Introdução
Quando se fala em sublimação, normalmente nos deparamos com questões complexas: se não há uma sublimação plena, como explicar seus limites? Outra pergunta que se impõe é: a semelhança entre a concepção de objeto transicional, de Winnicott, com o processo de sublimação em Freud poderia levar a reflexões sobre os limites da escrita? Essas perguntas nos levam a retomar pesquisas de alguns teóricos que já estudaram esse conceito, principalmente Birman (2008) e Rivera (2007).
No estudo Criatividade e sublimação, Joel Birman (2008) tenta estabelecer semelhanças e diferenças entre o conceito de sublimação em Freud e a noção de objeto transicional em Winnicott, destacando a inserção do sujeito na cultura. Para Winnicott (1975), o objeto transicional, que ocupa um espaço intermediário entre o mundo interno e externo do bebê, pode ser eficaz quando este brinca na ausência materna. Esse mesmo objeto pode também não funcionar, petrificando-se, no caso da ausência da mãe, levando o infante a não brincar. Nossa proposta é levantar a hipótese de que há uma semelhança entre os fracassos da fantasia no jogo da criança, quando não brinca com o objeto transicional, com os limites da sublimação na escrita de alguns autores. Na esteira de Birman (2008), nosso percurso começará com Freud, que faz uma travessia da dessexualização para a erotização tendo em vista o conceito de sublime. Em seguida, apresentaremos a concepção de objeto transicional em Winnicott. Finalmente levantaremos a hipótese de que a escrita possa ser considerada um objeto transicional, seja esse objeto bem-sucedido ou não.
Freud: da dessexualização para a erotização
Conforme aponta Birman (2008), o conceito de sublimação tem uma relação estreita entre o abjeto e a noção de sublime no imaginário cultural do século XIX. Esse conceito esteve sob a tensão de dois discursos: o medieval e o discurso estético do século XVIII. No primeiro, a pulsão sexual passaria diretamente de uma solidez - no caso o abjeto - para uma produção sublime, acompanhando a teoria alquímica da época. No segundo, o sublime passou a ser o oposto da noção de belo na arte. É nesse segundo discurso, via Kant, que a estética se firmou na modernidade. No belo haveria traços de eroticidade, o que não ocorreria no sublime. É nessa abordagem que Freud se baseia em seus primeiros estudos quando toca de modo pontual no conceito de sublime. Esse enfoque está presente em A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos (1908/1996), texto que recalcava a pulsão sexual, em decorrência de um contexto que trazia ainda resquícios dos valores medievais cristãos. Nota-se aí uma visão negativa da sublimação, conforme defende Birman (2008). Já no artigo O mal-estar na civilização (1930/1996), a sublimação é vista por Freud como um efeito da pulsão de vida contra a pulsão de morte, tendo assim uma conotação positiva. Freud, nessa obra de 1930, passa a considerar a sublimação e a erotização no mesmo plano. Erotizar seria apostar na pulsão de vida e dominar a pulsão de morte. Nesse sentido, a sublimação não está mais ligada à dessexualização. Valorizar a pulsão de vida já não significa reprimir a sexualidade no processo sublimatório:
[...] Já em Mal-estar na civilização a sublimação resulta do trabalho da pulsão de vida contra a pulsão de morte (Birman, 1978), ou seja, erotizar e sublimar deixam de se opor, como na primeira versão freudiana do conceito de sublimação, na qual estava implícita a dessexualização da pulsão de vida (Birman, 2008, p. 20).
Também no jogo do fort-da, continua o pesquisador, Freud garante que a pulsão de vida prevalece sobre a pulsão de morte. Há nesse brinquedo uma semelhança com o conceito de objeto transicional em Winnicott. Através da repetição, a criança, no jogo do carretel, sai da passividade para a atividade, sublimando o abandono da mãe.
Winnicott e o objeto transicional
Winnicott argumenta que o objeto transicional representa a transição do bebê de um estado de fusão com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado (Winnicott, 1975, p. 30).1 O autor inglês faz uma proposta significativa ao relacionar o espaço interno com o externo questionando a oposição entre eles, como era frequente em enfoques de alguns pesquisadores da época. Convém salientar, pontua Birman (2008, p. 14), que Freud não aceitava essa oposição entre o interno e o externo, fugindo assim de uma visão unilateral, como se pode constatar na definição que ele dá do conceito de pulsão, que oscila entre o somático e o psíquico.
Para Winnicott, ao manipular o objeto transicional, a criança teria a ilusão de ter forjado esse objeto em sua atualidade e este, para ela, não seria autônomo. Essa experiência dá ao bebê uma potência de ser, o que faz com que ele tenha a ilusão de criação do objeto. Esse processo só teria sucesso se houvesse a presença efetiva de uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott apud Birman, 2008, p. 15). O pesquisador inglês vai mais longe ao afirmar que “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo” (Winnicott, 1975, p. 80, grifo nosso).
Birman, na esteira de Winnicott, mostra que, na clínica, haveria também um espaço ocupado pelo objeto transicional na relação entre analista e analisando. Caberia ao primeiro trabalhar esse espaço com o segundo, a fim de que este adquira uma segurança ontológica. Para o psicanalista inglês, alguns analisandos não teriam adquirido, ao longo de sua história, a experiência. de sonhar e de brincar, já que a mediação entre a subjetividade e a realidade externa, operadapelo objeto, ficou inibida ou paralisada. Neles existiria uma dissociação no campo psíquico e não um recalque. Em outros termos, haveria nos analisandos uma fragmentação psíquica sem uma ligação entre os elementos dissociados, enfim, uma precariedade no ato de fantasiar e de sonhar. Isso ocorreria, como foi afirmado, devido a uma falha na área intermediária ocupada pelo objeto transicional. Tal falha seria causada pela figura de uma mãe que não chegou, pela sua ausência, a produzir um sentimento de segurança no bebê. A consequência disso seria a perda de plasticidade do objeto transicional pelo infante. Para Winnicott (1975)apudBirman (2008, p. 16-17, grifos do autor), essa perda poderia estar presente em experiências de fetiches e de uso de drogas. Trata-se de experiências com um fundo depressivo e melancólico.
A partir das propostas de Freud e de Winnicott sobre o ato de sublimar, Birman conclui seu artigo afirmando que, entre esses dois psicanalistas, embora haja uma concepção diferente de sublimação, existe um ponto em comum: a inserção do sujeito na cultura, como já foi afirmado anteriormente. Além disso, tanto em Freud quanto em Winnicott haveria a presença do jogo. Em Freud, através da repetição do ir e vir do carretel para sublimar a ausência da mãe; em Winnicott, por meio do objeto transicional, como instrumento lúdico para sublimar a ausência materna. Segundo Winnicott, essa ausência pode ser real ou afetiva. A mãe pode estar presente, mas ausente em termos emocionais.
A escrita como objeto transicional
A partir do conceito de objeto transicional em Winnicott e do jogo do carretel em Freud, tendo como suporte teórico o texto de Birman (2008), lançamos aqui a hipótese de que a escrita poderia ser uma espécie de variante do objeto transicional.
Na clínica, o objeto transicional parece estar no espaço entre o analista e o analisando, como foi apontado anteriormente. O primeiro transcreve e transcria inscrições do inconsciente do segundo, acrescenta algo de seu inconsciente, possibilitando ao analisando a construção de uma nova subjetividade. Na escrita literária parece ocorrer processo semelhante. O escritor também ocupa essa posição de intervalo entre o espaço interno, sua subjetividade, e o externo. Nesse espaço “entre”, ele imprime vivências, recria memórias e experiências pessoais, dialogando com arquivos inscritos em seu inconsciente, tecendo-os com a realidade externa. Há, no entanto, uma diferença. Enquanto na clínica existe uma preocupação em levar o analisando a conviver com seu sintoma de forma menos traumática, restringindo o imaginário, na escrita literária, o escritor possibilita experiências de mundo, permitindo ao leitor mergulhar no registro do imaginário e voltar com uma experiência mais rica ao plano do simbólico. Assim, escritor e analista funcionam como arquivistas da palavra, isto é, mediadores de um arquivo em constante modificação. Vale ressaltar que a palavra “arquivo” deve ser pensada como memória e esquecimento, como algo privado e ao mesmo tempo público, seguindo a proposta de Derrida (2001, p. 12).
Nessa linha de escrita e arquivo, é possível ver a relação do livro como objeto transicional, como propõe Silva (2021, p. 223):
[...] Logo, o que propomos aqui como conclusão é que um livro pode ocupar o papel do objeto a que Winnicott se referia por objeto transicional. Não nos referimos, todavia, apenas àquele primeiro objeto transicional a que Winnicott aludiu em seus primeiros exemplos - um pano, pelúcia ou qualquer objeto a que um bebê se apega -, mas sim a uma possibilidade de expansão do conceito para todo brinquedo ao qual uma criança (de qualquer idade) se apega e que a auxilia a interagir com a cultura em que se insere e a experimentar os limite sentre as realidades internas e externas através do brincar (grifo nosso).
Acompanhando a hipótese deste pesquisador, perguntamos: tal objeto poderia levar não só o leitor mas também o escritor a lançar mão da narrativa como um espaço intermediário entre a realidade psíquica e o mundo externo, funcionando como borda diante do real? Umberto Eco (1994) defende a relação entre o ato de ler e o de brincar como atividades intermediárias para a criança se familiarizar com “coisas que aconteceram, acontecem e acontecerão no mundo real”:
Passear por um mundo narrativo tem a mesma função que desempenha o brincar para uma criança. Crianças brincam com bonecas, cavalos de madeira ou pipas, para se familiarizarem com as leis físicas e com as ações que um dia deverão levar a cabo seriamente. Da mesma forma, ler histórias significa jogar um jogo através do qual se apreende a dar sentido à imensidade de coisas que aconteceram, acontecem e acontecerão no mundo real. Ao ler romances, eludimos a angústia que nos agarra quando tentamos dizer algo verdadeiro sobre o mundo real. Essa é a função terapêutica da narrativa e a razão pela qual os homens, desde as origens da humanidade, contam histórias. É por fim, a função dos mitos: dar forma à desordem da experiência (Eco, 1994 apudSilva, 2021, p. 212).
Sabemos que todo escritor é leitor de si mesmo e de outros autores. Assim, não só o ato de ler, mas também o de escrever poderiam ser utilizados como brinquedos no processo de ficção. Vale ressaltar que tanto Umberto Eco (1994) quanto Silva (2021) e vários escritores apostam no recurso positivo da sublimação e isso é uma verdade, mas não pode ser entendido de forma absoluta. Nem sempre a narrativa tem função terapêutica, como propõe Eco. Voltaremos a essa questão nos parágrafos seguintes.
Sabe-se que alguns artistas fazem de sua escrita um instrumento para driblar a morte. Clarice Lispector (1978) afirma: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria vida”. O processo de escrever supõe uma criação, mas também uma perda, isto é, o escritor faz uso da linguagem, sempre precária, na representação dos afetos, reinventa um jogo de significantes cujo resultado é o texto. Situação semelhante ocorre no caso da criança, quando na ausência da mãe, cria um novo objeto:
[...] a sublimação implica a criação de um novo objeto para a pulsão, a ser encontrado por meio de experiências de ligação e repetição, tal como revelado no jogo infantil (Birman, 2008, p. 24, grifo nosso).
Acontece que esse jogo pode malograr. No caso do artista, há “falhas” no processo de criação, como propõe Rivera (2007), comentando sobre a produção estética de Duchamp:
O artista, como nota Duchamp ao falar do ato criador em conferência de 1957, não é capaz de descrever objetivamente as decisões que toma durante o processo de criação de uma obra, e não detém ‘papel algum no julgamento do próprio trabalho’ (Duchamp 1, p. 198). Há necessariamente uma “falha”, uma “inabilidade” do artista, ainda segundo Duchamp, em “expressar integralmente sua intenção”, e é nesse descompasso entre o que intenciona fazer e o que realmente produz que residiria o ‘coeficiente artístico pessoal’ contido na obra (Duchamp 1, p. 189). Se tal coeficiente é “pessoal”, ele despersonaliza, ele é uma medida de estranheza a que se vê submetido o criador ao realizar uma obra, justo o contrário de uma confirmação de sua identidade (Rivera, 2007, p. 322, grifo nosso).
Nem sempre a sublimação é bem-sucedida, como propõe Carvalho (2006, p. 4), ao estudar os limites da sublimação na escrita literária:
O cenário da criação literária é cercado de riscos, não apenas porque o que se pretende, ao que tudo indica, é ir além dos limites da linguagem, devassando-os, mas também por causa da natureza do afeto que, se não mobiliza essa criação, é mobilizado imprevisivelmente por ela.
Lacan (1959-1960/1977) afirma, no Seminário 7: A ética da psicanálise, que sublimar é elevar o objeto à dignidade de Coisa. Rivera (2007) sugere que o psicanalista francês deveria colocar o prefixo “in” na palavra “dignidade”. Basta uma torção no significante para que o objeto seja elevado à in-dignidade da Coisa, como é o caso do urinol de Duchamp. Em outros termos, o simples ato de um objeto criado por um artista renomado estar em um espaço artístico, numa posição determinada, num contexto específico, muda completamente a conotação desse mesmo objeto. As relações entre o abjeto e o sublime são muito tênues, o que leva a pensar nos limites no ato de sublimar. Lacan, nas trilhas de Hegel, afirma que a palavra mata a coisa. Por mais adequada que ela seja em relação ao objeto descrito, há sempre um risco e um resto no processo de criação.
Retornemos à proposta winnicottiana. Levantamos a hipótese de que a escrita se assemelha ao objeto transicional usado pelo bebê para representar a ausência materna. Vimos anteriormente que Winnicott afirma que, quando há uma falha na figura de uma “mãe suficientemente boa”, o bebê não brinca adequadamente: ele diminui ou perde o jogo do faz de conta. A plasticidade do objeto transicional, que estabelece uma relação intermediária entre o mundo interno e externo, fica comprometida. O objeto se petrifica. Parece que esse processo se dá com a escrita.
Carvalho (2006) faz referências a escritores que, na tentativa de ir além dos limites da linguagem, perderam a vida. Na escrita em ponto de letra, no sentido lacaniano de litoral, há um liame, ainda que frágil, entre o real e o simbólico, dado o grau de condensação que ela possui. Clarice Lispector conseguiu manter esse laço, e o mesmo aconteceu com Guimarães Rosa, Raduan Nassar, João Cabral, Drummond, o mexicano Juan Rulfo e outros. Parece que esses autores perceberam intuitivamente o jogo perigoso da escrita, escapando do suicídio. Em entrevista a um jornalista sobre o processo de criação, Raduan Nassar, que abandonou a literatura, afirma, ironicamente, que a melhor criação que existe é a de... galinhas. Juan Rulfo, que escreveu de forma extremamente enxuta, limitou-se a duas obras. Tais escritores, ao se aproximarem dos limites da escrita, sentiram que tinham dado seu recado.
Quando a aventura no ato de escrever se radicaliza chegando a uma depuração máxima, indo além da letra, no sentido lacaniano de litoral, insistimos, a escrita, variante do objeto transicional da criança, se petrifica, perde sua plasticidade e o real se impõe. O escritor já não cria resíduos de significação, pulsações, diria Clarice. Ele se torna o próprio resíduo, não mantém mais o distanciamento entre o que escreve e a Coisa.2 É o que parece ter ocorrido com Ana Cristina Cesar, Sílvia Plath, Paul Celan e outros. Mergulharam de tal forma na linguagem que não conseguiram escapar dela com vida. Nesse caso, a ligação do criador com o objeto se extingue; a repetição prazerosa do jogo não se dá e o sujeito “se apaga”. Se esteticamente se trata de um ato extremo de depuração, clinicamente é um fracasso. Isso acontece também em casos clínicos.3
Escrever é brincar com as palavras. Parece que Drummond teve uma intuição desse processo perigoso quando escreveu o poema Resíduo, que pertence ao livro Rosa do povo (1945). Numa leitura sociológica, o poema normalmente é lido a partir de um contexto da Segunda Guerra, que deixou ruínas. Como a obra literária é polissêmica por natureza, podemos ler esse texto em outra chave, tendo em vista o liame entre o sujeito que escreve e o objeto, a escrita, objeto este que é remédio e veneno, como propunha Platão no Fedro. A escrita é uma faca de dois gumes e o criador, ao usá-la, pode fazer uma provisória sutura ou provocar uma ferida. No ato de escrever é preciso deixar um resto, como afirma o poeta itabirano em seu poema:
[...] Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures,
na consoante,
no poço?
[...]
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
o sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Carlos Drummond de Andrade)