Diferentemente de Newton e de Schopenhauer,
seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto.
Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos.
Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.
Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois.
Jorge Luis Borges
Introdução
No texto O infamiliar, publicado em 1919, um ano após o fim da Primeira Grande Guerra, posteriormente aos escritos sobre metapsicologia, em especial, o narcisismo, e um ano antes de Além do princípio de prazer, Freud vai se debruçar sobre a palavra-conceito Unheimliche.
Freud propõe uma espécie de investigação estética. Segundo o artigo, os tratados estéticos, escritos até então, apenas tratavam de sentimentos belos, grandiosos, positivos. Freud ([1919] 2019, p. 29), entretanto, define estética como “doutrina das qualidades do nosso sentir”, incluindo nas experiências estéticas não apenas o belo e o sublime, mas também algo que nos causaria inquietação, angústia. É sobre essa estética da estranheza que o ensaio vai se ocupar em primeiro lugar.
A estreita relação entre arte e psicanálise é conhecida. Freud dizia que os poetas e os filósofos haviam descoberto antes dele o inconsciente. O que ele teria feito foi encontrar um método científico por meio do qual o inconsciente pudesse ser estudado. Mas devemos lembrar que Freud mesmo era um artista. Um escritor de primeira categoria, que teve o seu merecido reconhecimento ao receber o prestigioso Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt em 1930. Se Freud analisou psicanaliticamente as obras de arte, busca-se hoje interpretar a obra freudiana, sistematizando-a, dando-lhe novos matizes em uma contínua metalinguagem.
Em o Infamiliar, Freud ([1919] 2019) analisa várias obras da literatura em busca desse sentimento. Numa primeira aproximação, o ensaio vai dizer que o unheimlich diz algo sobre o aterrorizante, algo que suscita angústia e medo. Entretanto, nem sempre o uso desse conceito é empregado de forma rigorosa, de tal forma que o texto vai buscar um núcleo comum que justifique a utilização do termo, ou seja, diferenciar no interior do angustiante algo que seja infamiliar.
A primeira parte do artigo se ocupa da etimologia do termo representado por esse sentimento. A segunda parte analisa o conto O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann. Já a terceira tem como foco
[...] o papel da realidade e nas operações de retorno do recalcado, parece ter sido escrita em concomitância com as preocupações de Além do princípio do prazer (Dunker, 2019, p. 200).
De fato, é importante pontuar que o Infamiliar não se trata apenas de uma reflexão sobre a estética. Ele é o prenúncio de uma nova revisão teórica, que desemboca em uma nova teoria das pulsões.
No ensaio, já se começa a pensar alguns conceitos que serão lapidados futuramente, como a “compulsão à repetição”, germe do conceito de “pulsão de morte”, que irá aparecer em 1920, no texto Além do princípio de prazer. O Unheimlich enfatiza a dimensão pulsional da experiência da arte.
A estética que nasce de tal revolução teórica representa, então, uma perspectiva da criação despida da ilusão do belo, da harmonia e do bom (Medina, 2017, p. 291).
O sentido antitético das palavras
A palavra alemã unheimlich [infamiliar] é, a princípio, o oposto de heimlich [familiar]. Então, a primeira conclusão que se pode tirar é que algo seria assustador porque não seria conhecido ou familiar. Porém, nem tudo que é novo seria assustador nem infamiliar. A esse novo não familiar se deve acrescentar algo de modo a torná-lo infamiliar.
Freud faz um estudo comparativo entre os termos antagônicos heimlich e unheimlich. Segundo o dicionário alemão, heimlich seria aquilo pertencente à casa, não estranho, domesticado, familiar, aconchegante, caseiro. Porém, há uma segunda acepção de heimlich: aquilo que seria o escondido, mantido oculto, desconhecido.
Por sua vez, o unheimlich seria algo que provoca mal-estar, que desperta terrível temor, fantasmagórico. Chama-se unheimlich “o que deveria permanecer em segredo, escondido, mas veio à tona” (Freud, [1919] 2019, p. 43).
Para Freud, esse sentimento de estranhamento é o retorno do recalcado. Algo tão íntimo do sujeito que retorna e provoca angústia.
De acordo com a investigação da origem do termo, heimlich estaria ligado a dois grupos de representações que, sem ser contraditórios, são alheios um ao outro, quais sejam: o que é confiável, confortável e o que é encoberto, o oculto. O conceito unheimlich seria o oposto ao primeiro sentido do heimlich, não ao segundo.
Freud conclui que o familiar [heimlich]
[...] é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar/unheimlich. Infamiliar é, de certa forma um tipo de familiar (Freud, [1919] 2019, p. 47-49).
É interessante notar que há um precedente no texto freudiano de 1910 O sentido antitético das palavras primitivas. Trata-se de um escrito que teve como ponto de partida um trabalho do linguista Carl Abel. Segundo o linguista, foi observado que em algumas línguas primitivas existiriam várias palavras com acepções de sentidos opostos.
Estabelece-se, assim, uma analogia entre essas línguas e o funcionamento do sonho e do inconsciente,
[...] fornecendo o fundamento linguístico da tese de que a negação não opera no inconsciente. Uma nota sobre o tema foi introduzida na terceira edição de sua Interpretação dos sonhos (1911), precisamente no parágrafo em que Freud afirma que o sonho não conhece nem a oposição (Gegensatz) nem a contradição (Widerspruch) (Iannini; Tavares, 2019, p. 18).
O duplo: esse estranho familiar
Por meio da análise de vários exemplos da literatura fantástica, principalmente do século XIX, e baseado num artigo do psiquiatra alemão Ernst Jentsch, o ensaio vai buscar exemplos de processos e situações nos quais aparece esse sentimento do infamiliar.
O primeiro exemplo do artigo seria a “dúvida quanto a se um ser aparentemente vivo está inanimado e, ao contrário, se um objeto sem vida seria animado” (Freud, [1919] 2019, p. 49). Figuras de cera, bonecas artificiais e autômatos, manifestações de loucura e ataques epiléticos seriam exemplos desse tipo de infamiliar. Segundo Jentsch, um dos artifícios para despertar sentimentos infamiliares no leitor seria deixá-lo na incerteza de que ele teria diante de si, em determinada figura, uma pessoa ou um autômato.
Para muitos, o mais alto grau de infamiliaridade está associado à morte, aos cadáveres, ao retorno dos mortos. Racionalmente, sabemos que todos vamos morrer um dia, como na proposição encontrada em livros de lógica “todos os homens são mortais”. No inconsciente, entretanto, não existe a representação da própria mortalidade. Como ensinava o filósofo grego Epicuro, justificando por que não devemos temer a morte: “enquanto somos, a morte não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos de ser”; afinal, não podemos vivenciar a própria morte.
Esse medo primitivo é o sentimento do infamiliar que recobre “sob uma fina coberta” nossa relação com a morte.
Na medida em que quase todos nós, nesse ponto, ainda pensamos como os selvagens, não devemos nos admirar que o medo primitivo diante da morte seja, em nós, ainda muito poderoso e esteja pronto para se expressar, assim que algo venha ao seu encontro.
Provavelmente, ele conserva ainda o antigo sentido de que o morto se torna um inimigo do que sobrevive e pretende levá-lo e torná-lo um companheiro de sua nova existência. Poderíamos antes perguntar acerca dessa imutabilidade de nossa posição diante da morte, na qual permanece a condição do recalcamento, que é exigida para que o primitivo possa retornar como algo infamiliar (Freud, [1919] 2019, p. 89).
Outro sentimento de unheimlich, segundo Freud, seria o aparecimento do duplo, do sósia, do Doppelgänger, tema frequente na literatura e nas artes plásticas do século XIX. Nesse conceito, Freud inclui as imagens no espelho e nas sombras, espíritos protetores, doutrinas sobre a alma.
Citando Otto Rank, em seu texto O duplo, Freud ([1919] 2019, p. 69) diz:
Na origem, o duplo era uma garantia contra o declínio do Eu, um ‘enérgico desmentido do poder da morte’ e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo.
Em Dostoiévski, é frequente o tema do duplo, da loucura e dos ataques epiléticos (que ele mesmo sofria). Se em Crime e castigo, antes do advento da psicanálise, o escritor russo já havia feito um giro, ao demonstrar que a culpa pode vir antes do crime, com o tema dos duplos não foi diferente. Seus duplos provêm daqueles que povoam a literatura romântica alemã do século XIX. Contudo, o escritor russo faz aqui outro giro, demonstrando que
[...] os demônios não estão mais fora de nós, não chegam a nós vindos de fora, mas, ao contrário, habitam-nos (Chaves, 2019, p. 156).
Freud vai preconizar que essas formas duplas surgiram no campo do “amor por si mesmo”, o narcisismo primário, que domina a vida anímica das crianças e dos povos primitivos. O infamiliar, nesses casos, remete à concepção animista do mundo,
[...] que se caracterizava pelo preenchimento do mundo com espíritos humanos, pela supervalorização narcísica dos próprios processos anímicos, pela onipotência de pensamentos e pela técnica da magia construída a partir disso (Freud, [1919] 2019, p. 83).
Durante o desenvolvimento individual, somos atravessados por uma fase correspondente a esse animismo dos povos primitivos e
[...] não nos afastamos dela sem que ela nos legue restos e rastros capazes de expressão, de tal modo que tudo o que hoje nos aparece como ‘infamiliar’ é a condição para que esses restos da atividade psíquica animista ainda nos toquem e estimulem sua expressão (Freud, [1919] 2019, p. 85).
Com a superação dessa fase, tal como deuses que, após o declínio de sua religião, se convertem em demônios,
[...] os presságios do duplo se modificam, e de uma segurança quanto à continuidade da vida ele se torna o infamiliar mensageiro da morte” (Freud, 1919, p. 69).
O ensaio vai antecipar uma tese que será mais desenvolvida em Totem e tabu. Dunker (2019, p. 200) afirma:
O sentimento de infamiliaridade indicaria a persistência da onipotência de pensamentos, uma espécie de déficit de simbolização que remanesce na crença de que o pensamento possui poder causal sobre fatos do mundo.
O caráter demoníaco da repetição
Outro fenômeno unheimlich observado no texto seria a compulsão à repetição. O conceito foi elaborado desde seu artigo Lembrar, repetir e perlaborar (Freud, [1914] 2017).
Em O infamiliar, Freud nos fala do eterno retorno do mesmo e já reconhece que existe uma compulsão à repetição que está acima do princípio do prazer. Entretanto, aqui, por ora, a repetição não está vinculada à pulsão de morte.
No inconsciente anímico, é possível, de fato, reconhecer-se o domínio de uma incessante compulsão à repetição das moções pulsionais, a qual, provavelmente, depende da mais íntima natureza das pulsões, e que é suficientemente forte para se impor ao princípio de prazer, conferindo um caráter demoníaco a certos aspectos da vida anímica [...] o que se pode lembrar dessa compulsão interna à repetição pode ser sentido como infamiliar [unheimlich] (Freud, [1919] 2019, p. 79).
Com Além do princípio de prazer (1920), Freud ([1920] 2020) dá uma virada no conceito de repetição, que vai aparecer por meio da força pulsional, como uma com(pulsão) à repetição.
Garcia-Roza (1986, p. 24-25), em Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões, explica:
Só há ‘unheimlich’ se houver repetição. O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O unheimlich é uma repetição diferencial e não uma repetição do mesmo. Freud refere essa repetição à própria natureza das pulsões, ‘uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer’.
O estrangeiro
Jorge Luis Borges (1999, p. 49), em Ficções, nos propõe o seguinte enigma:
Numa charada cujo tema é o xadrez, qual seria a única palavra proibida?
Pensei um momento e repliquei:
- A palavra xadrez.
[...]
Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la.
Eliana Mendes (2019, p. 47) pontua que, paradoxalmente, o ensaio O infamiliar não fala dos estrangeiros.
Poder-se-ia levantar a hipótese de que esse assunto, que ele [Freud] vivenciou com tanto sofrimento, estaria subjacente a tudo que ele escreveu nesse artigo?
Segundo Renato Mezan (1989, p. 61-62) citado por Mendes (2019, p. 46), “Mahler disse certa vez que [Freud] era três vezes apátrida: como tcheco entre os austríacos, como austríaco no mundo germânico, e como judeu por toda parte”.
E o que é o estrangeiro, senão aquele que está longe de seu lar? Se, com a psicanálise, não somos senhores de nossa casa, então, a conclusão lógica seria que somos estrangeiros de nós mesmos.
Albert Camus, em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, publica O estrangeiro. O livro começa de uma maneira inquietante, infamiliar:
Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos”. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. (Camus, [1942] 2013, p. 15).
Poderíamos fazer um paralelo entre o título do livro de Camus e o ensaio de Freud. Assim como o Infamiliar, em que Freud se ocupou da questão gramatical da palavra “unheimlich”, aqui temos algo parecido. Em francês o título do livro de Camus é L’Étranger. Em português foi traduzido por O estrangeiro; em inglês foi publicado como The Stranger [O estranho] e The Outsider [O outsider, pessoa de fora de um grupo, excluído].
O dicionário Michaelis define étranger como:
É interessante notar que, em grego, segundo Freud, unheimlich é traduzido por estrangeiro ou estranho, ou seja, uma perfeita coincidência entre o infamiliar e o estrangeiro.
No livro, o protagonista Meursault, um argelino, por motivos não muito claros, mata um árabe em uma praia. No seu julgamento, ele atribuiu ao sol e ao calor o crime que cometera. Suas motivações, seu modo de agir não são muito compreensíveis. Não conseguimos entender bem o modo de pensar do protagonista. Ele parece apático, indiferente a tudo, e seu niilismo é desconcertante. Meursault é um exilado daquela sociedade, um inimigo da civilização, alguém que se recusa a interpretar seu papel social.
Ao final, o protagonista é condenado à morte pelo assassinato do árabe. Mas todo o seu julgamento se concentra no fato de que ele não chorou no enterro de sua mãe.
Em seu prefácio à edição norte-americana, Camus (2013, p. 215-216) citado por José (2015, p. 109, tradução livre) afirma:
Em nossa sociedade, todo homem que não chora no enterro da mãe corre o risco de ser condenado à morte’. Eu queria dizer apenas que o herói do livro é condenado porque ele não joga o jogo. [...] ele se recusa a mentir [...] Ele diz o que é, ele se recusa a aumentar seus sentimentos e logo a sociedade se sente ameaçada.
Poderíamos pensar nas várias formas em que Meursault é estrangeiro. Ele (assim como Camus) nasceu na Argélia, que, à época, era uma colônia francesa: um argelino que é, a rigor, francês. Meursault é estrangeiro porque não interpreta o papel social que a sociedade espera dele: ele não chora no enterro da mãe, não se arrepende do crime que cometeu; na prisão, não se converte em crente, apesar dos apelos do juiz no tribunal e do padre que vai visitá-lo.
Além disso, ele parece um homem alheio ao seu meio, estrangeiro de si mesmo.
O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz (Camus, [1942] 2013, p. 34).
Era como se quem tivesse cometido o crime não fosse Meursault, mas um estranho ser que o habitava. Indo mais fundo, tem-se a impressão de que esse árabe anônimo não é outro senão (uma parte) o próprio herói de Camus. Como o grupo de rock inglês The Cure, que fez uma releitura da obra por meio da música Killing an arab:
Staring at myself
Reflected in the eyes of
The dead man on the beach
I’m alive
I’m dead
I’m the stranger
Killing an arab1
Temos que levar em conta essa relação especular. Às vezes, dizemos, por exemplo, que não suportamos nossos vizinhos, como se “vizinho” fosse um termo absoluto. O meu vizinho só é meu vizinho porque eu moro ao lado. Sempre somos estranhos para os estranhos, sempre somos estrangeiros para outro estrangeiro.
No final do livro, a justiça foi feita. Meursault matou um estrangeiro. A sociedade retribuiu matando aquele que não chorou no enterro da mãe, outro estrangeiro. Condenou-o à guilhotina. O equilíbrio foi restaurado.
A máquina do psiquismo
Se existisse uma máquina do tempo, para que ano você gostaria de ir? Curiosamente, a maioria dos filmes que tratam sobre viagens no tempo se concentram no fato de o protagonista voltar ao seu próprio passado e tentar reescrever a sua história.
No filme Feitiço do tempo, de 1993, um rabugento repórter do tempo, interpretado por Bill Murray, que, a contragosto, é enviado por sua emissora de TV a uma pequena cidade americana para fazer uma matéria especial sobre o “dia da marmota”. Querendo ir embora da cidade o mais rápido possível, ele acaba ficando preso em uma armadilha temporal. Ele acorda toda manhã no mesmo dia, sendo obrigado a reviver os mesmos fatos num eterno loop demoníaco.
Condenado a viver infinitamente esse fatídico dia, ele é forçado a elaborar esse evento traumático. Se ele não pode alterar a realidade que o rodeia, ele pode alterar sua percepção sobre a realidade. Então, tal qual numa sessão psicanalítica, ele repete, repete, repete e elabora. No final feliz hollywoodiano, ele se vê satisfeito com sua profissão de repórter do tempo, satisfeito por estar naquela pequena cidade caipira e apaixonado pela produtora de TV. Conseguiu o ideal freudiano de “transformar a miséria neurótica em sofrimento comum”, podendo amar e trabalhar.
Já no filme espanhol Crimes temporais, de 2007, Héctor, o protagonista, está se mudando para uma casa nova no campo. Vale lembrar que heimlich vem de heim, que significa lar. Quando sua mulher sai para a cidade, ele se senta ao jardim de sua casa e olha, através de um binóculo, para uma floresta em frente ao seu quintal. Algo lhe chama a atenção: ele vê ao longe uma jovem desmaiada, completamente nua, e decide investigar. Ao se aproximar da estranha, ele é atacado por um homem com um rosto coberto de bandagens.
Héctor sai correndo desesperado em busca de ajuda e, para fugir do homem mascarado, entra numa casa misteriosa no meio da floresta, que, na verdade, é um laboratório, onde um cientista pede que ele se esconda de seu agressor em uma grande cuba cheia de água. Ao sair de lá, ele percebe que tinha voltado ao passado e que é o próprio homem que o persegue no futuro.
Aqui temos quase todos os elementos do infamiliar: a casa que não é familiar, a mulher desmaiada que não sabemos se está viva ou morta, o genital feminino, a repetição e o duplo perverso. Após inúmeras repetições e linhas do tempo que não dão tão certo assim, ele encontra uma saída aceitável, em que ele pode se salvar, em detrimento de seu Doppelgänger.
Em De volta para o futuro (1985), Marty Mcfly (Michael J. Fox) é, acidentalmente, mandado de volta para o ano 1955. Nesse ano, ele encontra sua mãe, que acaba se apaixonando por ele. Após idas e vindas, o protagonista logra que sua mãe se apaixone por seu pai.
Após a superação desse complexo de Édipo mal resolvido e com a ajuda de um cientista maluco (uma metáfora para um psicanalista?), que construiu a máquina do tempo, Marty pôde, finalmente, se livrar do passado e voltar para o futuro. Ao voltar, a primeira coisa que ele faz é encontrar sua namorada, ou seja, se o amor no passado era dirigido à sua mãe, hoje, é dirigido à sua namorada.
A psicanálise tem uma estreita relação com o tempo e o destino. Enquanto um dos conceitos e mitos fundadores da psicanálise, Édipo busca fugir de seu destino. Entretanto, quanto mais tenta fugir de sua tragédia, mais ele acaba indo ao seu encontro. Se o herói grego busca fugir do seu destino, nas histórias de viagens no tempo, o objetivo é enfrentá-lo, voltar ao passado para reinventar o próprio futuro. Vários roteiros de ficção científica seguem a lógica do tratamento psicanalítico: lembrar, repetir e perlaborar.
Como um Fort-da moderno, uma brincadeira infantil, a máquina do tempo busca transformar uma situação sujeita a causar desprazer, na qual o indivíduo é passivo, em uma situação em que ele tenha um papel ativo: ele, senhor de sua própria história.
Os filmes de ficção científica sobre o tempo produzem um sentimento do infamiliar, seja pela eterna repetição do mesmo, seja pelo encontro com seu duplo, seja pela persistência da onipotência de pensamentos, essa crença animista de que os protagonistas de tais histórias possuem poder causal sobre os fatos do mundo.
Tais histórias seriam uma alegoria para falar sobre a análise de nossa própria vida, o que fazemos sempre que nos deitamos no divã: voltamos no tempo e repetimos o passado e, não raras vezes, nos deparamos com o estranho, aquilo que suscita angústia e terror, o que deveria permanecer oculto, mas veio à tona. Fazemos isso porque acreditamos que nosso destino ainda não está escrito. Queremos ser roteiristas de nossa própria história. j