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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.85 Belo Horizonte jan./jun. 2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n85.08 

PSICANÁLISE E CLÍNICA

O tratamento está andando? A repetição conjunta como índice para estimar o progresso do tratamento psicanalítico

IS THE TREATMENT GOING? JOINT REPETITION AS AN INDEX TO ESTIMATE THE PROGRESS OF PSYCHOANALYTIC TREATMENT

Daniela Smid1 

Christian Dunker2 

1Psicanalista. Mestre e graduada pelo Instituto de Psicologia da USP

2Psicanalista. Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP


Resumo

Este artigo traz parte de nossa pesquisa acerca da dificuldade clínica de saber se o tratamento psicanalítico “está andando”. Propomos chamar de repetição conjunta um índice discursivo de que uma análise não está progredindo seja do ponto de vista do sintoma seja da relação com a verdade. Discorremos acerca da impossibilidade de avançar em uma análise para seu momento de concluir. Ao final pudemos argumentar que nem sempre o tripé - análise pessoal, supervisão e estudo teórico - será suficiente para auxílio na direção de um tratamento.

Palavras-chave: Tratamento; Paciente; Análise; Repetição conjunta

Abstract

This article brings part of our research about the clinical difficulty of knowing whether the psychoanalytic treatment “is going on”. We propose to call joint repetition a discursive index that an analysis does not progress from the point of view of the symptom or the relationship with the truth. We discussed the impossibility of moving forward in an analysis to the moment of conclusion. In the end, we could argue that not always the tripod - personal analysis, supervision and theoretical study - will be enough to help in the direction of a treatment.

Keywords: Treatment; Patient; Analysis; Joint repetition

O que Freud e Lacan nos legaram sobre o transcorrer de uma análise

Para que ocorra uma análise, Freud, ao longo de sua obra, considerou que seria preciso que o psicanalista, mantendo-se em abstinência e através do manejo da transferência, faça o paciente associar livremente, recordar e elaborar suas repetições, permitindo, por fim1, que uma análise termine quando o paciente não mais sofra de seus sintomas, tenha superado suas ansiedades e inibições, e o analista julgue que

[...] foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico (Freud, [1937] 1980, p. 251).

Ao explicar como surge a transferência, Freud nos diz que todo ser humano adquire um certo modo característico de conduzir sua vida amorosa, um clichê regularmente repetido, cuja origem está na ação conjunta de disposições inatas e influências experimentadas na infância, reaparecendo em cada interação com objetos amorosos. Situa que toda pessoa que de alguma maneira está insatisfeita se voltará com expectativas libidinais para alguém, e isso também ocorrerá para com o analista. Ou seja, uma parte dos impulsos libidinais de um paciente irá se ligar ao analista do mesmo modo como sempre se liga às pessoas ao seu redor. Esse modo pode ser através de afetos de amor e de ódio.

É inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores dificuldades ao psicanalista, mas não se deve esquecer que são justamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie (Freud, [1912] 2010, p. 146).

Ou seja, para que o passado possa ser mudado, é preciso que ele se presentifique. E estabelecida a transferência, a atualização dos sofrimentos causados por causas esquecidas, podem ser lembradas e elaboradas, assim uma análise começa. Um entrave na análise ocorreria quando a transferência não se estabelece, quando ela não é manejada, ou quando o analista não a interpreta, acarretando um triunfo da repetição.

Em 1914 faz menção ao manejo da transferência para lidar com a repetição:

[...] o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade, útil, concedendo-lhe o direito de afirmarse num campo definido. Admitimo-la à transferência como um playground no qual se espera que nos apresente tudo no tocante a impulsos patogênicos que se acha oculto na mente do paciente (Freud, [1914] 1975, p. 169).

E mais adiante:

[...] podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete -o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo (Freud, [1914] 1975, p. 196).

Já em 1917, escrevendo sobre a Teoria geral das neuroses, Freud fala que não basta descobrir o inconsciente e informá-lo ao paciente, deve-se eliminar a resistência que mantém a repressão funcionando. E em uma nota de rodapé de 1923, acrescentada ao texto Recordar, repetir, elaborar, Freud diz que

[...] é o ‘efeito de sugestão’ da terapia que aí vem ajudar a compulsão à repetição, isto é, a docilidade para com o médico, profundamente arraigada no inconsciente complexo parental (Freud, [1912] 2010, p. 179).

Não deixa de fazer parte da transferência o tal efeito de sugestão de que Freud fala, que Lacan nomeará de suposição de saber. Ocorre que, se o analista nada fizer com esse lugar, ou seja, se não houver intervenção do analista, não há análise. Muitas vezes o que poderá auxiliar nas intervenções de um tratamento é a supervisão.

Data de 1919 a primeira menção de Freud à necessidade de uma Kontrollanalyse, que passou a se chamar supervisão e se tornou prática obrigatória pela IPA em 1925. A supervisão refere-se, de um lado, à análise que o supervisor faz da contratransferência do supervisionando para seu paciente, e de outro, à maneira como se desenrola a análise do paciente, sendo contratransferência o conjunto das manifestações do inconsciente do analista relacionadas com as da transferência de seu paciente.

Sobre o fim de análise, em Análise terminável e interminável, Freud ([1937] 1980) sugere que seria necessário que no neurótico a própria transferência fosse demolida para que se conclua um tratamento.

Alguma previsão de iatrogenia faz Freud no texto de 1917, quando diz:

O mau uso da análise é possível de variadas formas; a transferência, em especial, é um instrumento perigoso nas mãos de um médico não consciencioso. Mas nenhum instrumento ou procedimento médico está a salvo do mau uso; quando um bisturi não corta, também não pode servir para curar (Freud, [1917] 1980, p. 612-613).

Lacan, por sua vez, considera que, para que uma análise se dê, o psicanalista deve poder, com seu desejo de analisar, ocupar uma posição de causa de desejo para seu analisante. É isso que permitirá ao analista dirigir o tratamento no sentido do atravessamento da fantasia do analisante, passando pelos estágios lógicos do instante de ver suas verdades, tempo para compreendê-las e momento de concluir sua análise, quando tiver, a partir da compreensão das verdades vistas, possibilidade de se destituir um tanto de sua subjetividade.

No Seminário 8: A transferência, Lacan ([1960-1961] 2010) traz alguns posicionamentos do que deve ser o papel do analista para que ocorra uma análise:

  • Não deve colocar como meta de sua ação o bem de seu paciente, mas o Eros dele (p. 19).

  • A experiência freudiana floresce apenas na ausência da intersubjetividade (p. 21).

  • Meu primeiro cuidado como analista será o de [...] evitar toda atitude que se preste à imputação de consolo, a fortiori de sedução. [...] esta intersubjetividade é convenientemente reservada, ou, melhor ainda, adiada sine die, para deixar que apareça uma outra captura, cuja característica é justamente a de ser, essencialmente, a transferência” (p. 22).

  • A psicanálise exige, no seu início, um alto grau de sublimação libidinal no nível da relação coletiva (p. 25).

  • Não poderá ocorrer que não seja da posição que lhe é dada pela transferência que o analista analise, interprete e intervenha sobre a própria transferência (p. 219).

Além dessas recomendações, Lacan faz uma distinção muito importante entre transferência e repetição, sendo que esta última seria um gozo, encontro falho e índex do real e a primeira, um laço causado por uma suposição de saber no analista. Essa diferença é fundamental para que o analista não impossibilite uma análise se colocando como mais um na cadeia repetitiva sintomática do analisante. É preciso manejar a transferência de modo a descolar transferência de repetição, caso contrário, o analista se colocará em repetição conjunta com o paciente e isso é indício de que falta escuta e a análise está impossibilitada.

Sabemos que só pode haver fim de análise se houver tido começo e que, uma vez ocorrida a entrada em análise, operações analíticas precisam se processar para que esta possa eventualmente chegar a seu fim. Portanto, se queremos pensar em processos que podem interromper a análise e mantê-la impossibilitada, ainda que os encontros entre psicanalista e paciente continuem ocorrendo, precisamos saber indicar os problemas que impedem que as operações analíticas necessárias ocorram.

Quando o problema da estagnação da análise se apresenta

Psicanalistas, em sua prática clínica, não raro, se deparam com uma percepção um tanto quanto difusa de que o tratamento não caminha. Neste artigo compartilhamos algumas reflexões sobre como o psicanalista pode estimar a possibilidade ou impossibilidade do andamento de uma análise.

Nossa hipótese é de que, quando a fala de um paciente não cessa de ser escutada pelo psicanalista como repetitiva, no sentido da reprodução, este está sob um efeito de repetição, ao mesmo tempo causa e consequência de desinteresse pelo caso clínico e há que avaliar a direção daquele tratamento e quais aspectos podem estar impossibilitando o analista de escutar o diferente para que a abertura do inconsciente e, portanto, a análise, volte a ser possível.

Tanto Freud quanto os continuadores de sua obra discutiram o incômodo ocasionado pela persistência dos sintomas dos pacientes, o que pode ser expresso em falas que soam repetitivas, idênticas. É preciso, contudo, distinguir a insistência do sintoma da fala repetitiva, pois cabe ao sintoma insistir e se o analista não puder escutar a diferença na fala, passando a supor uma reprodução, tal análise poderá ficar parada, impossibilitada. Para que seja possível escutar o diferente naquilo que parece semelhante, é preciso o auxílio do tripé, muito embora nem sempre ele seja suficiente.

Quando pensamos em uma análise que parece travada, parada, temos que avaliar se houve uma intercorrência em alguma parte do processo psicanalítico, que poderia tê-lo tornado impossível. Nossa hipótese é de que o índice que informa essa estagnação do processo analítico é a repetição conjunta entre analista e paciente, ou seja, uma escuta da fala do analisante como sempre a mesma somada à ausência de transformações clínicas. Quem poderá perceber isso nem sempre é o analista. Muitas vezes o próprio analisante surge com uma queixa de que nada muda para ele e de que ele se percebe falando a mesma coisa em todas as sessões; outras vezes é o supervisor que percebe isso ocorrendo. Se soubermos apontar essas intercorrências, poderíamos diminuir os riscos de impossibilitar uma análise.

Se pudermos aceitar que o índice da estagnação de uma análise é a repetição conjunta entre analista e paciente, onde o analista já não consegue escutar o diferente nas falas aparentemente repetitivas do paciente, temos como nos assegurar de que este é o momento propício para tentar reverter esta situação, tentando fazer com que, de impossível, ela volte a ser possível, uma vez detectadas as causas dessa escuta estagnada do analista.

Freud chegou à conclusão de que a análise do paciente vai até onde foi a análise do analista, e Lacan, a partir da crítica ao conceito de contratransferência, formulou que a resistência é só do analista e que o “desejo do analista é o que, em última instância, opera na psicanálise” (Lacan, [1964] 1998, p. 868). Ou seja, apenas alguém tratado é capaz de tratar outro alguém. Quanto mais longe em sua própria análise o analista tiver ido, mitigando suas resistências pessoais, melhores chances terá ele de fazer seu analisante atravessar a fantasia em direção a um esvaziamento do eu que então poderá receber o nome de fim de análise, e quiçá cura ou melhora. No entanto, as chances apenas podem melhorar, não se pode eliminar totalmente as resistências, portanto nenhum analista está imune à repetição conjunta.

O progresso do tratamento

Se tomamos a estrutura do tratamento psicanalítico tal qual Dunker (2011) sintetiza, podemos ver que a repetição conjunta admite várias incidências, conforme o momento do tratamento que se tenha em mente. Nas entrevistas preliminares ela pode se revelar como uma alienação inicial extrema ou como interrupção no tratamento de ensaio. Na entrada em análise, ela pode aparecer como culpa em vez de implicação subjetiva. No interior da neurose de transferência, ela pode se manifestar como erotização ou agressivização da transferência. Além disso, durante a construção do fantasma, a repetição conjunta pode identificar demasiadamente falo e objeto a. Finalmente, a repetição conjunta, como forma de satisfação e fixação pulsional, pode adiar indefinidamente o final da análise ao manter intactos o semblante de analista e o sujeito suposto saber.

Lacan parece assemelhar o fazer analítico à arte de um violinista, sem deixar de ressaltar que este deve possuir as cordas de seu instrumento:

É preciso realmente admitir que não existe em ninguém qualquer elucidação exaustiva do inconsciente, por mais longe que seja levada uma análise. Admitida essa reserva de inconsciente, podese conceber muito bem que o sujeito advertido, precisamente, pela experiência da análise didática, saiba, de alguma maneira, tocar nela como num instrumento, como a caixa do violino do qual, aliás, ele possui as cordas. Assim mesmo, não é de um inconsciente bruto que se trata nele, mas de um inconsciente mitigado, um inconsciente mais a experiência desse inconsciente (Lacan, [1960-1961] 2010, p. 229).

A prática psicanalítica, segundo Dunker (2020), também se assemelha a uma arte:

Essa é toda a arte de um psicanalista: a de recuar em relação a esse processo que o analisante vai propondo de juntar transferência e identificação [...] O analista tem que guardar distância e manter regulada a separação entre transferência e demanda (Dunker, 2020, p. 38).

O analisante propõe, e cada um o faz ao seu modo, essa junção entre transferência e demanda, transferência e identificação, transferência e repetição, de diversas maneiras, cabendo a cada analista, também a seu modo, artesanalmente, mas com propriedade e com seu desejo de analisar, realizar essa disjunção e fazer operar a função analítica para atravessar todos os tempos de uma análise. A destituição subjetiva que caracteriza o desejo de analista está sempre ameaçada pela proposta do analisante de fazer surgir o sujeito ali no analista, e só um desejo mais forte (o desejo de analista) é capaz de lidar com tais propostas.

Laurence Bataille faz uma advertência em relação a isso que julgamos muito interessante:

[...] se o desejo do analista é bem especificado como o desejo de que o sujeito vá levar seu desejo para outra parte, o desejo de que ele venha me fazer o relato de sua aventura o contradiz inteiramente. E, no entanto, não acredito que qualquer análise possa ser feita sem uma pitadinha deste desejo. Esta é uma das aporias da psicanálise. (Bataille, 1988, p. 15).

Bruce Fink (2018, p. 14) enuncia essa aporia em termos ainda mais decisivos:

Os pacientes tendem a faltar em sessões ou até a interromper a terapia quando intuem que estão sendo solicitados a abrir mão de alguma coisa, ou a fazer um sacrifício que não estão dispostos a fazer. É o desejo do analista, e não o enfraquecido desejo dos analisandos, que lhes permite prosseguir.

Percebamos que, trate-se de um analista recém-iniciado em seu ofício, ainda no começo de sua análise pessoal, trate-se de um analista experiente que supostamente já terminou sua análise, inevitavelmente poderão surgir dificuldades de interpretar, de manejar a transferência de modo a promover uma disjunção entre ela e uma identificação, repetição ou demanda. Caso o analista não consiga se desfazer dessa dificuldade, mantém uma análise em repetição conjunta, que segundo nossa hipótese, é índice de que a análise está estagnada, impossibilitada de passar a um próximo tempo analítico.

Com isso, não se está diante de um evento inconfessável na psicanálise; pelo contrário, essas intercorrências, inevitáveis em um discurso iminente e profundamente humano, devem ser objeto de uma ética e de uma política da psicanálise, pois é só essa contextualização que permite mobilizar os dispositivos capazes de minorar os efeitos prejudiciais delas para o tratamento dos pacientes.

A repetição conjunta como índice da impossibilidade analítica

Isso que chamamos de “repetição conjunta”, indício da estagnação de uma análise, é algo que também pode ter lugar nesse gerúndio de continuidade que é a formação do analista, ou seja, na antessala de sua prática. Atentamos para o que Laurence Bataille (1988, p. 12) diz e parece descrever em parte o que estamos querendo designar com esta expressão:

[...] a transferência leva sempre o sujeito, num momento ou noutro da cura, a dedicar-se ao gozo de seu analista, na medida em que este representa para ele o grande Outro. Mas é preferível que o sujeito não encontre o analista nesse lugar. Pois, nesse caso, é na situação analítica que ele encontra a maior exaltação de seu desejo, e nada mais pode mudar para ele. Desejo do analisando e desejo do analista recaem um no outro (grifo nosso).

É necessário distinguir radicalmente as repetições do paciente, as quais o conduzem à análise, em busca de uma vida mais satisfatória, da repetição conjunta, que pode ocorrer em meio ao tratamento e que exigirá atenção do analista para que a análise possa não estagnar. As repetições não são mais que os sintomas que insistem, ao passo que a repetição conjunta ocorre quando o analista, sem perceber, se põe a atender as demandas do paciente, deixando de fazer função analítica e semblante de objeto a, impedindo a abertura do inconsciente e o que se costuma chamar de andamento da análise.

Por exemplo, quando o analista acha que já sabe o que vai escutar na próxima sessão, ele está na mesma posição transferencial de qualquer pessoa do círculo de relações do analisante e incapaz de descolar transferência de repetição e, então, é hora de falar disso em sua supervisão, análise pessoal e buscar apoio teórico. Esse é um exemplo de como isso que chamamos de repetição conjunta aparece discursivamente na fala de um analista ao relatar um caso clínico e se mostra como índice de que a análise está impedida.

Uma análise não tem tempo cronológico, e sim tempo lógico. Este é o ensinamento de Lacan: na análise há o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir, e a repetição conjunta indica que uma análise passou a se tornar impossível e está alongando demasiadamente algum desses tempos, o que poderia ser considerada uma iatrogenia, por estender (desnecessariamente, e do ponto de vista lógico, não cronológico) um sofrimento. Uma análise pode ficar impossibilitada e em repetição conjunta devido a: resistências do analista, desejo do analisando e do analista recaindo um sobre o outro, dificuldades estruturais de determinados casos clínicos mais complexos, negligência, imprudência ou imperícia do analista, dificuldades no manejo da transferência, dificuldades de interpretar, etc. E apenas quando reconhecida tal impossibilidade e seus motivos é que há alguma chance de tratá-la e quiçá revertê-la para que a análise volte a se tornar possível.

Fink (1998, p. 241) nos chama a atenção para a responsabilidade do analista enquanto dirigente/condutor do tratamento:

A repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar. O pensamento não consegue encontrá-lo; o que é isso? Isso é o que está excluído da cadeia significante, mas em torno de que a cadeia gira. O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho.

E para que não confundamos o necessário tempo das repetições do paciente com um impedimento analítico que gera outro tipo de repetição que aqui viemos discutir, índice dessa impossibilidade, acrescentamos ao trecho acima outro, de Simonney (2013, p. 50 e 58, tradução nossa):2

[...] o analista deve dar a palavra ao paciente, para não confundi-lo com comentários sobre seus próprios sentimentos. O grande trabalho será, portanto, superar a resistência. [...] O paciente deve ter tempo para mergulhar na resistência desconhecida por ele, para trabalhar com ela, enquanto, desafiando a resistência, ele continua o trabalho de acordo com a regra fundamental da análise. (p.50)

[O analista deverá ter] “paciência e [dar] o “tempo necessário” para que ocorram muitas voltas da cadeia significante, sua repetição, reconhecidamente às vezes excessiva, mas essencial. (p.58)

Tentar realizar um manejo importante para o progresso da análise do paciente depende muito de investimento na teoria, no próprio processo analítico e na supervisão. A implicação e o interesse do analista em formação em construir os casos clínicos, em refletir teoricamente sobre a própria clínica, apenas advém quando há esse desejo. E para esse ato de implicação, sabe-se que não há atalho.

Fingermann (2008, p. 139) afirma:

A psicanálise é experiência da transferência e de sua manobra, é uma operação lógica da qual o analista é a causa. Esperase do psicanalista que ele suporte essa experiência. Espera-se da análise do analista que ela seja uma experiência de formação, ou melhor, de deformação de uma pessoa que lhe dê as qualificações necessárias e suficientes para poder suportar a direção desse tratamento do começo ao fim, isto é, do começo ao fim da transferência de seus analisantes.

Na medida em que se trata de uma prática clínica cujo funcionamento depende apenas do desejo do analista de dirigir o caso de tal maneira, nossa discussão sobre as dificuldades que o analista pode encontrar para auxiliar o analisante a passar a outro tempo da análise, isto é, sobre o que o faz se manter repetindo junto com o paciente, possivelmente traz consigo um caminho para pensar maneiras de reduzir iatrogenias.

Com esta pesquisa, foi possível discutir a impossibilidade de uma análise continuar. O índice disso seria a repetição conjunta e apostamos que poderemos saber melhor se estamos suficientemente preparados para dirigir um tratamento, quanto mais pudermos olhar para as dificuldades e os impasses desse preparo.

Considerações finais

Por fim, fica claro que haverá diversas circunstâncias clínicas em que a análise pode ficar impossibilitada e em repetição conjunta. No entanto, a questão fundamental, comum a essas situações, é como passar a perceber isso e diminuir o potencial de estagnação e talvez também iatrogênico de uma análise?

Nossa aposta é de que, se nomearmos tais resistências, estagnações e potenciais iatrogênicos, poderemos ter mais chance de percebê-los, reconhecê-los e lidar com eles. A noção de repetição conjunta que criamos aqui vem tentar colaborar com este campo de investigação para podermos ter maior clareza na direção do tratamento.

1No texto de 1937: “Análise terminável e interminável”

2 No original: “l’analyste doit laisser la parole au patient, ne pas l’embrouiller avec des remarques sur son propre ressenti. Le grand travail sera donc de vaincre les résistances. [...] On doit laisser au malade le temps de se plonger dans la résistance qui lui est inconnue, de la perlaborer, tandis que, défiant la résistance, il poursuit le travail selon la règle fondamentale de l’analyse.” (p. 50) “la patience et le « temps qu’il faut » pour que s’effectuent les nombreux tours de la chaîne signifiante, sa répétition certes parfois excédante mais indispensable), confusion qui laisse face à face imaginaire et réel, dans une tension que ne vient pas nouer le symbolique.” (p. 58)

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Recebido: 15 de Março de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

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