 2003-2005

1Círculo Psicanalítico de Minas Gerais


Resumo

A angústia é um afeto crucial na direção da cura. Freud a apresentou em suas várias faces desde 1892. Iniciando com os estudos sobre a neurose de angústia, deparou-se com a angústia tóxica, a realística, a neurótica e, ao final, a angústia moral, quando, então as classificou em dois grupos: neuroses atuais e neuroses de transferência. De início, tomado como um afeto consequente ao recalque até por volta de 1916/1917, o conceito de angústia foi se modificando. A partir de 1925/1926, pelo contrário, foi descrito como um afeto anterior ao processo de recalcamento. Lacan, partindo de Freud, a enunciou como o afeto que não engana! Ampliou seu conceito com as expressões: ela não é sem objeto, está relacionada ao desejo do Outro, à questão do gozo, surge quando a falta falta, é uma manifestação do real, etc. No manejo da transferência, questionou: o que ela tem a ver com o desejo de analista? Será que a angústia do analista é a mesma do paciente?

Palavras-chave: Conceito de angústia; Objeto a; Angústia do analista; Angústia do analisando; Manejo transferencial

Abstract

Anguish is a crucial affect in the direction of healing. Freud presented it in its various faces since 1892. Beginning with the studies on anxiety neurosis, he came across toxic, realistic, neurotic anguish and, at the end, moral anguish, when, then, he classified them into two groups: current neuroses and transference neuroses. At first, taken as a consequent affect of repression until around 1916/1917, the concept of anguish changed. From 1925/1926, on the contrary, it was described as an affect prior to the process of repression. Lacan, starting from Freud, enunciated it as the affection that does not deceive! He expanded his concept with the expressions: it is not without an object, it is related to the Other’s desire, to the question of jouissance, it arises when the lack is lacking, it is a manifestation of the real, etc. In handling transference, he asked: what does it have to do with the analyst’s desire? Is the analyst’s anguish the same as the patient’s?

Keywords: Anguish; Object a; Anguish of the analyst’s anguish; Anguish of the patient; Transferential management

Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos! Goethe, 1810-1812

Esse é um dos escritos de Goethe, em Weimar, Alemanha, 1810-1812, cidade onde viveu, trabalhou e morreu, embora tivesse nascido em Frankfurt. Foi citado por Freud ([1929] 1974, p. 95) em O mal-estar na civilização, para exemplificar a situação do homem sobre a Terra, cuja possibilidade de gozo de uma felicidade perene é restringida pela sua própria constituição.

Entre as três fontes de sofrimento humano, o poder superior da natureza, a fragilidade de nosso corpo, é na terceira, Freud afirma, que o sofrimento talvez nos seja mais penoso: o relacionamento do homem com os homens. Freud ([1929] 1974, p. 105) situa aí uma parcela de natureza inconquistável de nossa própria constituição psíquica, adiantando-se à dimensão do lugar que ocupo no desejo do Outro, desenvolvida por Lacan anos depois.

Quem sou na cena do Outro? A angústia se instala diante do sinal de perigo emitido pelo eu. No entanto, não é para o eu que ele é enviado, mas para o sujeito na iminência de se perder ao aceder à determinação do desejo do Outro.

Não temos como fugir: a angústia pertence ao homem!

Ao recebermos uma demanda, um convite, surge a pergunta: Che vuoi? [Que queres?] ... Nos angustiamos! De que se compõe esse afeto que surge tão prontamente e com sensações corporais? Na apresentação do livro A escrita do analista, Gilda Vaz (2003), uma de suas organizadoras, diz que escrever para o analista é como o desenrolar de uma análise. A “causa da produção tem como motor, um não sabido, um ‘E eu sei?’ Pergunte ao cavalo”, lembrando o princípio de Itzig, o cavaleiro de domingo, relatado por Freud a Fliess (Carta de 07 jul. 1898). E, assim, a autora nos diz, que o analista escreve não a partir de algo sabido, mas de um não sabido que, pelo ato de escrever, engendra um saber (Rodrigues, 2003, p. 17).

E assim vamos proceder!

Escrever sobre a angústia do analista e seu manejo na transferência é desafiador, pois nos lança imediatamente à revisão do processo realizado na análise pessoal, no que diz respeito à nossa própria historização e o despertar do desejo de analista nesse percurso de construção do tornar-se analista, quanto o lidar com o real da angústia do paciente.

De que se assegura o processo analítico senão da fala? Assim se dá uma análise: Fale, escreva aqui sua vida... e o analisando, não sem relutar, põe-se a desfiar queixas, lembranças, fatos, fantasias, afetos, dúvidas, impasses, certezas, sonhos. Sem aviso, a angústia surge e inunda o sujeito! E o que acontece ao analista nesse momento? Já recebeu do paciente a atribuição de ser o sujeito suposto saber sobre seu drama. Há angústia no psicanalista?

A angústia é um afeto crucial na direção da cura. Por isso mesmo, Freud, Lacan e outros analistas, se dedicaram a estudá-la assim como nós, na tentativa de saber principalmente como manejá-la em análise. Tal tema - angústia do analista e seu manejo na relação transferencial - requer uma revisão do conceito de angústia.

Freud bem cedo interessou-se pela angústia e a apresentou em suas várias faces desde 1892. Iniciando com os estudos sobre a neurose de angústia, deparou-se com a angústia tóxica, a angústia realística, a angústia neurótica e, ao final, a angústia moral, quando então, em 1932, classificou-as em dois grupos: neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia e hipocondria, incluída em 1914 com o artigo Sobre o narcisismo: uma introdução) e neuroses de transferência ou psiconeuroses (histeria de conversão, histeria de angústia, fobias, e neurose obsessiva).

De início, tomado como um afeto consequente ao recalque até por volta de 1916/1917, o conceito de angústia foi se modificando. A partir de 1925, foi descrito como um afeto que antecede o processo de recalcamento.

Otto Rank, também interessado nesse tema, em 1893, expressa a Freud suas primeiras ideias e, em 1923, publica o livro O trauma do nascimento, acreditando ser aí a primeira vivência de angústia do indivíduo, a angústia tóxica, em que alterações na respiração e nos batimentos cardíacos seriam os mesmos sintomas descritos nos ataques histéricos. Essa teoria foi considerada e avaliada por Freud, mas não encampada em sua teoria da angústia. Retomando essa questão, anos depois, Lacan invalida a ocorrência dessa angústia do nascimento no âmbito psíquico, porque a angústia é um afeto do eu, e o eu se constitui através das identificações. Como tal, a angústia não existiria no psiquismo, no ato do nascimento.

Vejamos suas palavras:

O último pensamento de Freud indica-nos que a angústia é um sinal no eu [moi]. [...] Se esse sinal está no eu, deve encontrar-se em algum ponto do lugar do eu ideal. [...] O eu ideal é a função mediante a qual o eu se constitui através da série de identificações com alguns objetos [...] (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 131).

Surpreende-se ao constatar que esses analistas ‘experientes’ foram levados a pensar a origem da angústia no nível pré-especular e pré-autoerótico, sem considerar a constituição de um eu. Retoma Freud dizendo-a como um fenômeno de borda, um sinal que se produz no limite do eu [moi], quando ameaçado por alguma coisa que não deveria aparecer (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 133).

No artigo Neurose de angústia e transtorno de pânico (Ribeiro, 2009), encontramos uma compilação do desenvolvimento desse conceito em Freud:

A primeira menção de Freud ao termo neurose de angústia foi no “Rascunho A”, sem data, enviado a Fliess, provavelmente em 1892. Retorna a ele no “Rascunho B”, de 1893, acrescentando que a Angstneurose [neurose de angústia] tem duas formas de se apresentar: em ataques súbitos de angústia [Angstanfall] ou em manifestações crônicas. Em ambos os casos, predomina uma angústia sem que se reconheça claramente seu objeto. Os “Rascunhos E e F”, escritos no ano seguinte, 1894, também são dedicados a esse tema, tomando a angústia como a transformação da libido não descarregada (Ribeiro, 2009, p. 47).

Freud reservou a denominação neurose de angústia para o quadro clínico do aparecimento súbito da angústia nos pacientes. Durante muitos anos, essa terminologia foi adotada entre os transtornos neuróticos nas classificações psiquiátricas, até por volta de 1979/1980. Após essa data, na psiquiatria, passou a ser denominada síndrome ou transtorno de pânico (Ribeiro, 2009, p. 47).

Podemos acompanhar na obra freudiana a classificação da angústia em relação a seu objeto. Na Conferência XXV: A ansiedade [angústia], Freud ([1916/1917] 1974), descreve e distingue a angústia realística, em que o perigo está no mundo externo e a angústia neurótica, em que o perigo está no mundo interno, ainda considerando o papel de causa atribuído ao recalque.

Na Conferência XXXII: Ansiedade e vida instintual, Freud ([1932] 1974) acrescenta às duas anteriores a angústia moral, desenvolvida pela ação do supereu sobre o desejo pulsional. Ainda nesse artigo, tenta resgatar o conceito de angústia tóxica, do trauma do nascimento, como primeira vivência de angústia, mas não encontra sustentação psíquica.

Freud finaliza essa Conferência XXXII afirmando que “não mais sustentaremos ser a libido que é transformada em angústia”. Primeiro vem a angústia... depois o recalque! (Ribeiro, 2009, p. 48).

No intervalo entre essas conferências, escreveu o artigo Inibições, sintomas e ansiedade (1925/1926), em que trata do trauma e da teoria da angústia, mas não da neurose de angústia. Deixa explícito que “o ego é a sede real da angústia” (Freud, [1925/1926] 1976, p. 114) e que é legítimo abandonar o ponto de vista anterior de que a energia pulsional represada seria transformada em angústia e passa a considerar o encontro do sujeito com a angústia de castração.

Lacan ([1962-1963 2005) dedicou o Seminário 10 ao estudo da angústia, mas não esgota o tema, que é retomado em vários momentos de sua obra.

“Angústia é o afeto que não engana!” Frase enigmática, mas de compreensão quase imediata, pois todos nós experimentamos na própria pele o que é a angústia. Do estímulo psíquico ao corpo, que imediatamente entra em cena, lemos a angústia! É a atualização da experiência de corpo fragmentado, sem bordas de contenção, sem o acolhimento da palavra.

Lacan ([1962-1963] 2005, p. 18) nos lembra que falamos de angústia sem rede de proteção, pois “não há assunto em que a rede do discurso freudiano mais se aproxime de nos dar uma falsa segurança” do que esse. A angústia se instala no vazio da malha.

Do artigo Inibições, sintomas e ansiedade [angústia], de Freud ([1925/1926] 1976), Lacan toma o termo “inibição” traduzindo-o como “impedimento”, mas ao sujeito, que é pego na armadilha narcísica, numa rachadura em sua imagem especular, e não apenas numa dificuldade de funções do eu ou de locomoção. Considera a possibilidade de o indivíduo se endereçar para um estado de embaraço, perdido de si mesmo, necessitando de uma barra onde se escorar, o falo ou seguir pela emoção, progredindo até a efusão, uma perturbação, um desnorteamento. Nesse trajeto poderá construir o sintoma, jogar-se ao acting out [entrar em cena] à passagem ao ato [sair de cena] ou estabelecer a angústia.

No Seminário 10: A angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) questiona se podemos incluir na mesma categoria experiências tão diversificadas como a angústia existencial, a paranormal ou francamente psicopatológica, a dos nossos neuróticos, do perverso e até mesmo do psicótico. Parte para sua definição:

[...] a angústia é um afeto e o liga à sua máxima: o desejo do homem é o desejo do Outro, e nesta relação, introduz a questão do objeto a, onde a angústia é a manifestação específica do desejo do Outro (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 169).

Colocando meu desejo como o desejo do Outro, ao atendê-lo, busco o seu reconhecimento, tomando-me como objeto - objeto a. Disso me ressinto e não me suporto nesse lugar (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 33), esse lugar de sobra, de dejeto. Imagem de mim, que não tendo sido simbolizada, não assimilada, restos do estádio do espelho, surgem tamponando a falta, impedindo o deslizamento do desejo.

Acompanhar o conceito de angústia é também voltar ao texto O estranho/ infamiliar [Unheimlich], de Freud (1919), como aquilo que surge no lugar da castração imaginária, onde a falta falta e surge a angústia. Partes de mim, não simbolizadas da imagem especular, tornam-se a imagem estranha e invasiva do duplo (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 112).

Partindo da angústia como uma reação-sinal diante de um perigo interno para o eu, a ameaça de perda do objeto, como descrita por Freud, Lacan percorre outra direção, ao afirmar que a angústia se institui na iminência de o objeto não faltar. A possibilidade da ausência assegura a presença e sua transformação em desejo. Esse movimento expõe “a relação do sujeito com o objeto a, em toda a sua generalidade” (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 98). Ao objeto a atribuímos duas funções: causa de desejo (objeto perdido) e morte do desejo (objeto de gozo).

As palavras de Marco Antonio Coutinho Jorge são exatas:

A angústia, sinal decorrente da ameaça da perda do objeto, se refere à face causa do desejo do objeto a. Já a angústia automática decorre da invasão de gozo precipitada pela face mais-gozar do objeto a. A primeira tem relação com a ausência, a segunda, com a presença do objeto (Jorge, 2017, p. 202).

A essa altura, temos a angústia, o objeto a e, quanto à falta, a questão das distâncias: nem muito perto, nem muito longe! Esse afeto se liga também a conceitos como a demanda do Outro, o gozo do Outro e o desejo do Outro, no caso da análise, o desejo de analista. Uma de suas dimensões é a falta de certos referenciais, quando “esse resto, esse resíduo não imaginado do corpo vem manifestar-se no lugar previsto para a falta e, por não ser especular, torna-se impossível de situar” (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 71).

Ao dito - a angústia é sem objeto - Lacan contrapõe: “ela não é sem objeto”, isso não significa que saibamos de que objeto se trata (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 101). O objeto a está no centro desse discurso, onde “a angústia é sua única tradução subjetiva” (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 113).

De início no seminário A angústia, Lacan ([1962-1963] 2005, p. 13) observa que mesmo aqueles que são formados na técnica analítica e, com isso, aprendem a regular e tamponar em si mesmos a angústia, a ponto de ela guiá-los e que se apresentam com uma ótima predisposição para ser analista não é impossível que, ao iniciar sua prática, sintam, desde as primeiras relações com o doente no divã, uma certa angústia.

Assim também é verdade que sentir o que o sujeito pode suportar de angústia coloca o analista à prova a todo instante (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 13). Deixa em aberto a pergunta: Essa angústia [a do analista] será que é a mesma do paciente?

É muito escassa a bibliografia sobre o tema ‘a angústia do analista e seu manejo transferencial’. Podemos tentar construir um saber sobre isso a partir de referências conceituais do tecido psicanalítico, formando com eles uma colcha de retalhos com os mesmos fios da teoria psicanalítica, que possibilitaria envolver o sujeito-analista em seu estado de desamparo.

O que vindo do paciente capturou o analista? O objeto a, aquele resto não especular, sem tradução lhe tamponou a falta? As posições em análise se distribuem entre objeto a e sujeito. A angústia do eu se expressa no sujeito. Na experiência analítica, no setting analítico, há um sujeito - o analisando.

Entre os Artigos sobre técnica, ressalto: (a) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), onde Freud ([1912] 1976, p. 154) diz que “o médico deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente”; (b) Observações sobre o amor transferencial, em que Freud ([1914-1915] 1976, p. 214) recomenda ao psicanalista não abandonar a neutralidade que foi adquirida por manter controlada a contratransferência.

Isso difere de uma corrente de pensamento de alguns psicanalistas renomados que trabalham com o conceito de contratransferência (de onde se originou o conceito de desejo de analista em Lacan), que afirma existirem, em funcionamento numa análise, dois inconscientes que se comunicam: o do paciente e o do analista, em que a leitura da contratransferência indicaria um saber sobre o analisando, o que autorizaria a interpretação.

Retomando nosso eixo de pensamento, se o analista se angustia, de que lugar ele responde senão o de sujeito? Poderia a fala do paciente, inesperadamente, lançá-lo a algo primitivo, da ordem de traços, sensações, uma vivência mal delineada, uma recorrência de um estado de suspensão entre um ponto conhecido e o seguinte, ainda desconhecido? Algo vindo da fala daquele sujeito no divã o teria alçado à condição humana de sujeito, retirando-o da sua função de analista no lugar de objeto, causa de desejo, condição de propulsão de uma análise? Em que momento lhe escapou o manejo da transferência?

No artigo A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan ([1958] 1998, p. 594) alerta ao analista que “ele é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (p. 594) e “faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser” (p. 596).

Ainda contamos com a recomendação de Freud ([1912] 1976) de que o analista deve abster-se de colocar suas próprias inquietações, seus conflitos ou suas angústias a seu analisando. Que fazer confissões ao paciente, no intuito de superar as resistências na análise, na verdade, conduz à sua intensificação, dificulta a solução da transferência e incorre no fracasso da análise. Assevera: “o médico [psicanalista] deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado” (FReud, [1912] 1976, p. 157).

Assim como um chiste ou um ato falho, formações do inconsciente que podem acontecer inesperadamente ao analista durante uma sessão analítica, também pode lhe ocorrer ser tomado pela angústia. Esse afeto, por definição, é desencadeado pela presentificação do real no eu, por algo que apareceu no lugar da castração imaginária (-j) (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 54) pela presentificação do desejo do Outro (o que ocupou esse lugar nesse momento para o analista?). À pergunta de Lacan feita acima responderemos que, quanto ao processo de instalação, a angústia do analista seria a mesma do paciente, porém diferente quanto a seu objeto, quanto a seu conteúdo.

Sob transferência, duas subjetividades eclodem na cena analítica? Será responsabilidade do analista reconhecer essa distinção entre seus objetos e os do seu analisando? Torna-se necessário um manejo adequado da transferência e o reconhecimento de seus efeitos.

Exemplificando na clínica, um paciente em análise, num certo momento em que relatava sua relação com o objeto amoroso, foi acometido por um processo de paralisia, iniciada nos membros inferiores, que ascendia ao tórax. Angustiado, sem fôlego, ‘suplica’ à analista que o encaminhe urgentemente ao hospital, sob o risco de uma parada respiratória. Um estado de angústia se instalou nos dois personagens pelo mesmo processo: algo não simbolizado, que não deveria aparecer, se introduziu no eu, bloqueando-o. Numa fração de segundo, a analista se reposiciona, distingue os objetos fantasmagóricos de cada um e faz uma intervenção que atualiza uma vivência da história do analisando, de um estado de ‘suspensão’, de paralisia, diante da figura (imaginária) onipotente e inacessível de um ‘pai todo-poderoso’. Os sintomas da angústia foram, aos poucos, cedendo lugar à elaboração, ou melhor, à perlaboração. Nesse episódio a analista apostou na eficácia da psicanálise sobre o aparelho psíquico, em detrimento da sua própria angústia diante de uma possível ameaça à vida.

O profissional, mesmo após longa vivência no processo de tornar-se psicanalista e de operar como psicanalista poderá ser invadido por uma imagem não assimilável de si mesmo, um resto não significantizável, não representado. Sem dúvida, é um momento delicado para a condução e a direção da análise, pois como discutido há pouco, a falta, que movimenta o desejo, falta. Nesse momento, no analista, o sujeito e seu desejo estancam. A meu ver, é de sua análise pessoal que deverá vir o socorro à análise atual, que se desenrola sob suas mãos. j

Referências

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Recebido: 03 de Outubro de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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Conferência ministrada na XL Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais: A anatomia e suas vicissitudes. Belo Horizonte (MG), 23, 23 e 24 set. 2022.

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