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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.85 Belo Horizonte Jan./June 2023  Epub Nov 04, 2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n85.09 

Artigo

Impasses na clínica: quando o calar é dizer

THE SOUNDS OF SILENCE AT IMPASSES OF CLINICAL PRACTICE

Vanessa Campos Santoro1 

1Psicóloga. Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais


Resumo

Através de fragmentos de caso clínico, a autora tece considerações sobre um dos impasses na clínica psicanalítica, isto é, a repetição e sua relação com a transferência, com o inconsciente e com a pulsão. Quer seja através da cadeia significante pedindo significação, quer seja no encontro com o real (objeto a), a repetição é uma tentativa malograda de repetir a experiência de satisfação e a marca deixada por ela (traço unário). O objeto a e os S1 vão determinar nossa posição subjetiva de sujeito na escolha da neurose, na escolha de objeto e na escolha de sexo no encontro com o real (objeto a).

Palavras-chave: Repetição; Transferência; Inconsciente; Pulsão; Traço unário; Objeto a

Abstract

The author uses fragments of a clinical case to weave her considerations about the practice of clinical psychoanalysis, or better saying, the phenomenon of repetition and it’s relation to transference, the unconscious and drive. Be it by means of the signifying chain’s demands for meaning or at the encounter with the real (object a), repetition is a foiled attempt at the experience of satisfaction and the mark which it left (unary trait). The object a and the S1 (master signifiers) will determine our subjective position as subjects making the choice and the sex choice at the encounter with the real its self (object a).

Keywords: Repetition; Transference; Unconscious; Drive; Unary trait; Object a

Tenho diante de mim um impasse. Uma cliente que repete o mesmo jargão: dificuldades com a chefe no trabalho e com a mãe na vida. Ambas são sentidas por ela como agressivas, impositivas, exigentes. Aparentemente essa dificuldade com a chefe no trabalho atual motivou a procura da análise. Depois de um tempo e de várias intervenções, é que aparece a mãe envolvida nas mesmas dificuldades.

Pairava um silêncio eloquente sobre a vida sentimental e até social. O silêncio dizia por si que algo da resistência, do temor ao dizer, do qual poderia escapar um dito, acontecia naquela análise. Chefe sádica, exigente, autoritária. Mãe igualmente exigente, brava e autoritária, mandava até no pai, “sujeito pacífico, não discutia, ficava em silêncio, saía de casa, trabalhava muito”.

O divã foi acionado numa tentativa de facilitar a regra fundamental da associação livre quando da passagem de chefe para mãe exigente. A análise durava há oito meses. Fomos surpreendidas pela transferência de cidade por causa do trabalho. Indiquei outra psicanalista a quem ela procurou, enfatizando a continuidade do processo analítico.

Existe no silêncio uma tão profunda sabedoria, que às vezes se transforma na mais perfeita resposta.

Fernando Pessoa

Depois de cinco anos, recebo novamente a ex-cliente em meu consultório. Estava mudada.

- Você já sabia, não é? Mas respeitou o meu tempo de dizer. Quando tive uma companheira que me tratou mal e me dominou, me lembrei de sua fala “Mãe exigente, chefe exigente, o que vem por aí?” Terminei com ela e hoje estou numa relação diferente, de igual para igual”.

Freud coloca o tempo em psicanálise no a posteriori. O que pensar desses fragmentos? Qual é o sintoma que vislumbramos? O gozo masoquista de sofrer com o Outro. Subserviência ao desejo do Outro. Estamos diante da mesma dificuldade com a mãe, com a chefe e com a parceira amorosa.

Temos aí uma ambivalência amor/ ódio a ser decifrada. É uma questão que diz respeito à sua posição de sujeito - sobre o sexo, sobre a vida, levando-se em conta que a escolha de objeto é diferente da escolha de sexo.

De onde parte a resistência? A resistência aparece no discurso com a força da Austossung [força da expulsão], segundo Freud ([1914] 1996), protegendo-nos da lembrança e da rememoração de coisas desagradáveis. Temos a resistência do supereu, quando não nos permitimos lembrar; resistência do eu, pela vergonha e pela evitação, e resistência do inconsciente. Não somos transparentes. É forte o desejo de não saber. Repetimos para resistir e repetimos para não lembrar do que queremos esquecer. Na verdade, a resistência é à simbolização, para evitar o encontro com o traumático e o real.

A repetição é o motor fundamental da pulsão. No texto Recordar, repetir e elaborar, considerado um dos melhores escritos clínicos de Freud ([1914] 1996), a recordação aparece como uma tendência do aparelho psíquico em se lembrar de acontecimentos penosos, no sentido tanto de se livrar deles, como de gozar (sofrer) com eles.

Todavia o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência (Freud, [1914] 1996, p. 201).

Em sua concepção de desejo, Freud se refere à repetição como uma tentativa malograda de repetir a experiência de satisfação e a marca deixada por ela, o que vai determinar nossas escolhas sexuais, amorosas e profissionais.

Temos, então, a repetição como resistência à recordação e como motor da transferência. O que escapa ao recordar [reproduzirem] aparece pela repetição [agirem] e como resistência atualizada na relação transferencial [neurose de transferência].

Transferência e repetição para Freud estão interligadas. Em 1920, com Além do princípio de prazer, ele faz uma virada com a pulsão de morte que rege a repetição [com-pulsão]. Analisando sonhos traumáticos e as brincadeiras infantis (For-Da), avalia que o material inconsciente não resiste, mas insiste, para que o recalcado apareça.

No Seminário 11, Lacan ([1964] 1988) coloca a repetição como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise ao lado da pulsão, do inconsciente e da transferência. A pulsão impõe a repetição, produto da pulsão de morte, que fixa o sujeito em seus pontos de gozo.

Lacan relaciona a repetição ligada à cadeia significante ao autômaton e o encontro com o real à tyché (encontro sempre faltoso).

Arlindo Pimenta (2020), em seu artigo A repetição e a transferência na teoria e na clínica psicanalítica, elucida a temática lacaniana do UM no Seminário 9: A identificação (Lacan, 1961-1962). Resumidamente, Lacan retoma Saussure e diz que o que distingue o significante é ser tudo o que os outros não são. Portanto, é como pura diferença que a unidade se constitui em sua função significante.

Lacan faz diferença entre o conceito de identidade na era teológica e na era linguística. Na era teológica temos A=A, que é garantido pelo Outro. Em Descartes, por exemplo, a identidade de ser e pensar é garantida por Deus. Na era linguística, ao contrário, A é diferente de A, dependendo da posição que ocupa na cadeia significante, pois o significante, como pura diferença, tem a propriedade de não ser idêntico a si mesmo. Sendo assim, como se dá a questão da unidade? A unidade teria duas funções: uma de identificação e outra de distinção. Como exemplo de distinção, temos a tosse de Dora, conhecida como traço unário [Einsig Zug]. Lacan generaliza esse conceito freudiano e o torna muito mais amplo e abrangente, colocando-o como base do ideal do eu. Na realidade, quando me identifico com um traço desse ideal, por efeito de imaginarização, me sinto igual ao outro.

Mas encontramos aqui um paradoxo. Esse traço da diferença, ou seja, se vários sujeitos se identificam com o mesmo traço distintivo, pode se tornar um traço de igualdade. É o que observamos, por exemplo, em adolescentes que, ao exibir tipos de cabelos ou vestimentas aberrantes para mostrar suas diferenças, se tornam iguais.

Assim, Lacan (1961-1962), no Seminário 9: A identificação, usa duas palavras em alemão para designar essa dupla função do S1.

  • Einheit: S1 como unidade, lei, norma, regra universal, que nos faz pensar na identificação ao pai em Freud.

  • Einsigkeit: Unicidade, traço distintivo, exceção, que nos lembra o segundo tipo de identificação de Freud, ampliada por Lacan.

Então, segundo Quinet (2013), passamos das virtudes da norma para as virtudes da exceção. O S1, como UM da exceção, é o traço distintivo do sujeito e é o que o representa para os outros significantes (S2). A repetição do S1 - traço da experiência de satisfação, já não é S1, mas o S2. Tentamos repetir a irrupção do gozo da primeira experiência de satisfação, mas nunca conseguimos. Essa repetição vai constituir a própria rede de significantes que fazem parte do inconsciente, organizando-se como saber inconsciente (S2).

O que pensar do S1 da ex-cliente adquirido por identificação com o Outro Primordial - mãe - e vivido projetivamente por ela, através da submissão masoquista ao Outro. Provavelmente como o pai?

Em toda escolha amorosa se encontra o fundamento narcísico da imagem (i) com seus mecanismos de identificação e projeção próprios do registro imaginário e também o registro real do objeto a que confere a dimensão de desejável ao parceiro (Quinet, 2013, p.134).

Ao lado do determinado do simbólico, há o indeterminado do real aquilo que escapa a todo atributo, qualidade ou adjetivo do parceiro, vinculado ao objeto a e a tyché.

Segundo Iannini (2019), a natureza é insuficiente para explicar a origem da atração sexual (Freud, [1920] 2019, p. 186). Inicialmente Freud aborda com Fliess a bissexualidade inerente ao ser humano. A teoria da polimorfia perversa das pulsões passa a dominar seu interesse nas investigações clínicas sobre a histeria e as fantasias sexuais. Em Uma criança é espancada, (Freud, [1919] 1996) se apoia na constituição bissexual dos seres humanos, e o motivo do recalcamento é a luta entre os dois caracteres sexuais.

O núcleo do inconsciente - o recalcado - seria, portanto em cada, ser humano, aquele do sexo oposto nele presente. No homem o que há de recalcado inconsciente pode remontar a moções pulsionais femininas, ocorrendo o inverso na mulher (Iannini, 2019, p. 191).

Para Freud ([1920] 1996, p. 187), a identidade sexual repousa “nos caracteres sexuais somáticos, o caráter sexual psíquico (posição masculina ou feminina) e o tipo de escolha de objeto”. Para Lacan, os S1 vão determinar a posição subjetiva do sujeito, ou seja, a escolha da neurose, a escolha de objeto e a escolha do sexo.

A função da análise não é abolir esses traços, esses uns (essain = enxame) mesmo porque isso é impossível. O que podemos alcançar na análise é a mudança de posição do sujeito referente a eles, atravessando essa repetição, que é a fonte de nossos sofrimentos.

Mas não é tão simples assim.

Referências

CORRÊA, I. A psicanálise e seus paradoxos: seminários clínicos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2011. [ Links ]

FINGERMANN, D. (org.). Os paradoxos da repetição. São Paulo: Annablume, 2014. [ Links ]

FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996. p. 159-183. (Ediçãostandardbrasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18). [ Links ]

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IANNINI, G. (org.). Caro Dr. Freud: respostas do século XXI a uma carta sobre homossexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M. D. Magno. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1988. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

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PIMENTA, A. C. A repetição e a transferência na teoria e na clínica psicanalíticas. Reverso, Belo Horizonte, ano 42, n. 80, p. 63-72, dez. 2020. [ Links ]

Recebido: 08 de Março de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

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