Lacan ([1964] 1988, p. 62), na qualidade de leitor do filósofo e teólogo Søren Kierkegaard (1813-1855) o considerou “o mais agudo dos questionadores da alma humana antes de Freud”. Para além das aproximações de temas como a angústia e o conceito de repetição presentes nas obras dos dois autores, existe em Lacan uma clara influência da visão do pensador dinamarquês acerca do feminino.
No Seminário 20: Mais, ainda, na lição de 20 fev. 1973, há um comentário sobre o desfecho do relacionamento de Kierkegaard e sua noiva Regine Olsen, evento que nos é narrado - em um estilo que não é precisamente autobiográfico - pelo próprio pensador dinamarquês em Diário de um sedutor (1843) e em outros de seus escritos. Lacan ([1972-1973] 1985, p. 104) diz que Kierkegaard se “castrou” ao romper com sua noiva “pelo desejo de um bem ao segundo grau, um bem que não é causado por um a minúsculo” (grifo nosso) tendo, assim, “descoberto” a noção de ex-sistência.
É bem verdade que o jovem Kierkegaard abdicou de Regine um ano depois de havê-la pedido em noivado, mesmo que afirmasse nutrir por ela um grande amor, dizendo responder a um chamado advindo da fé herdada de seu pai. Kierkegaard torna-se celibatário e se dedica a uma vasta obra nos campos da filosofia, da ética e da teologia, mantendo com as instituições religiosas certo posicionamento crítico.
O significado da breve menção que Lacan ([1972-1973] 1985) faz a respeito da escolha de Kierkegaard foi posteriormente explicitado na lição de 10 abr. 1973 por Francois Récanati.1 Antes de nos atentarmos ao argumento de Récanati convém localizar em que âmbito Lacan (1972-1973] 1985) convoca Kierkegaard em Mais, ainda ao relacionar a temática da modalidade de gozo feminino e a noção de ex-sistência à escolha do pensador.
Na lição de 20 fev. 1973, vemos Lacan estabelecer uma relação entre o gozo místico - que ele ilustra evocando a imagem de Tereza D’Ávila esculpida por Bernini - e o gozo feminino, na condição de um gozo suplementar em relação ao gozo fálico.
Há um gozo - um gozo dela, do qual talvez ela mesma não saiba nada, a não ser que o experimenta, isso ela sabe. Ela sabe, é claro, quando isso acontece. E isso não acontece com todas elas (Lacan, [19721973] 1985, p. 100).
Nesse gozo “dela, deste ela que não existe” (o gozo da A Mulher) Lacan localiza uma via que possibilita o acesso à ex-sistência ([1972-1973] 1985, p. 100).
Tal qual nos indica Jacques-Alain Miller (2002), a noção de ex-sistência permite adentrar algo excluído do campo da significância nos remetendo ao S(A) com a qual identificamos, em suma, a inexistência do Outro. Assim, para o ensino lacaniano dos anos 1970, a ex-sistência torna-se uma categoria que qualifica o real. Ao abordá-la, Lacan toca na questão que permeia toda a filosofia ocidental desde suas origens. Basta considerar o que nos apontou Heidegger: a filosofia que o precede se ocupou mais do aspecto nominativo do ser, perguntando-se sobre os entes, em detrimento da facticidade do ser, da qual a angústia seria uma incontestável testemunha.
Com efeito, Miller (2002) nos esclarece ainda que, se para a filosofia o existir encontra-se implicado na dimensão da significância, isto é, daquilo que se representa, a psicanálise é uma interpelação que submete à prova um ser que se pensa devedor do campo do sentido, quando esta põe em questão justamente o sentido que decorre da cadeia significante. Isso seria suficiente, questiona Miller (2002, p. 12), para acessar uma posição que ex-sista à ordem significante? Seria o caso de operar com a noção de que “o real precede o significado, exceto que na análise é preciso passar pelo significado para acessar esse real”.
Os místicos, S(A) e a lógica da sexuação Lacan, de fato, não prescindiu do uso lógico dos significantes para se referir ao gozo feminino em sua relação com o campo da ex-sistência ([1972-1973] 1985, p. 105), utilizando, para isso, o operador lógico S(A). Contudo, convém destacar que, no Seminário 5: As formações do inconsciente, o S(A) surge descrito em relação ao falo.
[...] se a mulher tem de passar por esse significante [o falo], por mais paradoxal que ele seja, é porque não se trata, para ela, de realizar uma posição feminina primitivamente dada (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 296).
Nesse contexto:
[...] o falo é este significante que introduz no A algo de novo, e que só o introduz no A e no nível do A (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 324).
Portanto, de um lado, a escrita de S(A) é fundamental para a compreensão tanto da inexistência d’A Mulher quanto da especificidade de uma posição feminina na tábua da sexuação. Por outro lado, o entendimento sobre o S(A) se amplia à medida que Lacan o aproxima de sua leitura sobre a mística cristã.
De fato, ao longo de seus seminários, Lacan operou com S(A) sob diversos ângulos, como no Seminário 14: A lógica do fantasma (1966-1967), em que o contrapõe à figura de Deus, em uma aproximação dialetizada entre o lógico e teológico. Iremos destacar alguns pontos de tal abordagem, já que ela nos permitirá esclarecer em que medida isso se relaciona com a escolha de Kierkegaard perante seu amor por Regine.
No primeiro deles, partindo dos efeitos da castração, Lacan chega à reafirmação do aforismo sobre inexistência do Outro. Como observa Francois Bálmes (2000), essa tese é estabelecida no nível lógico da inexistência de um único conjunto de todos os conjuntos, levando, portanto, à negação de um Outro Universal. Tal abordagem coloca Lacan diante da questão do ateísmo moderno e, nesse caso, o testemunho de alguns místicos cristãos irá lhe interessar já que a experiência unitiva do místico “com o que quer que seja” (Lacan, 1966-1967, p. 335) se anuncia como um furo, como algo de impronunciável e não propriamente como encontro com um Outro supremo, universal.
São eles, os místicos, os que teriam avançado “às custas do a minúsculo” (Lacan, 1966-1967, p. 335) sobre uma certa compreensão de Deus “que não tem feito nada a não ser se anunciar como impronunciável” (Lacan, 1966-1967, p. 335). A esse respeito, Lacan diz ainda (19661967, p. 335): “Quando falo dos místicos, falo simplesmente desses furos que eles encontram”. Essa abordagem prefigura o que no Seminário 20: Mais, ainda surgirá na relação dos místicos com a modalidade de um gozo não-todo fálico, que não se vincula ao objeto a.
Tal gozo, antevisto por Lacan ao contemplar em Roma a imagem de Santa Tereza esculpida por Bernini, sustentaria uma certa face de Deus, experimentada pelos místicos na qualidade de um gozo no corpo, sem o intermédio de imagens ou palavras. Algo do qual eles não sabem, apenas sabem que o experimentam.
Ainda no Seminário 14: A lógica do fantasma existe uma segunda articulação que se antecipa - ao menos em parte - à lógica que sustenta a tábua de sexuação (Figura 1). Lacan (1966-1967, p. 375) afirma que na psicanálise tanto o ser homem quanto o ser mulher se exprimem em relação ao complexo de castração. No entanto, “não quer dizer que toda mulher se limite justamente a isso”.
Mais tarde, vemos no Seminário 20: Mais, ainda que homens e mulheres podem se encontrar posicionados no lado da tábua em que Lacan localiza o gozo feminino. O inverso também é possível, considerando a existência de mulheres fálicas. Assim, a questão da sexuação em Lacan está referida ao modo como os sujeitos se posicionam frente à condição de habitar o campo da linguagem, uma vez que “não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do ∀xФx” (Lacan, [1972-1973] 1985, p. 102):
Na tábua da sexuação, a função fálica Ф(x) está em jogo em quatro fórmulas marcadas pelos quantificadores: “existe um x” e “para todo x” (no lado superior esquerdo); “não existe x” e “não todo x” (no lado superior direito). Na leitura da tábua, o lado homem e o lado mulher se referem a posições diante do obstáculo relativo à castração, delimitado pela função do pai, que Lacan aproxima do enstasis - o obstáculo lógico aristotélico (p. 103).
Nesse contexto, por meio de uma articulação entre a lógica aristotélica e a teoria moderna dos conjuntos, Lacan demonstra que, por um lado, tal obstáculo cumpre a função de garantir uma exceção necessária - que não exista outro x para o qual a função fálica opere - o que torna possível a existência de um conjunto universal, onde para todo x a função fálica opera.
Do outro lado, há um conjunto que, em seu aspecto de contingência, só pode ser admitido se passarmos do universal (finito) ao infinito, dada a impossibilidade de existência de outra exceção capaz de formalizar um conjunto universal no lado mulher da tábua - não existe x para o qual a função fálica não opere. Nesse caso, os elementos do conjunto para não-todo x... correspondente à posição do gozo feminino não formam um conjunto universal e só podem ser considerados em sua singularidade.
Convém notar que aqui a abordagem de Lacan se aproxima do que diz Kierkegaard (1975, p. 114) sobre o feminino:
No homem o essencial é o essencial, por isso sempre permanecerá e todos os homens serão sempre iguais uns aos outros. Nas mulheres, por outro lado, o que é contingencial é o que é essencial. Portanto, sempre haverá uma diversidade [...] Duas mulheres nunca serão as mesmas.
Ademais, as posições de gozo indicadas na tábua nos informam que, enquanto o sujeito na posição do gozo fálico só se dirige ao objeto a, na posição feminina, há uma escolha de gozo em se dirigir ao falo (Ф) e ao S(Ⱥ).
Resta-nos, por ora, explicitar como isso se relaciona com a escolha de Kierkegaard.
Kierkegaard e Regine Olsen
A obra existencialista de Kierkegaard é repleta de dados biográficos dos quais se destacam sua relação com o pai, seus anos de afastamento da fé cristã, e de retorno a ela e seu relacionamento com Regine. Desse modo, a Regine que conhecemos vem do olhar do filósofo, em especial, nas narrativas por ele criadas, nas quais algum personagem, tal como ele próprio, se vê diante da impossibilidade de sustentar uma relação amorosa. Em A repetição (2009), por exemplo, Kierkegaard fala de um jovem que experimentou terríveis sofrimentos por amar uma moça sem conseguir sustentar a ideia de tomá-la por esposa.
Citando tal obra, Lacan ([1972-1973] 1985 p. 104) nos diz que Kierkegaard se “castrou” ao romper com sua noiva pelo desejo de um bem ao segundo grau, não causado pelo objeto a. Nesse caso, a escolha do pensador dinamarquês sugere o modo como ele conseguiu lidar com uma angústia que chegou a lhe provocar um “bravio arrebatamento” (Kierkegaard, 2008, p. 41). Ora, quando Lacan toma a renúncia a Regine por uma castração, podemos aludir que se trata de um posicionamento de Kierkegaard frente ao obstáculo imposto pela função do pai.
Assim, ao considerar que na castração “o pai representa uma lei, a lei do desejo, com a qual a mãe se torna, para o sujeito, ao mesmo tempo objeto de desejo e objeto interditado (Julien, 1996, p. 74), reconhecemos que Regine é colocada nessa posição de objeto.
Nesse caso, a saída de Kierkegaard diante da lei com qual ele próprio se confronta se apresenta sob duas formas. Na primeira, o filósofo poderia se situar em uma posição masculina - escolhendo Regine ou mirando outras mulheres na condição de objeto a. A outra saída, como aponta François Récanati, corresponde à lógica de singularidade que opera no lado feminino da tábua, pela qual, privando-se de Regine (e gozando dessa privação), Kierkegaard “teria provocado Deus a manter o olhar incessantemente sobre ele e assim particularizá-lo”.2
Por conseguinte, renunciando ao casamento, Kierkegaard prefere
[...] colocar-se na posição de excluído, dizer não ao ‘todo x’ e viver como se ele já estivesse morto, já sujeito da eternidade, [..] [do que] buscar Deus na relação imediata, por intermédio de seu semelhante.3
É essa posição que nos faz recordar o testemunho da mística cristã. Não por acaso, em Diário de um sedutor, encontramos trechos que nos fazem recordar os escritos do místico São João da Cruz, homem que Lacan afirma encontrar-se do lado do gozo feminino da tábua da sexuação, por exemplo:
[...] como a bailadeira que dança para glória do seu Deus, me consagrei ao teu serviço; leve no corpo e no vestir, ágil, desarmado, renuncio a tudo; nada possuo, nada desejo possuir; nada amo, nada tenho a perder (Kierkegaard, 1979, p. 55, grifo nosso).4
Ademais, Kierkegaard (1979, p. 230) se refere a Deus como aquele que “não pertence a distinções compreendidas no quadro da razão”. Seu Deus é da ordem do que é impossível de descrever, e não é acessado senão por um certo movimento de resignação.
A esse respeito, Kierkegaard (1979, p. 232) diz:
[...] todas as vezes que tento realizar este movimento turvam-se os olhos ao mesmo tempo que uma admiração sem reservas se apodera de mim, e uma terrível angústia me esmaga a alma.
Não podemos supor nesse movimento uma experiência próxima do gozo de Santa Tereza, descrito por Lacan como um gozo por ela buscado na relação com seu Deus, um gozo contingencial e esporádico que ela experimenta no corpo, mas sobre o qual nada sabe? Ora, seguindo com Lacan ([1972-1973] 1985, p. 103), esse é um tipo de gozo que aponta na direção do real, para algo que ex-siste além de qualquer significação.
Quanto a Regine - Lacan ([19721973] 1985, p. 103) sugere - também ela poderia estar situada na ex-sistência aos olhos de Kierkegaard (2009, p. 41) que a colocou na condição de uma
[...] mulher como coisa irrepresentável, não simbolizada, distintamente do homem que se deixa seduzir pela isca feminina e que nela pode localizar sua letra de gozo que aloja sua causa de desejo (Fuentes, 2009, p. 56).
Nesse caso, Lacan se aproxima outra vez do pensamento de Kierkegaard ao dizer que A Mulher não se encontra inscrita na ordem simbólica. “Não há Mulher” - diz no Seminário 20: Mais, ainda - “senão excluída da natureza das coisas, que é a natureza das palavras” (Lacan, [19721973], 1985, p. 99).
Essa referência ao campo das significações é essencial para o entendimento da inexistência tanto d’A Mulher quanto do Outro que nesse ponto do ensino lacaniano já não existe senão como corpo.
Não por acaso, Lacan nos adverte sobre o estrabismo que possa nos advir se pensarmos o Outro pela ordem do ser e não pela via da ex-sistência. Com efeito, a experiência do gozo místico - e seria o mesmo dizer do gozo feminino - nos remete ao S(Ⱥ) e isso “não faz dois Deuses” (Lacan, [1972-1973] 1985, p. 103), nem o Deus dos filósofos, em articulação com o ser da significância, nem o Deus Onipotente e Supremo, à quem a teologia mística parece se opor, remetendo-nos a uma “noção” de Deus que está para além do campo das significações.
Noutros termos, é nesta perspectiva que podemos versar sobre o que a escolha de Kierkegaard ilustra: o posicionamento do sujeito em um dos lados da tábua da sexuação. Sob tal enfoque, é possível supor que o homem Kierkegaard está não-todo inscrito na lógica fálica, ocupando a posição feminina da sexuação lacaniana, lugar de onde desponta sua escrita marcada pelo caráter do indizível da existência de seu Deus e de onde testemunha a ex-sistência d’A Mulher ao contemplar, a seu modo, Regine Olsen.