Introdução - Transexualidades e o CBP-RJ1
Participaram nove membros efetivos e candidatos no Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ. Iniciado em 2015, sete dos participantes frequentaram por dois anos e meio uma instituição de acolhimento para pessoas em situação de vulnerabilidade social, com prioridade para transgêneros. O discurso do capital prioriza a grande mídia e consumidores, deixando no anonimato número muito maior de pessoas transgêneros. O Brasil segue no topo de ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo e há grande dificuldade de acesso a procedimentos médicos para processos de transição. O discurso da patologização das transexualidades - através dos enquadres em estruturas neurótica, perversa ou psicótica - não foi observado na prática. Necessidade do retorno a Freud nos Três ensaios e nas Novas conferências.
GNTrans - Histórico, visitas e produção
No início de 2015, vários candidatos do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva, órgão responsável pela formação, e alguns membros efetivos do CBP-RJ, passaram a se reunir com o objetivo de estudar as transexualidades. De acordo com o que é previsto no Regimento Interno do CBP-RJ, foi criado um Grupo de Produção Científica, com reuniões semanais e coordenado por um membro efetivo. A frequência contaria pontos para a formação dos candidatos, conforme previsto pelo Regimento do CBP-RJ. Fui convidado para ser o coordenador, embora pouco conhecesse o tema. O Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) iniciou com nove participantes.
Das muitas leituras e discussões em 2015, originou-se a VII Jornada de Psicanálise do CBP-RJ Neossexualidades: novas escutas, realizada no Hotel Mirador, Copacabana, em 28 nov. 2015. Contou com a participação do convidado Paulo Ceccarelli, do CPMG e, na palestra de abertura com a convidada Ana Maria Sigal, do Sedes Sapientiae, de São Paulo. Seis dos trabalhos da jornada foram publicados na Estudos de Psicanálise n. 47, inclusive os de Ceccarelli e Sigal.
A partir do segundo semestre de 2016, cinco dos participantes do GTNTrans passaram a frequentar semanalmente uma instituição de acolhimento para pessoas em situação de vulnerabilidade social, com prioridade para transgêneros, então localizada no centro da cidade. Após cada visita de umas duas horas, seguida de um almoço já próximo à sede do CBP-RJ, o grupo se reunia para discutir e ter alguma forma de supervisão. Quase não foram mais debatidos textos ou filmes. No segundo ano das visitas uma candidata saiu e dois novos candidatos entraram no GTNTrans, participando nas idas à instituição.
Em algumas ocasiões, vários ou todos do GTNTrans conversavam com o grupo do abrigo. Outras vezes ocorriam conversas individuais. Não havia nenhum modelo prévio. Os residentes do abrigo, no início desconfiados sobre o propósito do grupo de fora (“aqui só aparece pastor e político perto de eleição”), tornaram-se bastante falantes.
Ao final de 2018 as visitas cessaram devido à mudança da instituição para local muito remoto. Mas o GTNTrans, por algum tempo, ainda continuou a se reunir.
Ao todo, a partir de 2015 foram publicados na Estudos de Psicanálise nove artigos de participantes do GTNTrans e três de convidados. E em 2019 foi publicada por cinco dos participantes a coletânea Transexualidades: reflexões psicanalíticas sobre gênero e Édipo. (Lopes, Mello, 2019). Em 2022, por solicitação de Maria Leda Jucá Sobreira de Sampaio, coordenadora da clínica social (CAP - Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ), para atender a demanda de pacientes, transmitir a experiência prática das visitas e apresentar o desenvolvimento teórico sobre as transexualidades aos novos candidatos em formação, foi ministrado o curso livre Transexualidades e Psicanálise, com 12 aulas, por quatro membros efetivos do CBP-RJ participantes do GTNTrans.
Definições I - Transexualidades e intersexualidades
Nas transexualidades a identidade de gênero diverge do gênero ligado ao sexo físico biológico atribuído ao nascimento. Não ocorrem irregularidades físicas. As estatísticas são muito divergentes. O termo “transgênero” é frequentemente utilizado como sinônimo de transexualidade. Muitas vezes estatísticas giram em torno de 1% da população. Há muitas dúvidas sobre a fidedignidade dos números.
Nas intersexualidades, há variações físicas quanto às características sexuais que identificam cada sexo. Podem ser encontradas nos genitais, cromossomos, gônadas ou hormônios, que não coincidem com o entendimento binário padrão usual de classificação sexuada dos corpos. Síndromes de Klinefelter (XXY) e Turner (XO), mosaicismo (no caso simultaneidade de XX e XY), síndrome de insuficiência aos androgênios (graus muito variados) e outras. A incidência de 0, 018% a 1,7% (dados também não confiáveis, apesar de números pequenos, a variação de duas casas decimais é muito ampla). No passado, uma parte era caracterizada como “hermafroditas”. A maioria de intersexuais se identifica binariamente como homem ou mulher. Mas um número razoável (8 a 20%, estatísticas também díspares) pode apresentar disforia de gênero.
Definições II - Expressão e identidade de gênero, orientação sexual e escolha objetal
Expressão de gênero: o que é social e culturalmente tido como características masculinas ou femininas.
Orientação sexual (escolha objetal): hetero, homo ou bissexual. Mais recentemente o termo “assexual”.
Identidade de gênero: considerar-se homem ou mulher, geralmente desde quanto se lembre da infância.
Sexo genital: masculino ou feminino.
Os quatro itens podem ser combinados entre si, cada qual em grau variado. Sigal (2015, p. 37) defende a ideia de conjuntos [ensembles]:
Podemos pensar em um mundo de diversidades, no qual traços identificatórios vão formando conjuntos, ensembles, que permitem tantas combinações quantas singularidades existirem.
Histórico - Principais pesquisadores Magnus Hirschfeld (1868-1935). Médico e sexólogo alemão. Criou os termos “travesti”, em 1910 e “seelischer Transsexualismus” (transexualismo psíquico) em 1923. Publicou em 1910 o livro Die Transvestiten em alemão, traduzido para o inglês como Transvestites e sem tradução para o português.
David Cauldwell (1897-1959). Médico e neuropsiquiatra americano. A palavra “transexualis” foi usada pela primeira vez em 1949, na revista popular Sexology, em um artigo intitulado Psychopathia Transexualis. A grafia foi com apenas um “s” porque o termo era uma referência direta ao título da ópera magna Psychopathia Sexualis, de Krafft-Ebing ([1886] 1965), catálogo monumental das “aberrações” do comportamento sexual. Cauldwell foi o criador do termo “transexualidade”.
Harry Benjamin (1885-1986). Endocrinologista e sexólogo de origem alemã, emigrado para os EUA em 1913. Em contraposição ao entendimento de vários psiquiatras sobre as pessoas trans, Benjamin, como médico, acreditava nas origens de desordens endócrinas e hormonais, sendo o tratamento psiquiátrico ou psicanalítico de pouca ajuda. Em 1966 publicou The Transsexual Phenomenon, livro imensamente importante como o primeiro grande trabalho que descrevia e explicava o tratamento médico a favor do que hoje se nomeia identidade de gênero em detrimento do sexo biológico.
Houve muita publicidade em torno de alguns de seus pacientes. Notadamente Christine Jorgensen, inicialmente nomeada George William Jorgensen. Inclusive convocado para o exército ao final da Segunda Guerra Mundial. A primeira pessoa a se tornar amplamente conhecida nos Estados Unidos por ter feito uma cirurgia de mudança de sexo.
John Money (1921-2006). Psicólogo, sexólogo e autor neozelandês emigrado para os EUA. Foi professor da Universidade John Hopkins, onde estabeleceu a Clínica de Identidade de Gênero. Muito controverso.
Caso David Reimer, menino que aos seis meses teve seu pênis mutilado por uma circuncisão médica, tinha um irmão gêmeo. Para Money a “identidade de gênero” era desenvolvida principalmente como resultado da aprendizagem social desde a infância. Conduziu David para ser operado e criado como menina. Seu irmão gêmeo servia como controle para o experimento. Mas David nunca se reconheceu realmente no sexo feminino e acabou se suicidando aos 38 anos. Chama atenção o fato de que jamais foi dada a David sua própria escolha da identidade de gênero.
Robert Stoller (1924-1991). Psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Los Angeles. Professor de Psiquiatria da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e pesquisador na sua Clínica de Identidade de Gênero. Stoller é considerado o introdutor do termo “identidade de gênero”, em um congresso de psicanálise em Estocolmo em 1963. Também postulou a existência do “núcleo de identidade de gênero”. Autor de nove livros e mais de 115 artigos. Iniciou participando de tratamentos normativos para induzir uma escolha objetal “normal” e a identidade de gênero conforme o sexo biológico. Indo até o oposto, sintetizado na frase que inicia seu artigo sobre identidade de gênero, no mais difundido tratado de psiquiatria das décadas de 70 e 80 do século passado, inclusive no Brasil:
[...] Quando duas verdades são incompatíveis, como a de que os cromossomas são masculinos, mas a identidade está fixada no feminino, com um sentimento de feminilidade, a verdade da identidade deve prevalecer (Stoller, 1975, p. 1408).
O livro Sex and Gender II - The Transexual Experiment, de 1975, foi publicado no Brasil em 1982 com o título A experiência transexual. Em vários aspectos superado, tornou-se uma leitura quase obrigatória. Entre muitos outros, Stoller é discutido por Jacques Lacan, Jean Laplanche e Judith Butler.
Influências político sociais
Pílula anticoncepcional: em 18 de agosto de 1960, foi lançado o contraceptivo oral Enovid-10 nos Estados Unidos.
Surgimento e comercialização de hormônios sintéticos, principalmente a partir da segunda metade do século XX. ● Movimento de maio de 1968 na França.
Rebelião de Stonewall, cidade de Nova York, 28 de junho de 1969.
Festival de Woodstock: 15 a 18 de agosto de 1969, estado de Nova York.
Para mais detalhes sobre a força dos anticoncepcionais como determinante da emancipação feminina, do movimento de maio de 1968 e da rebelião gay em Nova York, em 1969, recomendamos o início da conferência Sexo e gênero, do psicanalista e professor Joel Birman (Birman, 2016).
Retorno a Freud: fundamentos para a despatologização I - Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) demonstra que a sexualidade humana se descola da reprodução da espécie. Surge na mais tenra infância, sem qualquer propósito reprodutivo. E quando surge a capacidade reprodutiva, o número e a intensidade de relações sexuais infinitamente ultrapassa o necessário para gerar filhos.
A segunda grande separação é entre sexo biológico e o que é popularmente conhecido como orientação sexual, o que Freud denominou de escolha objetal. Isto é, a escolha de parceiros ou parceiras que podem ou não ser do sexo oposto. Freud ([1905] 1978, p. 140) defende a bissexualidade inata, demonstrando também que “[...] há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda”. Nesse texto Freud também já chama a atenção para o que mais tarde será denominado “expressão de gênero”. Ou seja, as características da personalidade, a aparência e os gostos considerados masculinos ou femininos, que muitas vezes independem do sexo biológico.
Fundamentos para a despatologização II - Conferência XXXIII: Feminilidade
Durante décadas, Freud também postulou que a libido, por ser uma força ativa, era masculina, mesmo na mulher. Mas o impacto da leitura do artigo de Melanie Klein sobre o Édipo precoce abalou suas convicções, o que se reflete nos seus textos Sexualidade feminina (1931) e Conferência XXXIII: Feminilidade (1933 [1932]).
Na Conferência XXXIII admitira que a equação entre atividade e masculinidade, bem como seu correlato lógico, feminilidade e passividade, não procediam. E que:
Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo (Freud, [1932] 1996, p. 130).
Pós-freudianos Fundamentos para despatologização III - Klein e Winnicott
Para Melanie Klein, o objeto primeiro é o seio materno. Logo, o pênis do pai é herdeiro do seio da mãe. Há uma troca na sequência de objetos ou pré-objetos no início da vida, também ocorre outra na construção da sexualidade. E uma troca do primado do pênis e do Édipo freudiano em função de um estado anterior em que o primeiro objeto edípico é feminino (que por sua vez independe de concretamente estar sendo exercido por alguém do sexo feminino ou masculino).
Na obra de Donald Winnicott, que em tantos aspectos também diverge da de Klein, há uma descrição semelhante, mas com acréscimos, de que através dessa forma de relação, denominada de elemento feminino puro, mãe e bebê em conjunto estão sendo, e o bebê crê que o seio é criação sua. Por longos momentos não há o contato de duas peles, porque ainda através dessa forma de relação mãe e bebê em conjunto estão sendo. Não há separação entre dois seres diferentes. Ser é conter dentro de si e gestar. Só mais tarde iniciará a alternância entre um cuidar ativo e uma passividade criativa.
A função materna é colocar-se como espera que permita ao bebê desabrochar sua singularidade: ser em oposição a um posterior fazer. Ser enquanto: conter, gestar, cuidar, qualidades que serão sempre vistas como femininas. De um feminino que surge como protetor e guardião da pulsão de vida, que possui acesso privilegiado a tudo que é interior, como ao sentir dentro de si a subjetividade. Características que serão sempre depois associadas ao feminino, embora não se trate ainda de um feminino binário, isto é, que inicialmente exista em oposição a um masculino.
Com o espantoso desabrochar do bebê humano em seus dezoito meses iniciais de vida, aumenta a alternância com momentos cada vez mais longos, em que já existe um contato de pele entre duas individualidades separadas. Mas através da visão inicial, em que o seio bom já se constituiu como o núcleo inicial do ego, aos poucos surge o elemento masculino, o fazer em complementação ao ser.
Klein e Winnicott complementam Freud. O criador da psicanálise fundou todas as suas bases técnicas e clínicas, mas jamais observou de perto um bebê. E a primeira análise infantil - o Pequeno Hans - já era um menino com mais de cinco anos.
Lacan - Patologização na estrutura psicótica
Em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse do semblante, comenta Lacan ([1970-1971] 2009, p. 30):
[...] talvez vocês tenham tempo de ler alguma coisa. Visto que estou recomendando um livro, para variar, isso fará aumentar sua tiragem. Chama-se Sex and Gender [Sexo e gênero], de um certo Stoller. E muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante - o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja porque meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos. Mas não tem importância.
A citação de Lacan em 1971 refere-se ao primeiro Sex and Gender (I) - The Development of Masculinity and Femility, publicado em 1968, precursor de Sex and Gender II - The Transexual Experience. O percurso stolleriano foi a despatologização das transexualidades. Mas a descrição de Lacan tornou-se quase um imperativo para que a maioria de seus seguidores - alguns bastante conhecidos - as caracterizassem como psicose. Essa tendência foi associada a termos ou conceitos tais como o “empuxo à mulher” e não “inscrição do Nome-do-Pai”.
Fundamentos para a despatologização IV - Refutação do diagnóstico de psicose
O caso Schreber quase sempre é lembrado como exemplo. Passando por cima de que o autor do célebre livro interpretado por Freud vivenciou, na primeira fase de sua psicose, sua transformação em mulher como imposta de fora e absolutamente maligna e, na segunda fase, só se conformou porque era um destino inexorável imposto pela “ordem das coisas”. Entre muitos outros sintomas típicos de esquizofrenia, Schreber sofria de alucinações corporais extremamente regredidas e concretas.
Não foi apenas a leitura sobre os transexuais estudados por Stoller ou muitos outros autores psicanalistas ou de outras áreas, que embasa a refutação do diagnóstico de psicose. Mas principalmente a experiência de colegas do GTNTrans e de transexuais que pessoalmente conhecemos ou supervisionamos, a partir do convívio na instituição de acolhimento para pessoas em situação de vulnerabilidade social, bem como em demanda clínica ou palestrando no curso livre do CBP-RJ sobre transexualidades acima mencionado. Todos reconhecem sua realidade anatomofisiológica. Não há nenhuma alucinação ou delírio de que estejam corporalmente mudando de sexo. Tanto que a solicitação é que os médicos produzam essa alteração. Assim como não há outros dos muitos sintomas esquizofrênicos semelhantes aos apresentados por Schreber, exceto em um único caso de que tivemos notícia. Sintomas que não possuíam relação direta com a transexualidade.
Nos transexuais que diretamente observamos ou acompanhamos, não ocorrem alucinações auditivo-verbais ou de quaisquer outros tipos, ou transtornos da linguagem ou da consciência do eu, comprometimento da vontade, pragmatismo ou psicomotricidade, e aí por diante quaisquer outras alterações sinônimas de psicose em todo o elenco da psicopatologia clássica. Sendo assim, o enquadre com o diagnóstico de foraclusão não procede.
Também reforça a incompatibilidade do diagnóstico de psicose e da sua causalidade para justificar as transexualidades, um conhecedor muito mais profundo da obra de Lacan, o psicanalista e professor Christian Dunker (2018, p. 13):
Fato é que os comentários de Lacan sobre Stoller no Seminário XVIII são infelizes e sua teoria da transgeneridade, pensada como foraclusão, é muito frágil e deu origem a inúmeras consequências terapêuticas problemáticas. Sim, a clínica psicanalítica precisa da crítica feminista, caso contrário ainda estaríamos recomendando ou vetando cirurgias de redesignação de gênero a partir do pré-diagnóstico de psicose.
Binarismo - Consequência mais recente e abrangente das transexualidades
Os conceitos teórico-clínicos de recalque, foraclusão e denegação, fundamento das estruturas neurótica, psicótica e perversa têm o mesmo problema quanto à identidade de gênero. Todos os três se referem a sintomas posteriores à formação dessa identidade. Se ela foi recalcada, foracluída ou denegada, é porque de algum modo ela já existia, mesmo no caso dos pacientes psicóticos.
Assim como Schreber, ninguém pode se sentir sendo transformado em mulher contra a sua vontade, se não se considerasse previamente homem, ou vice-versa. O(A) histérico(a) pode recalcar e produzir sintomas a partir suas fantasias bissexuais recalcadas. O que implica dizer que se considera de um sexo e teme a atração e as fantasias sexuais com objetos do mesmo sexo. Logo, sabe qual é sua identidade de gênero, por mais que tema por ela. Mesmo se considerada perversão, só pode ser denegado o que ameaça uma crença prévia do sexo ao qual se pertence2.
O encaixe das transexualidades em qualquer uma das três estruturas também subentende que, para aquele que faz essa classificação, o correto seria uma subjetividade de acordo com o sexo biológico. A subordinação da sexualidade humana a um tipo específico de coito, em vez da definição mais acurada, inclusive para fins legais, de duas pessoas que concomitantemente (ou quase) atingem o orgasmo.
Todos os principais pesquisadores acima elencados ainda trabalhavam na busca de um binarismo completo, perfeito. As transexualidades não seriam patológicas, mas a busca pela adequação oposta ao sexo biológico de nascença deveria ser completa em todos os itens: identidade e expressão de gênero, escolha objetal heterossexual e genitais em concordância com todos os itens anteriores. Isto é, buscavam manter um binarismo perfeito. Tendência que se mantém nas tentativas mais recentes, inclusive de psicanalistas, em manter o exclusivismo binário completo, ou quase, através da patologização em estruturas neuróticas ou perversas.
Essa tendência se mantinha também na antiga caracterização separando transexuais e travestis. Transexuais buscariam a mudança completa do ensemble. Travestis manteriam seu sexo genital de nascimento. Em décadas anteriores, nas aulas de psicopatologia, eram dados os exemplos de duas personalidades brasileiras famosas, Roberta Close como transexual e de Rogéria como travesti.
Apesar dos esforços feitos pelos primeiros pesquisadores e pelo avanço das técnicas cirúrgicas e próteses, até hoje, mudanças de sexo genital muitas vezes são pouco satisfatórias. No item acima, nas definições, não foi colocado o termo “travesti”, hoje desaparecido. O rigor na manutenção do ensemble completo, muitas vezes atenuado apenas quanto à escolha objetal (que acarreta a quem o faz a acusação de ‘homofobia’, com sanções legais), conduz a importância em pesquisa mais profunda sobre a construção da sexualidade a partir de princípios freudianos. Mesmo porque a crítica à bissexualidade também iria contra um dos princípios básicos da teoria e clínica freudianas. E a ‘solda’ mencionada por Freud, poderia ser não apenas entre pulsão e objeto, mas também sobre a construção do eu corporal a partir das experiências infantis. A libido ‘neutra’ nem sempre erotiza um corpo biológico de acordo com o binarismo cromossomial.
As transexualidades e o discurso do capital
As transexualidades tornaram-se crescentemente visíveis e mobilizaram profundamente as crenças sobre o binarismo, em todos seus aspectos. Mas, como acontece em todas as áreas, com o objetivo do maior lucro possível, o discurso do capital apodera-se de tudo que se torna moda. Podemos exemplificar pelo filme A garota dinamarquesa (2015). A espetacularização: luxo, música, cenários, cenografia e localização num passado quase mítico. A morte como decorrente da busca de um ensemble perfeito. Filme premiado com um Oscar. Todos transfóbicos, conscientes ou inconscientes, podem assistir com deleite o filme sobre um ser humano de bom padrão socioeconômico, ao pagar com a vida a ousadia de ter desafiado o binarismo. Nada a ver com a realidade de um país como o Brasil, que segue no ranking dos países campeões mundiais em assassinatos de pessoas trans.
O filme mencionado torna-se uma piada de mau gosto em comparação com os moradores ou hóspedes da instituição para pessoas em vulnerabilidade social, com prioridade para transgêneros, frequentada pelos participantes do GTNTrans. Entre os moradores ou hóspedes, podemos mencionar uma moça trans de uns 19 anos, de família pobre e de um estado ao sul do Brasil, acolhida no abrigo poucos dias antes, com relato de não binarismo desde a primeira infância. Tendo relatado punições físicas, exorcismos religiosos e internações psiquiátricas com eletrochoque. Um tanto fascinada pela liberdade na capital grande e mais liberal. Mas cidade também capaz de extremas violências. Após alguns dias, a moça não mais apareceu. Houve vagos comentários de outros moradores, de que teria sido imprudente e abduzida na rua por uma rede de escravas brancas, na qual trans são mercadoria valiosa, ainda mais em outros países. O outro lado do discurso do capital. j