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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.85 Belo Horizonte jan./jun. 2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n85.11 

Artigo

Psicose e alucinação em Ivan Karamázov1

PSYCHOSIS AND HALLUCINATION IN IVAN KARAMAZOV

Thiago Silva Martins1 

Administrador de empresas. Pós-graduado em finanças e controladoria. MBA executivo em empreendedorismo

Úrsula Guimarães Dayrell2 

Candidata em formação psicanalítica no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG)

1Médico. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).

2Acadêmica de medicina do 12.º período da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG).


Resumo

Os autores fazem uma crítica literária psicanalítica tendo como objeto o recorte do conteúdo da obra Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, concernente ao personagem Ivan Karamázov. Na crítica analítica são trabalhados os conceitos freudianos de Bejahung e Verwerfung e as teorizações iniciais de Lacan acerca da psicose relacionadas ao significante Nome-do-Pai e à alucinação.

Palavras-chave: Psicose; Alucinação; Ivan Karamázov; Nome-do-Pai; Forclusão,

Abstract

The authors make a psychoanalytical literary criticism having as object the content of the work The Brothers Karamazov, by Fyodor Dostoevsky, concerning the character, Ivan Karamazov. In the analytical critique, the Freudian concepts of Bejahung and Verwerfung and Lacan’s initial theories about psychosis related to the Name-of-the-Father and hallucination are worked on.

Keywords: Psychosis; Hallucination; Ivan Karamázov; Name-of-the-Father; Foreclosure

Entre os personagens da obra-prima de Dostóievski Os irmãos Karamázov, Ivan Karamázov tem rica construção psicológica por apresentar fenômenos psíquicos a serem investigados sob o olhar do saber psicanalítico trabalhados neste artigo, com base nos conceitos freudianos Bejahung e Verwerfung e nas teorizações iniciais de Lacan acerca da psicose relacionadas ao significante Nome-do-Pai e à alucinação.

Terry Eagleton (1983, p. 268-269), filósofo e crítico literário inglês contemporâneo, inclui a crítica literária psicanalítica em seu livro Teoria da literatura: uma introdução, tendo como possíveis objetos de análise o autor da obra, o conteúdo, a construção formal ou o leitor. Apesar de Eagleton salientar que os dois primeiros tipos podem ser limitados porque frequentemente resultam em generalizações ou reducionismos, a fertilidade elucidativa de uma análise ponderada não deve ser desprezada.

O próprio Freud ([1928] 1927] 1969, p. 183), que teve como objeto de análise o artista criador da obra em questão Fiódor Dostoiévski, reconhece os limites desse trabalho analítico: “Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas”.

O personagem Ivan Karamázov é o primeiro filho do segundo casamento de Fiódor Pávlovitch Karamázov com Sófia Ivánovna, que geraram também seu irmão caçula Alieksiêi, quatro anos mais novo. Dimitri, seu outro irmão, quatro anos mais velho, único filho do primeiro casamento de Fiódor com a bela e inteligente Adelaída Ivanovna, mulher rica e nobre, que logo após abandonar o marido, fugiu com um pobre seminarista e faleceu, quando Dimitri tinha apenas três anos de idade.

Iniciemos a história de Ivan com o patriarca da família Fiódor Karamázov, sujeito bronco e extravagante, fazendeiro insignificante até se casar por interesse financeiro com Adelaída, filha de fazendeiro rico, de quem surrupiou o dote concedido pela nobre família. Fiódor, camarada reles e lascivo, voluptuoso, amante de bebedeiras e orgias, vivia em devassidão mesmo durante seus casamentos, se envolvia com qualquer mulher que o atraísse, desde que apresentasse beleza rude.

Segundo o narrador, Fiódor “era senão um palhaço perverso e nada mais” (Dostoiévski, 2008, p. 18), pois adorava galhofar de si mesmo diante dos outros, se fazer de ridículo. Além disso, era um sujeito que sabia fazer negócios, e sempre se utilizava de baixezas para se dar bem. Imediatamente após a morte da primeira esposa, Fiódor abandonou seu filho Dimitri, primeiro o ignorou completamente, indiferente à presença da criança dentro de casa, depois o entregou ao seu criado, e pouco mais tarde concedeu a tutoria do menino a um primo riquíssimo e culto de Adelaída.

Assim que Fiódor se livrou do filho Dimitri, conheceu a mãe de Ivan, uma órfã de dezesseis anos, de beleza extraordinária, residente em outra província, a quem convenceu, em ato perverso, como à sua primeira esposa, a fugir consigo. Sófia já não tinha família desde sua infância, fora criada e educada por uma velha carrasca, viúva de um general, em casa rica. A viúva tiranizava Sófia, censurando-a duramente, exigindo que realizasse todos os seus caprichos. Fiódor aproveitou-se dessa situação para persuadir Sófia a escapar da velha e foi bem-sucedido. O casamento do casal era uma verdadeira balbúrdia, pois Fiódor, aproveitando-se da humildade e submissão de Sófia, mantinha relações sexuais com mulheres de vida fácil, promovia verdadeiros bacanais dentro da própria casa, na presença da esposa, pisoteando “até o mais costumeiro decoro conjugal” (Dostoiévski, 2008, p. 26).

A respeito de Sófia e de seu tenebroso casamento com o libertino Fiódor, diz o narrador:

É muito, muito possível que ela nem mesmo tivesse se casado com ele por nada nesse mundo se houvesse se inteirado a tempo de mais detalhes a seu respeito (Dostoiévski, 2008, p. 24).

A mãe de Ivan, desde o início de seu relacionamento conjugal, não apresentava respeito nem desejo por Fiódor, e sim uma submissão e repulsa recheada de desgosto. Sófia, diante de tamanha humilhação conjugal, é acometida por terríveis ataques histéricos. Ela se manteve até o oitavo ano de seu casamento - ocasião de sua morte - submissa à lei desmedida de Fiódor, lei do “pai primevo”,2 se pronunciando contra tal devastação apenas metaforicamente através de sintomas nervosos.

Após a morte de Sófia, Fiódor, assim como agiu com Dimitri, abandona as crianças, Ivan com sete anos e Alieksiêi com quatro anos de idade, à completa indiferença. Mas dados três meses da morte de Sófia, a sua educadora e carrasca, a velha viúva - que se afastou em fúria durante os oito anos de casamento entre Sófia e Fiódor -, resgata os dois meninos para viverem com ela, no entanto morre em seguida. Os garotos foram entregues então ao principal herdeiro da viúva, o nobre Iefim Pietróvitch Poliónov, homem honesto e íntegro que, segundo o narrador, “humaníssimo” (Dostoiévski, 2008, p. 28), primou pela educação e instrução de Ivan e Alieksiêi.

Desde a infância Ivan já apresentava aptidões fora do comum para os estudos. Aos treze anos foi estudar em um colégio interno moscovita sob a tutela de um genial amigo de Iefim. Vale destacar que em sua adolescência Ivan era, segundo o narrador, um garoto triste, melancólico e ensimesmado, voltado para os próprios pensamentos. Ao terminar o colegial, Ivan ingressou na faculdade e, passados dois anos de estudos, sofreu dificuldades financeiras. Escreve Dostoiévski (2008, p. 29):

Cabe observar que na ocasião ele não quis nem tentar escrever ao pai, talvez por orgulho, por desprezo, mas é também possível que levado por um raciocínio frio e judicioso, que lhe sugeria que do paizinho não receberia nenhum apoio minimamente relevante.

Trabalhou inicialmente, quando ainda estava na universidade, dando aulas e em seguida escrevendo artiguinhos para jornais, os quais assinava “Uma testemunha”. Próximo de se formar, Ivan escreveu um artigo a respeito dos tribunais eclesiásticos, de ampla repercussão. Escreveu também um poema chamado O grande inquisidor, cuja história é o retorno de Jesus à Terra, capturado imediatamente pelo inquisidor, que o excomunga utilizando-se de argumentos inteligentes sobre “o milagre, o mistério e a autoridade” (Dostoiévski, 2008, p. 354), apontando os equívocos e os fracassos de Jesus.

É interessante observar que o pai de Ivan o ignorara durante toda a vida e temia que um dia lhe viesse solicitar dinheiro. Aos vinte e quatro anos Ivan retorna ao povoado onde moram seu pai e seus irmãos. Dimitri, formado militar, era fanfarrão e lascivo como o pai, com quem vivia em guerra por causa de sua herança, que julgava afanada por Fiódor, e Alieksiêi, que era seminarista em formação. Ivan fora separado de Alieksiêi quando se mudou para o colégio interno, aos treze anos de idade, e desde então vira Alieksiêi apenas uma vez. Após pouco tempo da chegada de Ivan ao povoado, seu pai é assassinado brutalmente, e seu irmão Dimitri era o principal acusado, ou seja, um suposto parricídio, o que deixara Ivan perturbado.

Tanto Catierina - noiva de Dimitri, com quem Ivan mantinha uma relação amorosa não consumada, quanto Aleksiêi, vinham sentindo certa estranheza nas atitudes de Ivan após a morte de seu pai, sugerindo que fora acometido por uma doença, a loucura. Em um encontro entre Ivan e Alieksiêi, este, preocupado com a saúde mental do irmão, diz: “Quem matou nosso pai não foste tu” (Dostoiévski, 2008, p. 779). Diante deste dito, Ivan, dominado por pensamentos angustiantes relacionados ao assassinato do pai, realiza três visitas a Smerdiakóv, seu suposto irmão bastardo, filho de Fiódor e Lizavieta Smierdiáschia, considerada uma “idiota” por dificuldades com a fala e viver suja e descalça vagando a esmo pelo povoado. Lizavieta falece durante o parto de Smerdiakóv aos fundos da casa de Fiódor. Smierdiakóv fora educado pelo criado de Fiódor e se tornara criado do Karamázov também.

Durante a terceira visita, Smierdiakóv diz a Ivan: “o senhor é o principal e único assassino em toda essa história, enquanto eu não passo de um colaborador secundário, mesmo tendo sido eu quem o matou” (Dostoiévski, 2008, p. 811), sugerindo que fora apenas o cúmplice de Ivan no assassinato de Fiódor. Faz-se necessário aqui um adendo: Ivan, pouco antes da morte de seu pai, encontra-se com Smierdiakóv, que lhe sugere sair da cidade, premeditando, diante de um contingente de fatos relacionados à família Karamázov, que algo horrível aconteceria ao seu pai; então, Ivan deixa o povoado, retornando apenas após a notícia do assassinato de seu pai.

Retomando o diálogo da terceira visita de Ivan a Smerdiakóv, este explicita que a viagem de Ivan foi a anuência para cometer o premeditado crime: “ainda assim o senhor tem toda a culpa, porque sabia do assassinato e me incumbiu de matar e, sabendo de tudo, partiu” (Dostoiévski, 2008, p. 811).

A respeito desse momento fulcral na vida de Ivan, diz o narrador:

[...] naquela tarde, ele estava justamente na véspera de ser acometido de uma perturbação mental que acabaria se apossando inteiramente de seu organismo já de longe abalado, mas dotado de tenaz resistência a doenças (Dostoiévski, 2008, p. 820).

Ivan então alucina o diabo:

És minha alucinação. És a encarnação de mim mesmo, mas, pensando bem, somente de uma parte de mim... de minhas ideias e sentimentos, e só os mais abjetos e tolos (Dostoiévski, 2008, p. 824).

Há um dito de Ivan ao diabo que merece ser destacado:

Tudo o que em minha natureza há de estúpido, que há muito tempo já experimentei, triturei em minha mente e lancei fora como carniça, tu me apresentas como se fosse alguma novidade (Dostoiévski, 2008, p. 839).

Esse dito enseja o que Freud apresenta e Lacan incrementa a respeito da estruturação da psicose e seus fenômenos alucinatórios: o que é rejeitado no simbólico retorna no real.

Freud ([1911] 1996, p. 78) em Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia formula a ideia de que, na psicose, haveria o retorno de fora (alucinação) do que fora rejeitado internamente:

Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora.

Lacan ([1954-1955] 1986), em seu Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud, elabora os conceitos freudianos de Bejahung e Verwerfung como operadores elementares na estruturação psíquica da neurose e da psicose. A Bejahung seria uma “afirmação” que introduz o sujeito à dinâmica simbólica: “a condição para que alguma coisa exista para o sujeito, é que haja Bejahung” (Lacan, [1953-1954] 1986, p. 73). E a Verwerfung, como uma “rejeição”, a “recusa” a essa introdução. Ambas se relacionam ao que Freud teorizou como “recalque primário”, diz Lacan ([1953-1954] 1986, p. 56):

Na origem, para que o recalque seja possível, é preciso que exista um para além do recalque, algo de derradeiro, já constituído primitivamente, um primeiro núcleo do recalcado, que não só não se revela, mas que, por não se formular, é literalmente como se não existisse.

A Bejahung seria a “afirmação” para além do recalque, que possibilitaria as operações de recalques secundários a ela estruturando, assim, a neurose. Então, Lacan ([1953-1954] 1986, p. 73) lança a questão:

O que é que se passa quando essa Bejahung não se produz e quando nada é, pois, manifestado no registro simbólico?

O que não é afirmado no plano simbólico apresenta-se como um “real primitivo”: “o que não é reconhecido [símbolo] faz irrupção na consciência sob a forma de visto” (Lacan, [1953-1954] 1986, p. 73).

Lacan ([1953-1954] 1986, p. 138) enseja a estrutura psicótica: Veremos que poderia ser num irreal simbólico ou num simbólico marcado de irreal, que se situa a estrutura própria do psicótico. E apresenta sua perspectiva a respeito da alucinação: Há na psicose alucinatória crônica do adulto uma síntese do imaginário e do real, que é todo o problema da psicose (Lacan, [1953-1954] 1986, p. 125).

No Seminário 3: As psicoses, Lacan formula a psicose pela teoria da linguagem como uma falha na simbolização primordial, em que a Verwerfung é o operador lógico da psicose:

Previamente a qualquer simbolização - essa anterioridade não é cronológica, mas lógica - há uma etapa, as psicoses o demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização não se faça (Lacan, [1955-1956] 1988, p. 97).

Em seu texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan ([1958] 1998, p. 582) acrescenta que, na psicose, o que sofre a Verwerfung3 na estruturação do psiquismo é o significante Nome-do-Pai:

É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose.

Explica a importância do significante Nome-do-Pai, no Seminário 5: As formações do inconsciente, “no que ele funda como tal o fato de existir a lei” (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 153). É somente por meio desse significante que o sujeito pode articular os demais significantes para produzir um efeito de significação, operação que ocorre na neurose, mas que falha na psicose.

No caso de Ivan, infere-se que Fiódor, figura de referência paterna até os sete anos, por estar indiferente a essa função e implicado em sua vida de devassidão, luxúria e trapaças, não promoveu a Bejahung do Nome-do-Pai, isto é, a afirmação que possibilita o recalque primário, deixando, então, o personagem sob a égide da Verwerfung.

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan ([1958] 1998) aponta o papel da mãe no fortalecimento ou enfraquecimento do significante Nome-do-Pai. Insiste na relevância de compreender como se dá o arranjo relacional entre os pais e entre as palavras do pai e da mãe:

A importância que ela (a mãe) dá à palavra dele (o pai) - digamos com clareza, a sua autoridade -, ou em outras palavras, do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei (Lacan, [1958] 1998, p. 585).

No caso da mãe de Ivan, por não apresentar respeito nem desejo por Fiódor e sim uma repulsa recheada de desgosto, não reserva uma condição propícia ao estabelecimento do Nome-do-Pai.

A falta do Nome-do-Pai, segundo Lacan (1957-1958/1998), é a condição essencial para a psicose, mas não sua causa. A psicose se origina apenas no momento em que o psicótico é convocado a responder de um lugar que não dá conta, onde lhe falta o recurso simbólico para lidar com tal situação, como ocorreu com Ivan ao ser acusado por seu irmão bastardo de ser o assassino de Fiódor - mesmo não o sendo -, momento da obra em que Ivan começa a alucinar com o diabo.

Ao se referir à alucinação, Lacan diz que “o que foi rejeitado do simbólico reaparece no real”4 (Lacan, [1955-1956] 2002, p. 57). Essa manifestação do reaparecimento na realidade psíquica de algo que não foi simbolizado, se mostra na alucinação de Ivan, inicialmente, com a descrição do narrador sobre o diabo como um tipo de “parasita, gentleman de bom caráter” (Dostoiévski, 2008, p. 822), solitário “talvez com filhos, mas seus filhos são sempre educados em algum lugar distante” (Dostoiévski, 2008, p. 823) e que “tem absoluta aversão a qualquer incumbência que porventura lhe imponham” (Dostoiévski, 2008, p. 823). Tais significantes se assemelham às características de Fiódor, retornando na alucinação personificada no diabo.

Lacan (1957-1958/1998) esclarece que o significante que retorna na alucinação não se dá ao acaso, mas a partir da própria cadeia significante rompida do psicótico. Fica assujeitado aos efeitos de sua própria cadeia percebida, não é agente nem unificador, ao contrário, está subordinado ao efeito do percebido como um duplo, no caso de Ivan, o diabo. Com isso, Lacan, desloca a importância dada à investigação fenomênica da alucinação - se a voz alucinada vem de dentro da cabeça ou se vem do exterior -, para a apreensão da certeza psicótica diante da alucinação, seu caráter impositivo, inabalável e sobretudo a forma como o psicótico reage a ela.

Seguindo essa proposição, no que tange à reação de Ivan diante da alucinação, ele se mostra irritado e incomodado, dirige-se ao diabo como “Asno” (Dostoiévski, 2008, p. 829), “Tolo” (Dostoiévski, 2008, p. 829), “Imbecil” (Dostoiévski, 2008, p. 824) e “Lacaio” (Dostoiévski, 2008, p. 825). Sente-se perseguido pelo diabo - “ficarás aqui em casa por muito tempo? Não podes ir embora? - exclamou Ivan quase desesperado” (Dostoiévski, 2008, p. 828), e ainda, “tu me martelas no cérebro como um pesadelo obsessivo, contigo sinto tédio, é insuportável e angustiante! Daria qualquer coisa para te escorraçar! (Dostoiévski, 2008, p. 837). Intima, embora sem sucesso, que o diabo cesse o falatório, ou vá embora.

Ivan tenta combater fisicamente os efeitos da alucinação sobre si ao colocar toalha molhada em sua fronte, ao tapar fortemente os ouvidos, ao andar de um lado para o outro, inclusive, ao arremessar um copo contra a imagem do diabo. Todas as tentativas se mostram inúteis diante do caráter impositivo do diabo em sua realidade psíquica.

Apesar de tentar contestar a realidade do diabo durante certo tempo, Ivan passa a assentir progressivamente a alucinação como real, até que no julgamento do assassinato de seu pai já está tomado pela certeza inabalável de suas ideias delirantes. Em depoimento, perante o presidente da sessão, declara e acredita ser o parricida, mesmo não o sendo. Entretanto, sua única testemunha é: “O de rabo, Excelência, fora do figurino!” (Dostoiévski, 2008, p. 890) “na certa ele está por aqui, ali debaixo da mesa de provas materiais, onde ele poderia estar senão lá” (Dostoiévski, 2008, p. 890).

Ao retomar elementos literários da obra Os irmãos Karamázov que conotam a relação de Ivan com o Nome-do-Pai, pode-se escandir: o desgosto da mãe ante o pai; a melancolia e ensimesmamento na adolescência; o pensamento de que do pai não receberia nenhum apoio financeiro; a escrita do Grande Inquisidor (excomunhão de Jesus); a assinatura de seus artigos como “Uma testemunha” em vez/no lugar de seu nome próprio; a alucinação com o diabo; e o delírio de ser o assassino do pai. Conclui-se que esses acontecimentos da história de Ivan sugerem uma estrutura psíquica marcada pela foraclusão do Nome-do-Pai, pois Fiódor, com seu comportamento lascivo e sem limites, não se posiciona simbolicamente como um significante barrador responsável pela organização da estrutura simbólica, e sim como o representante do caos, do “tudo é permitido” promulgado pelo diabo. (Dostoiévski, 2008, p. 840).

A esse respeito, explica Quinet (2006, p. 16):

Sendo o Nome-do-Pai o significante que permite ao sujeito entrar na linguagem e aí articular sua cadeia de significantes, a não inscrição deste significante no Outro acarreta aquilo que é para Lacan a marca essencial da psicose: os distúrbios da linguagem e, em particular, a alucinação.

A análise desse recorte nos contenta não só pela forma como a crítica literária psicanalítica foi tecida, um enlace entre os conceitos e a rica história de Ivan, mas também com a ilustração quase clínica que esse personagem faz de uma parte da teoria psicanalítica acerca da psicose e da alucinação.

Freud ([1928/1927] 1996, p.183) em seu texto Dostoievski e o parricídio afirma que “Os irmãos Karamázov são o mais grandioso romance jamais escrito” e, assim, entendemos que dentro dessa grandiosidade nos encontramos longe de esgotar a ponte entre o personagem literário e a psicanálise. A obra é a fonte quase inesgotável para escritos. j

2 Totem e tabu (FreuD, 1912-1913): Pai primevo da horda, que tem relações sexuais com todas as mulheres da horda.

3 “A Verwerfung será tida por nós, portanto, como forclusão do significante” (LACAN, [1958] 1998, p. 564).

4 O “real”, neste momento do ensino de Lacan, representa a realidade psíquica.

Referências

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QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. [ Links ]

Recebido: 08 de Março de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

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Nosso agradecimento ao Dr. Breno Ferreira Pena pelo grupo de estudo do Seminário 3: As psicoses, de Lacan.

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