Introdução
Vicissitude tem como antônimo a palavra “felicidade”, e seu significado no dicionário faz referência ao azar, às situações contrárias e aos reveses da vida. Não há palavra melhor para falar de amor do que vicissitudes, diante da via dupla que se estende para cada um e para todos nós. O amor é um jogo de azar, disso sabemos e podemos recorrer a Amy Winehouse. O amor é um jogo de apostas e só se pode saber o resultado depois da invenção.
O amor é também o núcleo da aposta psicanalítica. A grande aposta freudiana na transferência, colocada enquanto fundamento da prática clínica, faz do amor o motor de toda análise e da transmissão da psicanálise. Senão por amor, pelo que fazemos a aposta de que uma análise seja possível? Senão por transferência, o que colocaria a transmissão como algo possível? E o que se pode falar da literatura? Aqui a literatura se encontra como um viés de possibilidades diante das vicissitudes da vida e do amor. Usaremos a literatura para ser o pano de fundo de nossa discussão e como aposta.
Antes de mais nada, no começo foi...
O tema do amor não é um objeto de estudo exclusivo da psicanálise. Desde a Antiguidade, a filosofia e a arte se encarregam de estudar seus efeitos na cultura e no homem. A literatura também se encarrega desse tema há anos, os poetas enaltecem a grandiosidade do amor e seus escritos vêm trazendo ressonâncias para a sociedade desde então. A relação entre estes dois temas remete ao pensamento do amor como forma de encontro, ou tentativa, com a felicidade plena e com a plenitude (Ferreira, 2004; Kuss, 2014).
Aproximando a temática da psicanálise e em consonância com o que Lacan (1972-1973/2008, p. 89) afirma no Seminário 20: Mais, ainda, o discurso analítico não faz outra coisa senão falar de amor.
Desde os seus primórdios, a psicanálise se propõe a escutar em sua clínica os desdobramentos do amor no laço social. Freud, ao se debruçar sobre os casos de suas pacientes histéricas, percebe que ali há algo importante que faz com que o tratamento seja possível. A isso Freud nomeia de transferência.
No texto Sobre a dinâmica da transferência, Freud (1912/2020) fala que, através de predisposições e de influências oriundas da infância, nascem as condições que o sujeito estabelece para o amor. Em Observações sobre o amor transferencial, o pai da psicanálise teoriza que o fenômeno transferencial seria uma atualização que se estabelece entre analista e paciente dessas condições do amor oriundas de outrora (Freud, 1915 [1914]/2020). Essas atualizações são direcionadas ao analista, na medida em que, no percurso de análise, ele ocupa o lugar de outras pessoas (Ferreira, 2004).
Nesse viés, Miller (2010, p. 3) afirma que Freud inventou um novo Outro do amor, mas não um novo gozo, porque seria a questão de uma nova perversão. Ao inventar um novo amor, o psicanalista de Viena inaugura também uma nova aposta para a psicanálise.
Nas trilhas freudianas, Lacan (1960-1961/2010, p. 13) abre o Seminário 8: A transferência dizendo que, no começo da experiência analítica, vamos lembrar, foi o amor. Em diversos momentos de sua obra, o psicanalista francês fala que a transferência é o amor por excelência.
Kuss (2014, p. 47) explica:
Para Lacan, a transferência é um fato de amor. Um amor que se dirige ao saber, que, endereçado ao analista, funda o que Lacan nomeou de sujeito suposto saber. No início de uma análise o analista é colocado pelo paciente como o detentor de um saber sobre ele e que, por isso, é amado. Lacan nos adverte que o analista não deve ocupar esse lugar de sujeito suposto saber não conduzindo, assim, o tratamento nem a partir do lugar de amado e nem a partir do lugar de amante.
Nesse percurso, Lacan (1960-1961/2010) postula que algo pode ser ensinado com a transferência. E o que seria isso? A falta, nos responde ele. Branco (2014), em sua leitura do texto lacaniano, propõe que, ao tomar o amor de transferência como aquilo que ancora a experiência analítica, o que é ensinado pela via transferencial só pode ser transmitido na via do amor. Nesse sentido, o amor de transferência - ou, ousaríamos dizer apenas, o amor - ensina àquele que ama que há uma falta inscrita em seu desejo (Branco, 2014, p. 87).
Portanto, mediante a falta, haveria a possibilidade de o amor aparecer. Não mais enraizada nos ecos do discurso de Aristófanes2 e de seus seres que buscam a complementaridade, a psicanálise nos permite operar com o amor a partir da falta.
Lacan (1962-1963/2005, p. 122) no Seminário 10: A angústia, retoma o que disse também no Seminário 8: que amar é dar o que não se tem, ou seja, oferecer a falta em troca da falta. Nesse ponto, recorremos mais uma vez à leitura de Branco (2014, p. 88, grifos do autor)
[...] é legítimo e até necessário perguntar: como é possível dar ao outro algo que falta a si mesmo? Resposta: sustentando, através do amor, uma carência que é o motor do desejo. Lacan brinca com esse ce qu’on n’a pas - modo de escrever em francês esse dar o que não se tem -, lembrando que o a, do verbo avoir (‘ter’, em francês), é também o a do objeto que ele recentemente criara. Isto é, aquilo que se tem para oferecer no amor é justo uma falta, o que se dá é aquilo que não se tem.
É a partir da falta que se inaugura o desejo. Kuss (2014), em seu texto, nos diz que amor e desejo são uma resposta possível para a falta. Como sabemos, as primeiras experiências infantis deixam na criança marcas que duram toda a vida. Essas experiências são mediadas pela mãe3 ou por quem assume essa função. Assim, as experiências infantis vão adquirir o sentido que a mãe atribui a elas. É nesse caminho que podemos pensar que o desejo é efeito de uma falta, mas não de uma falta qualquer e sim daquela que é marcada pela incompletude, que nos foi transmitida pelo Outro, ou seja, o desejo é a própria falta no Outro.
De acordo com Roudinesco e Plon (1998), Freud não identifica o desejo com a necessidade, algo da ordem biológica. Os autores destacam que a necessidade encontra sua satisfação em objetos adequados, por exemplo, a fome e o alimento, ao passo que o desejo está ligado aos traços mnêmicos.
Kuss (2014) destaca que Freud recorre a uma etapa anterior do funcionamento psíquico para explicar a experiência de satisfação. Nas palavras da autora,
[...] os esforços do aparelho tinham como objetivo mantê-lo longe de estímulos (o que nomeou como princípio da constância). Desse modo, qualquer excitação sensorial pela qual o aparelho psíquico fosse acometido, seria imediatamente descarregada por uma via motora (Kuss, 2014, p. 16).
No caso de um bebê, é preciso que outra pessoa, um estímulo externo, dê fim ao estímulo interno - aqui destacamos o choro e a agitação do bebê que está com fome (estímulo interno), que é sanado quando a mãe o amamenta (estímulo externo). A isso Freud chamou de vivência de satisfação: um estímulo externo que cessa um estímulo interno, associando uma percepção específica a uma imagem mnêmica (Kuss, 2014, p. 16). Assim, quando aprece uma necessidade - fome, frio, calor, etc., essa imagem mnêmica é convocada na tentativa de repetir a satisfação original. A autora destaca que, para o pai da psicanálise, a aparição desse traço que evoca a primeira experiência de satisfação, é de caráter alucinatório, proporcionando a realização do desejo.
Freud chamou a evocação mnêmica de primeiro sistema e a inibição mnêmica de segundo sistema. O nosso primeiro sistema acha-se em nosso aparelho psíquico desde o princípio, mas o segundo sistema irá constituir-se e sobrepor-se aos processos primários ao longo da vida. Por isso ele diz que uma ampla esfera do material mnêmico fica inacessível à nossa consciência e à nossa compreensão, pelo aparecimento tardio dos processos secundários (Kuss, 2014, p. 17).
O sintoma, assim como o sonho, é uma via de satisfação de desejo inconsciente apontada por Freud. Assim, o psicanalista de Viena diz que a realização do desejo ocorre como algo que não se inscreve na realidade.
Tal apontamento nos leva a perceber que, embora Freud crie um método para interpretar sonhos, ou seja, para dar claridade ao que há de obscuro nos sonhos, reconhece que algo sempre se mantém ininterpretável, não só no inconsciente como também na própria realidade, destacando que há sempre algo da ordem do impossível de se captar, que há algo que sempre se perde. Como vimos, algo há de ser perdido para fundar o desejo (Kuss, 2014, p. 18).
Não é possível falar de amor sem falar de fantasia. Kuss (2014) nos diz que em psicanálise a fantasia não tem o mesmo significado que usamos na fala comum. A autora destaca que, para Freud, a fantasia anuncia um desejo, é a sua montagem. Já para Lacan, o conceito toma outro significado: ela dá constituição aos objetos. Para a neurose e a psicose, ambas estruturas clínicas da psicanálise, há tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra, de acordo com o desejo.
Jorge (2022, p. 13) afirma que
[...] o emparelhamento estrutural entre fantasia e delírio é proposto, nesse sentido, com o intuito de permitir estabelecer o papel que a primeira representa na neurose e o segundo, na psicose: ambos constituem esforços simbólicos e imaginários de apaziguamento das invasões bárbaras e inassimiláveis do real.
Ambos, fantasia e delírio, funcionariam como tela protetora para o real. Usamos a fantasia como proteção, quando precisamos lidar com o real, ou seja, o tempo todo. Podemos pensar o real como aquilo do sem sentido, do inominável. Um exemplo seria o que o avanço da pandemia do novo coronavírus nos causou no início do ano 2020. Kuss (2014) destaca que é algo da ordem do inapreensível. Já para Jorge (2022), o real seria puro não sentido.
É nesse caminho que, como vimos anteriormente, a fantasia, como o desejo e o amor, remete a uma falta. Enquanto o desejo indica que há falta, a fantasia diz o que falta (Jorge, 2010). O desejo não tem objeto; a fantasia vem para dar suporte ao desejo e quando o fixa em uma relação, tem algo de estável com o objeto (Kuss, 2014, p. 28). É esse lugar, em que se permite fixar o desejo, que, no Seminário 8: A transferência, Lacan (1960-1961/2010) nomeou de fantasia fundamental.
Dessa forma, podemos pensar a fantasia como a saída que concilia a exigência da pulsão à renúncia da realidade, é ela que coloca barreiras à satisfação pulsional. Assim, a fantasia pode ser o véu necessário para lidarmos com o mal-estar de viver, como tentativa de emoldurar o gozo. Mais uma vez, trazendo Jorge (2022, p. 172) para nossa conversa, a fantasia é aquilo que nos é outorgado pelo Outro para que possamos fazer face ao real (a chamada realidade objetiva recebe, para Lacan, o nome de real e é para sempre inatingível) munidos de alguma realidade psíquica.
Il y a l’amour
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
Marguerite Duras
O amor não aniquila a falta. Muitas vezes ele vem como um nome possível para ela, cumpre função de suplência para a não relação sexual. Kuss (2014, p. 85) pontua que
[...] entendemos que o amor aparece para suprir a inexistência de uma relação direta entre os sexos. A relação entre homens e mulheres é sempre mediada por alguma outra coisa: pela linguagem, pelo falo, pelo narcisismo, pela fantasia, pelo gozo. Homens e mulheres, embora sejam seres falantes, não falam a mesma língua.
Antoine Tudal escreve o poema:
Entre l’homme et la femme, Il y a l’amour.
Entre l’homme et l’amour, Il y a un monde.
Entre l’homme et le monde, Il y a un mur.
Lacan (1971-1972/2011), no texto Estou falando com as paredes, utiliza do poema de Tudal para traçar uma linha sobre esse desencontro fundamental do amor. O psicanalista francês toma o Il y a l’amour - l’(a)mur: (a) falta, objeto causa de desejo Entre o homem e o amor há um mundo; entre o homem e o mundo há um muro fazendo desse muro o signo em que é possível escrever do amor: a invenção.
Dessa maneira, Lacan (1972-1973/2008, p. 78) ensina sobre o amor; aí está o ato de amor. Fazer o amor, como o nome o indica, é poesia. Mas há um mundo entre a poesia e o ato e poesia, de acordo com o dicionário (Ferreira, 2001), é a arte de inventar. Há um mundo entre a poesia e o ato, é o que ele traduz de Antoine Tudal, Lacan (2011, p. 90) diz que entre o homem e o mundo há um muro; em outras palavras, há sempre algo que faz com que a relação com o outro só seja possível no depois, é pelo viés dessa arte de inventar!
Diante disso, o objeto de amor é faltante, o amado também é marcado pela falta, o que possibilita que ainda haja desejo a deslizar. No amor, portanto, não se trata de encontrar o parceiro ideal, como se fosse possível remediar por via do amado a inexistência da relação sexual, que é condição para as relações amorosas, e não consequência de escolhas erradas (Kuss, 2014, p. 86).
É com Lacan que podemos recortar o amor nos três registros. No imaginário: o amor daquele que deseja ser amado é, essencialmente, uma tentativa de capturar o outro em si mesmo (Lacan, 1953-1954/2009, p. 359). No simbólico: que o único signo de amor que efetivamente vale é dar o que não se tem (Lacan, 1956-1957/1995, p. 153). E no real: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo (Lacan, 1962-1963/2005, p. 197), como explica Ana Suy (Kuss, 2014, p. 86).
Por conseguinte, não se pode saber do amor, a não ser enroscado em suas próprias cordas. É isso que a literatura nos ensina, ou o que apreendemos de nossa experiência como leitores, operar com os vazios do texto e construir com os vazios que o amor contorna.
Amorim de Sousa (2022, p. 195) destaca que
[...] o texto literário com seus vazios, suas brechas, seus silêncios e sua escancarada incompletude que convoca o leitor a operar-lhe sentidos, a preenchê-lo. É que o texto literário, diferentemente dos outros tipos de texto, não sabe coisas, mas sabe algo das coisas, isto é, sabe muito sobre o humano.
Ao não saber sobre o amor, ao encontrar no texto literário uma possibilidade de também não saber sobre algo, somos convocados à possibilidade de inventar algo próprio na aposta de dar contorno às vicissitudes do amor e da vida. Em O mal-estar na cultura, Freud (1930 [1929]/2021) nos ensina que uma das principais fontes de nosso mal-estar está intimamente ligada às relações que construímos. Há azar maior que esse?
Para inventar conclusões
Ao recorrer à teoria psicanalítica e ao que ela nos ensina sobre o amor, interrogamo-nos como o amor pode ser suplência para a não relação sexual. Para chegarmos ao aforismo “a relação sexual não existe”, cunhado por Lacan (1972-1973/2008), foi necessário percorrer os caminhos do amor na psicanálise.
A transferência, como vimos, é o que ancora uma análise e nasce através de uma atualização das formas de amar do sujeito. Lacan (1960-1961/2010) pontua que, no início do fazer psicanalítico, foi o amor. Tal asserção se faz presente, mesmo nas entrelinhas, desde Freud (1893-1895/1996), em seus Estudos sobre a histeria. O psicanalista percebia que havia algo que fazia o tratamento das pacientes histéricas funcionar. O que Freud percebe ali e leva alguns anos para oficialmente nomear é o que chamamos de transferência.
Como foi destacado por Kuss (2014), não é possível falar de amor em psicanálise sem falar de falta, de desejo e de fantasia. Só é possível desejar a partir da falta, ou seja, é preciso que algo falte para que o amor possa se movimentar. Como aponta a autora, o amor sai do narcisismo e vai ao encontro da possibilidade do desejo - a falta -, de amar conforme o próprio desejo. Nesse ínterim, o amor pode ser uma tentativa de resposta ao desejo e, como vimos com Jorge (2022), a fantasia faz tela para a impossibilidade de satisfazer o desejo, que é sempre insatisfeito.
A possibilidade de recorrer ao texto literário partindo do não saber nos ajuda a pensar como o aforismo lacaniano da não relação sexual se articula com a clínica e com a tentativa de se transmitir a psicanálise. Se a relação sexual não existe (Lacan, 1972-1973/2008), o que existe é a possibilidade de invenção ante o fracasso do real. Ferreira (2004) destaca que o amor é puro acontecimento, puro ato como aponta Lacan (1972-1973/2008), ato de fazer poesia e de fazer algo ante o deserto do real. Em outras palavras, o amor faz suplência à impossibilidade da relação com o Outro sexo, permitindo, assim, uma resposta ao desejo.
Por fim, destacamos a potencialidade da psicanálise como instrumento para se escutar o social e os discursos sobre o amor, no passado e no presente. No fim, o que é possível capturar da experiência analítica é seu princípio: o amor. Diante disso, nos colocamos a trabalho de permitir desejar e inventar algo para fazer com a falta nossa de cada dia.