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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.85 Belo Horizonte jan./jun. 2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n85.03 

PSICANÁLISE E PÓS-MODERNIDADE

Da modernidade à pós-modernidade: do sintoma ao sinthoma?

FROM MODERNITY TO POSTMODERNITY: FROM SYMPTOM TO SINTHOME?

Anderson de Souza Sant’Anna1 

Professor da Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo E-mail:

1Psicanalista Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.


Resumo

Este artigo tem como propósito central promover uma reflexão acerca dos desafios da clínica psicanalítica na transição da modernidade para a pós-modernidade, tendo por base revisita à metapsicologia freudiana, a partir de contribuições de Lacan, evidenciando interações modernas e pós-modernas entre conceitos fundamentais ao saber inventado por Freud: da pulsão ao gozo, do sintoma ao sinthoma, do sujeito ao falasser.

Palavras-chave: Sintoma; Sinthoma; Pulsão; Gozo; Clínica psicanalítica

Abstract

This article aims to promote a reflection about the challenges of psychoanalytic clinics in the transition from modernity to post-modernity, based on a revisit to Freudian metapsychology, from Lacan’s contributions, highlighting modern and post-modern interactions between fundamental concepts to the knowledge invented by Freud: from the pulsion to jouissance, from the symptom to the sinthome, from the subject to the falasser.

Keywords: Symptom; Sinthome; Pulsion; Jouissance; Psychoanalytic clinic

Embora oriundas de mesma base epistemológica, não se pode ignorar os avanços e desdobramentos metapsicológicos aportados da releitura lacaniana dos textos freudianos, em particular no que tange às suas contribuições a partir de noções como objeto a, sinthoma, lalíngua e falasser.

Diferentemente da concepção de sintoma em Freud, a noção de sinthoma aportada pelo último Lacan aponta para algo que transcende à significação, não se esgotando na produção de sentido no lugar do Outro. Há nela uma vertente que se liga ao significante na forma de letra. Em outros temos, uma coordenação do gozo do corpo com o significante.

Indicada no Seminário 17: O avesso da psicanálise, com a proposta de que a satisfação pulsional se estende aos objetos da cultura e refinada no Seminário 20: Mais ainda, quando Lacan propõe que o significante é “causa de gozo”, a língua passa a ser concebida como estrutura secundária à lalíngua, orientada ao gozo, contrariamente à língua que visa à comunicação, à interpretação (Miller, 2011; lacan, 2008; 1992).

Recorrendo à produção literária de James Joyce, Lacan ([1969-1970] 1992; 1986) propõe a amarração dos registros do Real-Simbólico-Imaginário para além da lei do Nome-do-Pai, tendo o sinthoma como um quarto nó, que possibilita o enodamento de tais registros, emergindo como suplência a esse além do Nome-do-Pai. Uma espécie de suplência às características que a ausência do Nome-do-Pai aporta à psicose, na medida em que é sua foraclusão da estrutura que define a aparição de anomalias de significação e de sentido na fala psicótica.

O sinthoma como modo de amarração subjetiva é, desse modo, o que a psicanálise teria a oferecer, buscando para cada sujeito, uma forma singular de ordenação, constituindo-se como elemento articulador, que permite dar corpo ao sujeito “desbussolado” da pós-modernidade ao conectá-lo com seu próprio gozo (Forbes, 2010).

Conforme destaca Miller (2011), é o sinthoma que se estabelece de comum entre sintoma e fantasia, o modo singular de um sujeito gozar, modo de gozar em seu funcionamento positivo. Como decorrência lógica, apaga-se a distinção entre neurose-psicose, evidenciando uma nova tipologia dos modos de gozo. No caso da neurose, Miller (2011, p. 71) aponta para “um condensador de gozo estritamente debruado pela castração”, reconhecendo, no entanto, haver no sinthoma o que Freud denomina de objetos pré-genitais. Para dar conta desse gozo, Lacan ([1972-1973] 2008) acrescenta ao símbolo do falo a representação do objeto a. Igualmente, Lacan maneja o símbolo do falo (j) sob a forma (-j) marcado por um menos, como um símbolo operatório da castração, de raiz imaginária e retirado do corpo.

Já o phi (Φ), originalmente nomeado por Lacan de “falo simbólico”, é posteriormente renomeado por “falo simbólico impossível de negativizar”, por resistir à castração e em oposição ao “significante do gozo”.

Nessa operação, segundo Miller (2011, p. 71), Lacan salienta, no entanto,

[...] reservar o significante da libido, com o qual aparece um termo estritamente positivo - que não pode, como o falo imaginário, ser negativizado -, isto é, o único termo de toda a sua arquitetura que escapa à castração. Com efeito, no que concerne aos objetos a só entram em função relativamente à castração. [...] Diria que aqui já está presente, pelo menos sob a forma de esboço, o gozo no sentido ampliado, ou seja, o gozo positivo. Se a aparição do sinthoma se dá em algum lugar, é justo aqui, quando Lacan tropeça num termo que não funcionará em conformidade com o regime da castração, ou seja, o regime das faltas, dos substitutos das faltas e das operações.

Paulatinamente, resultando no que Miller (2011, p. 159) denomina de G:

Fonte: Miller, 2011, p. 159.

Figura 1 

No Seminário 20: Mais, ainda, Lacan ([1972-1973] 2008) finalmente o grafa como J(G). Sob tal grafia forjada em seu último ensino, para Lacan “o gozo é o que satisfaz um corpo”: “O que fazemos falar não é um sujeito, não é o puro sujeito da fala, mas um corpo que Lacan chamava de corpo falante” (Miller, 2011, p. 159): o falasser. Assim sendo, “não conceitualizamos mais o paciente como sujeito, e sim como falasser. [...] O falasser como um sujeito que fala e é falado, e isso com relação a um corpo, ao que Lacan se absteve de dar uma letra”:

Fonte: Miller, 2011, p. 159.

Figura 2 Sujeito que fala e é falado 

Sob tal perspectiva, ao se passar à instância da singularidade, poder-se-ia dizer - como, de fato, disse Lacan - que “todo mundo é louco”. Em outros termos, sob o conceito de sinthoma seriam eliminadas quaisquer fronteiras entre sintoma e fantasia, neurose e psicose (Miller, 2012a; 2011).

Como corolário imediato haver-se-ia que se descolar da perspectiva “clínica”: Afinal, de que classes clínicas se valeria a psicanálise? Para Miller (2011, p. 77), a tripartição neurose, psicose e perversão apresenta-se útil, “mas nos aparta, arrocha o raciocínio”, por isso é “preciso um esforço muito especial para conseguirmos dela nos descolar”. De fato, sua utilidade encontra-se marcada no próprio ensino clássico de Lacan, em que a ideia de classes clínicas se apresenta sob a perspectiva de estruturas, aprimoradas na noção de discursos, em que se articulam S, a, S1 e S2; os dois últimos comumente relacionados como amboceptor (◊):

Fonte: Miller, 2011, p. 77.

Figura 3 Relação S1 <> S2 

A essa relação soma-se o símbolo a, que, assim como S, designa a hipótese subjetiva da articulação:

Fonte: Miller, 2011, p. 77.

Figura 4 Objeto a 

Assujeitado à estrutura, pode-se depreender que o sujeito que fala é também um sujeito falado, um ser falado falante, um falasser: “Não é o sujeito, é o sujeito e a articulação, mais o produto da articulação” (Miller, 2011, p. 81):

Figura 5 Falasser 

Em tal articulação, S1 ◊ S2, não é necessariamente do sujeito. Ao contrário, é do Outro. Logo, retomando o caso de James Joyce, - bem como o caso Schreber -, pode-se inferir uma estrutura clínica, um diagnóstico e a partir daí, construir uma articulação, elaborar uma decifração do inconsciente, sem análise. Em um caso e no outro, sem uma decifração do inconsciente, haja vista seremos protagonistas de ambos os casos dois “desabonados do inconsciente”. O sinthoma “é, portanto, um conceito que se pode colocar onde não há o inconsciente. É, conforme salienta (Miller, 2011, p. 83), o “negativo do inconsciente”, “que em sua singularidade, designa a substância gozosa” (Miller, 2011, p. 86).

Forjado a partir de um “desabonado do inconsciente”, Miller (2011, p. 85) defende ser o sinthoma um conceito sem valor quando o sujeito se encontra articulado em uma estrutura. Nesse caso, diferentemente de Joyce ou Schreber, não se necessitaria “encarnar o singular onde o comum o apaga”. Há a singularidade do sinthoma em cada um, mas ela está recoberta. A “clínica” do sinthoma é, portanto, uma “clínica” que não distingue sintoma e fantasia, nem avanço ou resistência: “O que prevalece é um girar em círculos” que “nos obriga a desaprender a clínica do desejo”. Nos termos de Miller (2011, p. 120):

Ela é toda animada pela dinâmica do mais-além, que é, evidentemente, dialética e conduz a distinguir a necessidade (apreendida em uma fisiologia elementar), a demanda (onde o significante - a palavra, a simbolização - se sobrepõe à necessidade e, mais além ainda, o desejo (resultante da subtração da necessidade à demanda, pelo menos em uma das versões dadas por Lacan sobre isso). Como apesar de tudo, um elemento falta, Lacan acrescenta, como quarto termo e sem achar articulação com os três primeiros, a pulsão: necessidade, demanda, desejo e pulsão. Desta ele faz em seu ensino clássico a resposta inconsciente à demanda, faz da pulsão uma cadeia significante, mas articulada ao corpo.

No final de seu ensino, a definição lacaniana de inconsciente passa, portanto, por uma virada:

[...] o inconsciente é Real, quer dizer, o inconsciente não é simbólico, ou ainda, quando ele se torna simbólico, torna-se outro. Por isso, podemos dizer que a operação analítica faz o inconsciente passar do Real para o simbólico (Miller, 2011, p. 120).

Disso advém ser o sinthoma condicionado não pela linguagem, mas por lalíngua, aquém de qualquer articulação. Sob tal regime, caberia ao psicanalista perceber os modos de gozo como absolutamente singulares; a contingência desses modos de gozar; o gozo como fora do sentido:

O analista não é uma memória, ele não faz benchmarking, não compara: ele acolhe a emergência do singular. De todo modo, é o que está contido na orientação para o singular. Em contrapartida, não há apenas isso em psicanálise. Com efeito, por uma outra vertente, o psicanalista é uma memória. Ele guarda a memória dos significantes que aparecem, faz correlações, articula-os, pontua repetições. Esse trabalho de memorialista, de secretário do paciente, permite-lhe balizar a zona onde poderá incidir sua interpretação. Ocasionalmente, ele conserva por muito tempo esse saber, até manifestar-se para ele o momento oportuno de dizer e de surpreender o analisando, com suas próprias produções - as do analisando -, reapresentando-as para ele de modo inesperado.

Se o Real é o gozo, o inconsciente é uma defesa contra o gozo. Não é mais o impossível, mas o contingente. Em outros termos, o Real é o “que cessa de ser impossível, o que cessa de não se escrever” (Miller, 2011, p. 127). Trata-se de um “capítulo censurado, o capítulo censurado de um texto que é a história [histoeria] do sujeito” (Miller, 2011, p. 174). “Em termos precisos: se são contingências, não são ordenadas. Elas só adquirem uma ordenação por meio de uma ordem simbólica” (Miller, 2011, p. 127):

Chamo ‘sinthoma’ a esse dispositivo que eu disse estar ali, em primeiro lugar, para produzir gozo, não para produzir sentido, ou que ali está para produzir sentido apenas como cobertura de gozo, sendo este sua finalidade própria. [...] Tudo pelo gozo. Em termos freudianos isso quer dizer a dominação completa do ponto de vista econômico. No fundo, estes três elementos, S1, S2, S, não são tanto significantes ou efeitos de verdade, e sim functores [fonctures] para gozar, são os elementos de um aparelho de gozo.

A psicanálise consistiria, portanto, “[...] em obter uma fratura da fantasia, isto é, uma separação entre o efeito de sentido e o produto do gozo” (Miller, 2011, p. 137).

Figura 6 Fratura da fantasia 

Logo, a interpretação se processaria em relação ao gozo, o que requer um modo de dizer que não é da instância do significante, mas acentua nele, uma materialidade (Miller, 2011). Uma vez mais, recorrendo a esse autor, tal é a hipótese radical a que chega Lacan:

Retificar não o sujeito, como dizia Lacan em seus primeiros tempos, quando falava da retificação subjetiva como o primeiro momento da análise. Trata-se, tratar-se-ia, aqui, de uma retificação de gozo [...] a linguagem não é lei, é uma articulação (Miller, 2011, p. 204).

De toda forma, persistirá a questão: “Como é que o corpo e a linguagem se juntam para fazerem gozo, para fazerem gozar?” Segundo Lacan, para “fazer gozo, o corpo e a linguagem juntam-se no sinthoma” (Miller, 2011, p. 209).

Fonte: Miller, 2011, p. 209.

Figura 7 Constituição do gozo 

Em outros termos, o sinthoma implica o corpo, mas é articulação. Diz-se sinthoma exatamente por não haver abordagem direta do gozo, por ser este bruto, imaginário e sempre refratado pelo sinthoma: “o gozo é uma substituição” (Miller, 2011, p. 209), “[...] um sinal e um substituto de sinthoma uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente” (Freud, [1926] 1996, p. 95).

Em linhas gerais, os esforços de desenvolvimento da psicanálise levados a cabo pela genialidade de seu fundador e, posteriormente, por seguidores, entre eles Lacan, são incontestáveis, especificamente, no que tange à relevância de se “re-visitar”, sistematicamente, os fundamentos e o aparato metapsicológico produzido a fim de mantê-la operativa frente às transformações que marcam o contexto de sua elaboração - a modernidade - em que se elabora e que se pratica a “clínica” psicanalítica (Miller, 2015).

Como evidenciado, tanto na formulação de Freud, quanto no ensino de um de seus mais dedicados discípulos - Lacan - os percursos são marcados pela busca da lógica que marca a construção científica, segundo a qual se tem a inexistência de alcance da verdade, tese implícita na impossibilidade de confirmação de qualquer hipótese, restando apenas a instância da refutação. Coerente a esse princípio, são recorrentes em ambos os autores a douta dúvida, a mudança de rotas e a revisão de caminhos anteriormente por eles escolhidos, denotando a vitalidade e dinamicidade do próprio foco do estudo e prática psicanalíticos: o sujeito humano, um ser intrinsecamente de falta.

Nesse sentido são significativas as contribuições e as formulações do último ensino de Lacan, em específico suas elaborações em torno do que se denomina “fórmula do aparelho de gozo”. Por meio delas, abrem-se possibilidades de articulação entre conceitos fundamentais da psicanálise, forjados na modernidade e revisitados, haja vista as demandas da contemporaneidade.

De estudos centrados na influência do sexual, passando para perspectivas concernentes ao psíquico, avançando para aportes estruturalistas, linguísticos e topológicos, a psicanálise de orientação freudiana tem sabido se reinventar, mantendo sua aplicabilidade e relevância. É o caso das possibilidades de revisita, conforme elaboradas pelo último Lacan, que, articulando a produção anterior em torno de seu “grafo do desejo”, a releitura do mito freudiano de Édipo e, enfim, sua profícua trajetória como “clínico” e estudioso da psicanálise, evidencia novas interações entre conceitos fundamentais ao saber inventado por Freud: da pulsão ao gozo, do sintoma ao sinthoma, do sujeito ao falasser.

Referências

FORBES, J. Psicanálise do homem desbussolado. Psique, São Paulo, v. 53, p. 14-15, 2010. [ Links ]

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]). In: FREUD, S. Um estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Direção da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 91-170. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 20). [ Links ]

LACAN, J. Joyce, o sintoma. Coimbra: Escher, 1986. [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M. D. Magno. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

MILLER, J.-A. O osso de uma análise - o inconsciente e o corpo falante. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. [ Links ]

MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. [ Links ]

Recebido: 28 de Fevereiro de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

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